sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.

Tinha este artigo já redigido de forma a poder ser editado, no dia 3 de Agosto de 2010. O objectivo, com a provável edição, era prestar uma singela homenagem aos camaradas envolvidos nos acontecimentos aqui narrados, e concomitantemente recordar a data em que fez 40 anos que ocorreram esses factos. Quero particularizar, que foi o dia 3 de Agosto de 1970, o dia mais trágico que eu vivi no Teatro Operacional de Guerra na Guiné.

Não enviei o artigo para edição, porque não consegui, atempadamente, encontrar no meu espólio da Guiné, uma única foto do Furriel João Purrinhas Martins Cecílio, um dos infortunados homens que infelizmente perdeu a vida no rebentamento da mina anti-carro que deflagrou nesse dia. Visto já ter ultrapassado essa contrariedade, aqui estou eu a endereçar o artigo para publicação, caso entendam que merece.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (17)

COINCIDÊNCIAS NO DIA 03 DE AGOSTO DE 1970

São coincidências… ou é o preço a pagar pelo privilégio de se pertencer ao Reino dos Seres Vivos!? É a Vida… e nada acontece fortuitamente, provavelmente muitos o afirmarão! Outros, não sei se mais convincentes ou não, atribuirão o ocorrido ao destino que está marcado, à sina que está escrita, ao acaso, ao inevitável, ou por se estar à hora certa no lugar errado! Pese ainda, que alguns mais assertivos defenderão que é a lei natural da Vida! E dirão: Que tudo se destrói, tudo perece, tudo passa, tudo se transforma, nada se perde!

A Natureza é dinâmica!
A seu tempo todos temos a nossa hora…
O tempo não pára e diz tudo à posteridade! O Tempo dura sempre…!

Há acontecimentos marcantes, muito especiais no quotidiano da Vida de cada um de nós, que em determinados momentos nos levam a cogitar e questionarmo-nos, se realmente na nossa vida nada acontece aleatoriamente? Será que por vezes o ser humano comete o erro de tentar tirar da cabeça aquilo que lhe não sai livremente do coração? Para o ser humano atento, comum mortal, é intuitivo que fé e demonstrações matemáticas são matérias inconciliáveis..! Acreditar nos fenómenos que são possíveis e susceptíveis de análise, é objecto de estudo da Filosofia.

Foto 1 > A alegria esfusiante, do Fur Gonçalves a vibrar com o seu violão improvisado. Da esquerda para a direita a seguir ao Gonçalves: Furs. Adelino, Gil, Laminhas, Borges e Rito.

Foto 2 > A tentar gravar em suporte magnético, melodias do Cancioneiro de Canjadude. A expressão eufórica e incontida, do Alf. Sousa, a braços com a sua inseparável viola. (Ainda hoje, não só em terras Algarvias, onde reside, mas por todo o País e estrangeiro, continua ligado á arte da música e a dar espectáculos). A seguir ao Alf. Sousa, o Cap. Arnaldo Costeira (hoje Coronel na reserva) a entregar uma garrafa ao sempre discreto Fur. Perestrelo, a seguir Alf. Varela e no canto direito sentado o Fur. Vieira da Silva.

Estamos no Aquartelamento da CCAÇ 5, em Canjadude, no dia 1 de Agosto de 1970, Sábado. Logo pela manhã, depois do pequeno-almoço, veio ter comigo o meu estimado amigo 1.º cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, e perguntou-me se tinha a máquina fotográfica carregada com o filme, e se fazia o favor de durante o dia lhe tirar uma série de fotos. Respondi afirmativamente à questão, sem nunca ter pensado que ele desejasse tantas e tão variadas poses para ser fotografado. Eu, por cautela, estou sempre prevenido com três ou quatro rolos de películas negativas virgens, de reserva, para imprevistos fotográficos. O Dinis é raríssimo tirar uma foto, muito poucos, ou talvez nenhum camarada em Canjadude terá a regalia de ter uma foto dele, que não tenha sido disponibilizada por mim. Acertámos que nos próximos dias, (tirei-lhe fotos nos dias 1 e 2 de Agosto) logo que houvesse disponibilidade, de forma a não interferir com as nossas tarefas de obrigação militar, ficava ao inteiro dispor do amigo Dinis para retratar o que ele achasse conveniente, de forma que tinha ali, praticamente um fotógrafo privado. Ele próprio começou por ir seleccionando os locais mais diversos que serviam de cenários para o enquadramento das fotos, entre os quais: aquartelamento, abrigos, refeitório, matraquilhos, enfermaria, rochas, bolanha, lavadeiras, tabanca, pilar arroz, crianças nativas, pista aérea, picada do Cheche, picada Nova Lamego, ponte do rio de Canjadude, rio, bananeiras, etc.. Mudou 4 ou 5 vezes de vestuário enquanto durou a sessão de fotos, duas vezes com roupa civil mudas diferentes, e 3 com uniforme militar distinto. Ele escolheu diferentes lugares e variadas posições para ser fotografado, e algumas vezes em condições menos propícias para a qualidade da imagem, porque as radiações solares estavam a incidir praticamente na vertical, concentrando grande densidade de raios ultra-violetas que prejudicam as reacções químicas nos negativos quando expostos à luz, ainda que eu utilizasse um filtro UV na objectiva, mas mesmo assim os contrastes e as sombras ficam muito acentuados.

