domingo, 17 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7138: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (2): Matacanha (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva* (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 14 de Outubro de 2010:

Caros Luís, Vinhal, Briote e M. Ribeiro:
Recebam antes de todo o mais um grande abraço de amizade e consideração. Recebam também um forte apoio e um bem-hajam pelo magnífico trabalho tão meritoso e interessante que vêm desenvolvendo no Blogue, apesar de infiltrações despropositadas daqui e dali, às vezes, o que não será fácil de lidar e daí a sobressair a Vossa classe e personalidade na moderação.

Serve este, para enviar em anexo um trabalho meu que vem na sequência do que fiz no post 7012. Agora dedicado ao Capítulo II – Matacanha.
Rui Silva


2- Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

DOENÇAS E OUTROS PROBLEMAS DE SAÚDE (ou de integridade física) QUE A CCAÇ 816 TEVE DE ENFRENTAR DURANTE A SUA CAMPANHA NA GUINÉ PORTUGUESA
(Bissorã, Olossato, Mansoa - 1965-67)

(I) Paludismo
(II) Matacanha
(III) Formiga “baga-baga”
(IV) Abelhas
(V) Lepra
(VI) Doença do sono


Não é minha intenção ao “falar” aqui de doenças e outros problemas de saúde que afligiam os militares da 816 na ex-Guiné Portuguesa imiscuir-me em áreas para as quais não estou habilitado (áreas de Medicina Geral, Medicina Tropical, Biologia, etc.) mas, tão só, contar aquilo, como eu, e enquanto leigo em tais matérias, vi, ajuizei e senti.

Assim:
As 4 primeiras, a Companhia sentiu-as bem na pele (ou no corpo). As 2 últimas (Lepra e Doença do sono), embora as constatássemos - houve mesmo contactos directos de elementos da Companhia com leprosos (foram leprosos transportados às costas, do mato para Olossato nas tais operações de recolha de população acoitada no mato para as povoações com protecção de tropa) –, não houve qualquer caso com o pessoal da Companhia, ou porque estas doenças estavam em fase de erradicação (?), ou porque a higiene e a profilaxia praticadas pela Companhia eram o suficiente para as obstar.


MATACANHA - II
Matacanha , Bitacaia, Bicho-do-pé ou Tungíase.
Agente causador: Pulga Tunga penetrans


Logo ali mesmo em Brá começaram os termos de crioulo e outros talvez já do calão guineense a entrar-nos nos ouvidos.
Os “velhos” tropas ali sediados, julgo que uma Companhia de Comandos ou parte dela (se calhar andava por lá o Briote nessa altura (fins de Maio/princípios de Junho de 1965) e outros também já de camuflado coçado faziam do crioulo quase a língua oficial e única, e então termos como manga, manga di chocolate, ronco, catota , corpo, corpo di bó, djubi, sabe di mais, Bó cá miste, etc., eram correntes. E não havia outro modo se não entrar nessa também. Quem não aprendesse a “língua” local podia perder o comboio.
Ainda hoje nos Convívios anuais da Companhia esses termos são usados.

Quem andava por ali descalço foi também logo prevenido da matacanha. Isto já dizia respeito a um bicho que se metia nos pés… Quem andasse descalço habilitava-se assim a este hospedeiro, avisavam os “velhos”, e o que era muito chato.
Do Paludismo já éramos conhecedores até antes de embarcar e algo prevenidos ao deixarmos a metrópole, agora, matacanha?

Mas a nossa preocupação ali em Brá, na altura, era ir ao Tropical (mais abaixo ficava o Solar do Dez) comer um churrasco antecedido dumas entradas de ostras em molho picante servido num pires bem regadas com cerveja (nunca mais uma cerveja soube tão bem) e depois passar pela esplanada arborizada do Bento (5.ª Repartição).

Nos poucos meses que estivemos depois em Bissorã, isto da matacanha terá passado ao lado, pelo menos que eu me apercebesse, mas, no Olossato (longa estadia - ~1 ano-) manga dela.

Ainda sem bem conhecimento deste bicho, o passar pelo interior da Tabanca, nos regulares passeios da malta, via-se por vezes um “Bloco operatório” ao ar livre. Sentado num mocho, o paciente de perna esticada sobre outro mocho.
De volta do pé o cirurgião de bisturi na mão (pau afiado) fazia qualquer coisa. Trabalho de pedicure não nos parecia… adiante.
Indiferentes a isto (?), passávamos ao lado. Já nas bajudas a lavar a roupa em meio pipo (ou selha) parávamos mais um bocado.