Influa embora, que eu o tenha alertado para este inconveniente, pois nunca gostei de tirar fotos com Sol na vertical, (entre as 11h00 e as 14h00/15h00) que torna as tonalidades menos suaves, mas ele não se preocupou com a minúcia. Até fotos ele virado de costas para a câmara me pediu para lhe tirar. No período de tempo que andei a tirar fotos, nunca nas feições do Dinis se vislumbrou o mais ténue esboço para sorrir, ainda que aparentasse tranquilidade e paz de espírito. Eu em tom de gozo, para criar ambiente e ver se lhe arrancava um suave gracejo que fosse, para tornar o momento mais distenso, reacção que nunca consegui, dizia-lhe mangando que ele devia ter muitas namoradas para enviar fotos para todas, porque estava a obter tantas, tão consecutivamente e com tal pressa. Eu insistia e provocava-o galhofando dizendo-lhe, que era natural que ele não tivesse “pedalada” para todas as miúdas, e que me podia dispensar alguma porque eu andava carenciado. Ele determinado e impassível, algo melancólico, ainda que ostentasse um semblante sereno, embora se adivinhasse nele um pensamento distante, expôs-se para ser fotografado sempre só, sem pretender enquadrar nas fotos, outros camaradas militares, excepto uma vez nas mais de 70 fotografias tiradas durante os dois dias, praticamente gastou-se um filme de negativo de 36 exposições.

Foto 3 > Cabo Carlos Alberto Leitão Dinis

Foto 4 > Única foto que tirei ao Dinis, enquadrado com outros camaradas de Canjadude. Da direita para a esquerda: Cabos, Viriato, José Carlos Freitas (jogador do V. de Guimarães), Montóia (jogador do Leixões, de etnia Cigana, que ainda hoje faz as feiras de Matosinhos), Cóias, Dinis, Dias, não me recordo do nome do camarada que está ligeiramente atrasado entre o Dias e o Dinis, assim como não recordo o nome, do condutor, que tem a G3 na mão. O nosso atrevimento e irresponsabilidade, ao irmos para o rio junto à ponte, como se fôssemos para a praia, só com uma G3.

A máquina utilizada foi uma Olympus Pen FT, que tem a particularidade de duplicar os fotogramas negativos do filme de 35mm, nela usado, uma vez que a superfície do filme que é exposta à luz que sensibiliza os sais de nitrato de prata da película, têm o formato de 18mmX24mm enquanto o formato vulgar é 35mmX24mm. Quando se faz o disparo que abre a cortina da máquina, (o obturador) a superfície do negativo, (o fotograma) que é exposto e sensibilizado pela entrada da luz que passa pela abertura, variável do diafragma, é metade da superfície que é habitual nas tradicionais máquinas de filme de 35mm, esta minudência tem vantagens e desvantagens.

O Capitão Arnaldo Costeira, Comandante da Companhia, está de férias, estando a desempenhar interinamente as suas funções o Alferes Deodato dos Santos Gomes, que é o Alferes mais antigo da CCAÇ 5.

A actividade operacional militar em Canjadude tem sido muito intensa, havendo saídas para o mato ininterruptas, que têm provocado muito desgaste físico nos operacionais, atendendo ao estado de alagamento em que se encontram as Bolanhas que dificultam o caminhar, exigindo um esforço suplementar para se poder progredir.

Vestígios da presença do IN na nossa área não têm sido praticamente detectados, o que para alguns já é gratificante, pois já desde o dia 12 de Setembro de 1969, dentro dum mês e pouco faz um ano, que não tem havido na zona de patrulhamento da CCAÇ 5 nenhuma actividade IN.

Já praticamente há 3 meses que se mantém em rotatividade um pelotão da CCAÇ 5, quase permanentemente, a reforçar a segurança a Nova Lamego. A actividade do IN nos Quartéis das redondezas de Canjadude têm-se manifestado com flagelações aos Aquartelamentos, e nas picadas tem havido alguns rebentamentos de minas anti-carro.

Tenho acompanhado com assiduidade as diversas actividades operacionais para o mato, por toda a nossa área, que é muito abrangente e vasta, pois somos um Destacamento periférico e temos uma superfície territorial de patrulhamento, da nossa responsabilidade, cuja extensão é limitada pela linha do perímetro, cujo raio é quase constante, com 20 ou 25km, com centro em Canjadude. Confinamos a Sul com o rio Corubal, para lá do qual só forças heli-transportadas conseguem penetrar, que é a região de Madina de Boé. Surpreende-me com toda esta persistente operacionalidade nas zonas do Bormeleu, Siai, Cheche, não haver alguns contactos físicos com o IN, mesmo que esporádicos, é estranho esta tranquilidade neste amplo espaço com esta densa mata. É minha convicção, quase certeza, que o IN deve ter arraiais alojados por aqui bem perto, pois por vezes no nosso equipamento de transmissões são captadas mensagens, supostamente do IN, ouvindo-se um só interlocutor com fonia tão audível e sem ruído, que abafa outra qualquer recepção, por vezes mais parece que estão a emitir aqui ao virar da esquina.

Dia 2 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo saiu de Canjadude uma coluna para Nova Lamego, com o pelotão do Alferes Alexandre Rodrigues Martins, com o objectivo de ir render o GCOMB do Alferes Anibal Afonso de Sousa, que já quase quinze dias que está a reforçar a segurança de Nova Lamego. É de salientar que os militares nativos destes pelotões que ficam em Nova Lamego revezadamente, têm as suas famílias e mulheres em Canjadude, e nestas circunstâncias, com os maridos ausentes, o respeito por parte das mulheres e dos homens também, fica um pouco distante e ausenta-se, todos estão conscientes disso, pois somos jovens e as gónadas funcionam, produzindo as hormonas que estimulam e desencadeiam desejos impúdicos, e há quem se desforre, fria e “cavalheirescamente”, aproveitando esta oportunidade e situação. Uns abusam por carência ou afirmação e satisfação pessoal, ou porque é uma necessidade natural que se conforta mutuamente. Outros ousam abusar, alternando com o mesmo comportamento do semelhante, para apaziguar a vingança, por terem sido também eles traídos. Além desta insegurança e tensão psicológica, acentua-se o desgaste físico, ao estar em Nova Lamego, mais nas tropas nativas, não só com a intensa actividade operacional, que é diária, mas também porque todos os militares nativos são desarranchados, e é lógico que sem a família e amigos por perto, a alimentação praticada é bem mais desajustada, ainda que alguns se agrupem e a confeccionem.

Foto 5 > Na messe de oficiaus e sargentos. Da esquerda para a direita: Furs. Mário, Antunes, Sarg. Cipriano, Furs. Rito, Silva, Alf. Gomes, Cap. Costeira, Alf. Martins, ?, e Fur. Moreira.

A coluna regressou a Canjadude ao princípio da tarde com o pelotão já substituído e integravam-na mais 3 Furriéis “periquitos”, para render outros 3 “uns felizardos”.

O Alberto Pereira Caetano, veio para render o José Fernando Silva, o João da Silva Alves, para render o Manuel Vieira da Silva e o Augusto Soares de Moura rendeu o Nuno António Pereira Rito. Coincidência, os rendidos vieram para a Guiné no mesmo barco sem se conhecerem, conheceram-se em Canjadude e foram rendidos ao fim de dois anos no mesmo dia, regressando à Metrópole no mesmo transporte. Estou a falar de rendição individual.

Foto 6 > Da direita para a esquerda: Furs. Albino, Caetano e Alves

Foto 7 > Sargentos a descontrair na Parada Augusto Gamboa, morto numa emboscada em Uelingará. Da esquerda para a direita: Furs. Perestrelo, Augusto Moura, de pé, que chegou a Canjadude a 02-08-70 e no dia seguinte teve acidente com uma mina, 1.º Paulino (já faleceu), Furs. Albino, Antunes, Germano Silva (já faleceu), Sargs. Cipriano (já faleceu), Farinha e Fur. Ramos (já faleceu).