Mas depois constatou-se que aquela cena de intervenção cirúrgica na Tabanca relacionava-se afinal com a matacanha e que o trabalho devia ser feito por cirurgião experiente e muito cuidadoso, isto é feito por um artista.
Os nativos tratavam e sabiam de tudo. Imaginação a quanto obrigas!

Da vegetação e do denso arvoredo do mato vinham sempre as ferramentas apropriadas (não esquecer as eficazes escovas de dentes).
Descalço então ninguém da tropa andava (já o nativo quando muito usava umas sandálias de plástico, os que as usavam), muito menos em chão de terra e poeirento (no Olossato não havia outro), já os chinelos de borracha com tira entre os dedos quase ninguém os dispensava embora houvesse que nem assim era de confiar.

Não tardou então que na Enfermaria aparecessem casos (embora raros) de matacanha.
Os enfermeiros com agulha esterilizada e com paciência (esta era bem requerida) faziam o trabalho com destreza. O novelo ou “ervilha” tinha que ser retirado sem REBENTAR, senão…
Este bichinho normalmente escolhia o dedo grande do pé e junto à unha.

Bom, tínhamos o já bem conhecido inimigo aéreo (o tal de Anopheles) e agora tínhamos de contar com o terrestre também. Esta pulga de 1mm dava um pincho de 1 metro e tinha uma facilidade de se entranhar na pele embora “avisasse” primeiro com comichão irritante. A matacanha fêmea (sempre as fêmeas, claro está) é que era o perigo. O macho morria após copular. Para nós mais valia ser o contrário, para nos livrar da peste. Aquele desgraçado mais valia deixar-se de sexo.

O perigo da matacanha era então as infecções que podia originar subsequentemente a uma operação mal sucedida, isto é, não tirar aquela “ervilha” intacta.
Na Companhia, um “poeta”, julgo que o meu amigo Furriel Belchior, chegou a fazer uma música versada que abordava a matacanha, de que só me lembro (que pena não saber hoje toda) dos primeiros acordes:

“Olha a bolanha
Que está cheia de matacanha"…


Provérbio em crioulo da Guiné (onde entra a matacanha) e sua tradução em Português:
Kusa ki mankañ kuda, tarda ki lingron sibil (O que faz a matacanha conhece-o à muito o lingueirão)

Segue duas descrições sobre a matacanha reproduzidas de sites na internete

Reproduzido, com a devida vénia, de:
www.abcdasaúde.com.br – Dermatologia-Dermatozoonoses - Tungíase
Nome popular:
Bicho-de-pé.
O que é?
É a enfermidade causada pela tunga penetrans, um tipo de pulga que habita lugares secos e arenosos, sendo muito encontrada nas zonas rurais, chiqueiros e currais.


A Pulga (Tunga penetrans)
~ 60 vezes o seu tamanho natural (este é de ~1 mm.)Como se adquire?

A pulga fêmea penetra a pele, onde suga o sangue do hospedeiro (os principais são os homens e os suínos) e começa a produzir ovos que se desenvolvem e serão posteriormente eliminados no solo. Os ovos depositados passam a alimentar-se do sangue do hospedeiro. Ao desenvolverem-se, podem chegar à dimensão de uma ervilha. Expelidos os ovos, o parasita completa o ciclo vital.

O que se sente?
Manifesta-se por discreto prurido na fase inicial, com posterior aparecimento de sensação dolorosa.

Como o médico faz o diagnóstico?
O exame mostra pápula amarelada com ponto escuro central que é o segmento posterior, contendo os ovos. As lesões são encontradas nos pés, geralmente, ao redor das unhas e planta. Pode ocorrer infecção secundária, com dor local e secreção purulenta.

Como se trata?
O tratamento consiste na enucleação da pulga com agulha estéril e desinfecção. É possível destruí-las com electrocautério ou electrocirurgia após anestesia tópica. Se houver infecção secundária, é indicado o uso de antibióticos.

O novelo ou “ervilha” (pelo tamanho). A fêmea da matacanha já em período de gestação bastante adiantado (foto reproduzida, com a devida vénia, de Wikipédia)

Como se previne?
Através do uso de calçados em áreas suspeitas e eliminação das fontes de infestação com DDT, BHC ou fogo.

Reproduzido, com a devida vénia de:
De: http://m.opais.net - Bitacaia veio com ingleses – José Kaliengue

A bitacaia foi introduzida em África em 1872 pelos tripulantes do navio inglês Thomas Michell que atracou no porto de Ambriz, Angola, vindo do Rio de Janeiro.
Este dado consta de um artigo científico do Dr. Nuno A. A. Castelo Branco publicado em 1983 no n.º 31 da Revista Portuguesa de Medicina Militar.