Dia 3 de Agosto de 1970, pouco passava das 07h00 quando saiu mais uma coluna de Canjadude para Nova Lamego, embora tivesse havido ontem uma, não deu para compreender o porquê de haver hoje outra?! (Terá sido a “força oculta” para que se concretizasse a coincidência de serem rendidos os três furriéis em simultâneo, porque um deles estava integrado no pelotão que estava em Nova Lamego e era necessário ir resgatá-lo!?) Eu estou de serviço no Posto de Rádio. Os dois rolos de negativos fotográficos que já tinham sido expostos, confiei-os ao Dinis, que acompanha a coluna, pedi-lhe que os entregasse na Casa Caeiro para serem revelados e fazer fotos, assim como o incumbi que levantasse algum trabalho meu de fotografia que estivesse concluído, pois o Sr. Caeiro ou a filha fiam-me a mercadoria entregando-a sem necessidade de pagamento, que eu oportunamente farei contas.

Foto 8 > Cabo Dinis na tabanca de Canjadude, com criança ao colo.

A decisão para definir qual o pelotão que devia integrar a coluna, foi tudo menos pacífica. Por escala ordenada, devia ir o pelotão “X” e apresentaram-se os militares desse grupo prontos para cumprir essa missão, mas já próximo da acção de partida da coluna, tomou-se outra deliberação e foi outro pelotão que se preparou apressadamente para integrar a coluna. Contrário ao que é habitual e sempre desejosos de ir, ao ponto de por vezes não haver lugar para todos os civis da Tabanca, que vão por necessidades pessoais a Nova Lamego, hoje não compareceram como é frequente, para ir na coluna. O Sargento Enfermeiro, Cipriano, nativo, que tem o agregado familiar em Nova Lamego, é assíduo em acompanhar as colunas, hoje desistiu de subir para a viatura na hora da partida. No meio desta confusão toda, o Furriel Antunes, de Transmissões, que por afazeres pessoais precisava ir a Nova Lamego e como tal apresentou-se devidamente preparado e pronto para ir na coluna, eis senão, quando em cima do acto da partida surgiu um imprevisto de última hora, que o levou a desistir da viagem.

Eram sensivelmente 07h45, quando se ouviu uma violeta explosão seca e abafada, na direcção da picada de Nova Lamego. Eu era o operador de serviço de transmissões e estava sentado no exterior do Posto de Rádio, na pedra que estava junto à porta do abrigo, onde era frequente a malta sentar-se. Ao ouvir o estrondo fiquei praticamente com a certeza que tinha sido o rebentamento duma mina anti-carro, pois no dia 12 de Setembro do ano passado, ia a fazer um ano, fui testemunha “in loco” de detonação idêntica. Entro imediatamente no Posto de Rádio e tento no AN-GRC-9 e no AN-PRC-10, entrar em contacto com a coluna, que não responde às minhas insistentes solicitações. Logo de seguida aparece o Furriel Antunes e o Alferes Gomes, que substituía o Capitão Costeira que estava de férias, para saberem o que tinha acontecido. Continuo com os meios disponíveis a tentar contactar a coluna, mas todas as tentativas de comunicação se revelaram infrutíferas. Peço ajuda aos Postos de Rádio de Nova Lamego e Cabuca, (poderiam estar mais próximo da coluna, ou em condições mais favoráveis para transmissões) para tentarem captar mensagem da coluna, pois também eles tinham ouvido o rebentamento, mas todas as tentativas de contacto se tornaram vãs. Dá-se início aos preparativos para que um grupo de combate vá ao encontro da coluna... que não chegou a sair. Ainda não eram 08h30, alguém disse que se estavam a ouvir os motores de viaturas já próximo do Aquartelamento. Passados, um minuto ou dois, surgem duas viaturas da coluna, transportando uma, 9 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, e dois mortos, entre os quais o 1.º Cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, que ainda não tinha 4 meses de Guiné e o Furriel Atirador, João Purrinhas Martins Cecílio, colocado em Canjadude em 28 de Maio de 1970 depois de ter regressado ao Teatro Operacional da Guiné, para completar a comissão de serviço, após uma ausência operacional, motivada por uma evacuação devido a doença contraída na CCAÇ 2464, Companhia da qual fez parte e que foi mobilizada para a Guiné, em Fevereiro de 1969. Deixou 4 filhos órfãos, ainda crianças.