Na altura, Nuno Castelo Branco, hoje na reforma, era o médico chefe das OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico) e director clínico e anátomo patologista do Centro Médico Calouste Gulbenkian. O texto foi escrito com base numa rigorosa investigação e com apoio em diversas obras de especialistas ingleses, americanos, franceses e espanhóis.

A pulga da bitacaia, a Tunga Penetrans, é referida como existindo anteriormente nas Américas onde estaria confinada nos tempos pré colombianos. No entanto, existem descrições de suspeitas da existência da T. Penetrans em África no século XIV, antes, portanto, da descoberta da América por Cristóvão Colombo. As implicações históricas que daí advêm e o facto da descrição da doença não ser absolutamente conclusiva leva-nos a considerar, por ora, como historicamente válida a data de 1872 lê-se no artigo.

Em 1526, Gonzalo Fernandes de Ovido y Valdes Oviedo, um espanhol, fez a primeira descrição precisa do parasita. Em Angola, onde a matacanha, ou bitacaia, é extremamente comum, há quem a aponte como uma calamidade com consequências económicas, além das físicas.

A fêmea grávida da matacanha, a única pulga endoparasita do homem (o macho morre após a cópula), penetra obliquamente na pele do hospedeiro e aumenta extraordinariamente de volume produzindo um enorme número de ovos que, quando maduros, são expelidos para o exterior. A pele dos pés é o sítio de eleição para a localização da matacanha.

No entanto, a matacanha pode instalar-se em quase todas as regiões do corpo. Além do homem a pulga da matacanha parasita todos os animais de sangue quente.

Pé com matacanha –fotos reproduzidas, com a devida vénia, de :nedo.gumed.edu.pl (Parasitoses-astrópodes)

Não mata

A matacanha não é um problema de saúde pública , afirmaram a O PAÍS o professor Luís Távora Tavira, médico especialista em Medicina Tropical, no Hospital Egas Moniz em Lisboa e o Dr. Mário Fernandes, médico cardiologista angolano.

Os médicos dizem que esta espécie de pulga encontra-se em locais sujos ou degradados. Na pele humana provoca uma inflamação que causa uma sensação desagradável e um género de furúnculo ou panarício. Porém, ninguém morre de matacanha.

É um problema de deterioração das condições de higiene e tem a ver com as condições sociais e de saneamento. As pessoas que andam descalças nesses lugares têm mais probabilidade de a apanhar, explicam.
Mário Fernandes adianta que além de não representar qualquer impacto sobre a economia, a bitacaia nem é um vector de transmissão do tétano, como afirmam algumas pessoas.

Segue: Formiga “baga.baga” - III
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Nota de CV:

Vd. poste de 20 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7012: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (1): Paludismo (Rui Silva)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Rui Silva,
Eu fui um dos contemplados com uma matacanha no Olossato. E o curioso é que nunca andava descalço, nem com chinelos ou havaianas, salvo quando tomava banho. E, se bem me lembro, usava sempre meias. Mesmo assim não me livrei de ser contemplado com o famigerado bicho que mudava constantemente de sítio por debaixo da pele. É claro que o meu cirurgião foi um hábil nativo, que o retirou impecavelmente com os seus apetrechos. Merecia um diploma.
Raul Albino
C.Caç. 2402

CORREIA NUNES disse...

Camarada Rui,por 4 vezes fui emboscado por esses dois IN,na vez estava a trabalhar no quartel dos Comandos e começou a doer-me o pé,
diz o meu ajudante mas isso é matacanha?-retorqui eu mas o que é isso?dada a explicação, lá foi ele arranjar um "Prego"raspou no cimento até ficar limpo,lá foi ele intervencionar o meu pé,nada meigo o enfermeiro ocasional,quando terminou,disse-lhe jamais algum africano me tirará uma matacanha,em Bolama voltou a acontecer aí fui eu que a retirei,
paludismo 2 vezes,semanas de enfermaria,como a coisa estava mal,recorri ao meu Amigo Isac da STEIA,que me deu uma dose de resoquina e em trés dias lá se foi,
mas a dose de cavalo foi dado por um Sr.José Henrique que tinha um destilaria de cana lá prós lados de Antula,3 resoquinas e 1/2 copo de wisqui,transpirei que nem um animal mas á tarde estava fino.
José Nunes
BENG447
Brá 68/70

Anónimo disse...

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