Foto 9 > Esta foto foi-me amavelmente cedida pelo nosso tertuliano António Nobre, tirada na CCAÇ 2464, onde o Fur. Cecílio iniciou a comissão na Guiné até ser evacuado por doença. Só no regresso da evacuação se apresentou na CCAÇ 5. Da esquerda para a direita: Padeiro(?), Furs. António Nobre, João Purrinhas Martins Cecílio (já falecido), Moura (já falecido) e Peixoto.

Foto 10 > Cabo Dinis junto ao filão das rochas de Canjadude.

Foto 11 > Confaternização no abrigo de transmissões. Chegada do Carlos Augusto dos Santos Pereira, que veste camuflado. Da esquerda para a direita: Fur. Antunes, Cabos, Alex, Pereira, José Carlos Freitas, Cóias e Lúcio.

Foto 12 > Da esquerda para a direita: Cabos TRMS Silva, Pereira e Lúcio.

A viatura que accionou a mina, em Uelingará, foi a viatura de transmissões, ficando a parte da frente toda destruída, assim como os aparelhos de comunicação. O AN-GRC-9 libertou-se das amarras e foi projectado a dezenas de metros, assim como as baterias que ficaram todas desfeitas, foi essa a razão porque não se pôde comunicar com a coluna. Por norma a viatura de transmissões ocupa quase sempre a terceira posição, a contar da frente, o mesmo acontece quando se leva ou recupera pessoal das operações do mato. Neste dia, vá lá o diabo saber porquê, a viatura ia em segundo lugar e accionou a mina. Atendendo ao estado em que a viatura ficou, parte da frente toda inutilizada e às projecções de corpos provocadas pelo impulso do rebentamento, foi um autêntico milagre não ter havido mais mortos e feridos. O Furriel Cecílio, que tinha dois meses de CCAÇ 5, foi um dos mortos e ocupava o lugar na viatura ao lado do condutor, tendo a mina rebentado no rodado direito da frente, ou seja por baixo da posição por ele ocupada. Sempre que ia, esse lugar era destinado ao Furriel de Transmissões, Antunes, mas neste dia, que precisava de ir a Nova Lamego e só não foi, como era seu desejo, devido a imprevisto de última hora.

Estranha coincidência, foi também a rapidez, nem meia hora tinha passado após a chegada das viaturas com os acidentados, quando chegou o “Homem Grande” da Tabanca de Uelingará, a apresentar os pêsames das mortes havidas ao Alferes Gomes! Como foi tão célere a vir, a caminhar com o peso da idade, 8 a 9km de distância e tinha já conhecimento do acontecido, quando a Tabanca de Uelingará não ficava junto à picada onde se deu a tragédia?!

Foto 13 > Viatura acidentada na mina no dia 03-08-70.

Foto 14 > Corceiro junto da viatura acidentada.

Um dos feridos graves, com múltiplos traumatismos, alguns cranianos, é o 1.º Cabo de Transmissões Carlos Augusto Santos Pereira, com mês e meio de Guiné; outro ferido, é o Furriel Augusto Soares de Moura, com poucos dias de Guiné, que não tem ainda vinte e quatro horas de permanência em Canjadude, pois chegou ontem na parte de tarde para render o Furriel Nuno António Pereira Rito, que por coincidência também este sofreu traumas provocados pelo rebentamento duma mina, no dia 12 de Setembro de 1969, onde eu estava presente, na mesma localidade de Uelingará, terra que se está a transformar em lugar fatídico para a CCAÇ 5, pois também neste sítio perderam a vida numa emboscada à coluna onde seguiam, dois militares, em 14 de Dezembro de 1967, o Alferes Augusto Manuel Casimiro Gamboa (no sítio onde pereceu está o nome e data da morte do Gamboa, gravado em sulcado, no tronco de uma árvore, desconheço o autor, assim como está também gravado, noutro tronco, na parada que tem o seu nome, em Canjadude) e o 1.º Cabo (salvo erro o nome é) José Ferreira Alves.

Os feridos foram evacuados. Comoveu-me intensamente toda a tragédia deste fatídico dia, mas particularmente a morte do Dinis, assim como o estado politraumático, do Carlos Augusto dos Santos Pereira, de Transmissões, que estava bem consciente da gravidade do seu estado, com ferimentos diversos. Nunca mais soube como foi o evoluir da sua saúde e o percurso da sua vida. O Augusto Moura, que foi um dos acidentados evacuados, além dos traumatismos somáticos, tem sintomatologia de trauma psíquico, pois está com amnésia parcial, não expressa no diálogo memória recente. Esteve cerca de seis meses em tratamento para recuperar e normalizar o conhecimento e a memória dos factos que aconteceram neste dia. Durante cinco meses, circulou entre Bissau para consultas e tratamentos médicos e Canjadude. Acabou por ser evacuado para a Metrópole passados quase seis meses após o acidente. Foi operado no HMP em Fevereiro de 71 e permaneceu na Metrópole durante nove meses, em consultas e tratamentos médicos. Acabou por regressar à Guiné e foi colocado em Bolama a dar Instrução Militar. Por coincidência, também o Furriel Nuno Rito, que o Augusto Moura rendeu, perdeu a memória que nunca mais recuperou, relativa aos acontecimentos do dia em que rebentou a mina na viatura na qual ele esteve envolvido. Quer um quer o outro ficaram com sequelas permanentes para toda a sua vida devido aos ferimentos e aos efeitos no organismo provocados pelo impacto do rebentamento que projectou a massa dos seus corpos, provocando uma acção de compressão e descompressão que afectou alguns órgãos do seu corpo. O Rito, sobretudo, ficou com graves problemas ao nível da coluna vertebral, que se têm agravado progressivamente, temendo ele que possa acabar o resto dos seus dias numa cadeira de rodas. Quer o Rito quer o Moura, felizmente, tiveram um percurso profissional razoável, consonante com a relatividade das suas aspirações e aceitaram resignados os desígnios da vida imposta, com menos qualidade, fruto das mazelas provocadas por acontecimentos que não lhe são imputáveis, sem nunca se terem interessado por esboçar a mais leve tentativa de accionar processo para pedir ao Estado Português uma pensão monetária compensatória, que os ajudasse a dar mais qualidade e conforto à vida quotidiana, de forma a ajudar a suavizar as máculas físicas adquiridas no teatro operacional de guerra, para o qual foram chamados e obrigados a ir, ainda que em defesa da Nação como é corrente dizer-se. Conformados. Pacientes, contentaram-se com a sorte que a vida lhes reservou e estruturaram a felicidade e o seu “modus vivendi” à sua maneira.

Foto 16 > Cabo Dinis a caminhar no destacamento de Canjadude.

Foto 18 > Cabos Carlos Augusto Perreira, com cerveja na mão e João Monteiro, junto da entrada para o refeitório em Canjadude.

Havia que tratar os feridos e homenagear os mortos. Foi elaborada uma escala de forma a garantir continuamente a presença de militares junto dos defuntos. Todos em sinal de respeito, admiração, estima e dor, vestimos farda limpa e própria para estar na enfermaria a velar os nossos estimados camaradas que nos deixaram.

Eu estou de serviço das 18h00 às 22h00 no posto de rádio, e foi-me atribuído o horário de presença na enfermaria, junto dos defuntos, entre as 17h00 e 18h00 e as 22h00 e 23h00. Às 17h00, quando entro na enfermaria, vi logo, em cima duma pequena mesa junto a algumas embalagens de medicamentos, o embrulhinho com os dois rolos de negativos fotográficos que eu tinha confiado ao Dinis para entregar na casa Caeiro, rolos que eu julgava já perdidos. Ainda bem que o não foram, para a imagem do Dinis ficar connosco. Presumo que o Dinis ao preparar a sacola de enfermagem com os diversos utensílios e medicamentos para seguirem na coluna, por distracção se esqueceu e deixou ali os rolos, que assim voltaram à minha posse e mandei revelar. Às 22h00 saio de serviço do posto de Rádio e dirigi-me para a Enfermaria, para mais uma vez homenagear com a minha presença e fazer a minha despedida dos camaradas falecidos.

Cheguei à Enfermaria havia breves segundos, pois ainda não eram 22h05. Precipitadamente desencadeia-se pavorosa flagelação, que mais pareceu que nos apanhou a todos de surpresa, pois já tínhamos neste dia a nossa dose de suplício. Impulsionados pela necessidade de protecção, todos os que estavam na Enfermaria, cuja estrutura física era frágil, de paredes de adobe e cobertura de placa zincada e exposta ao fogo IN, saímos apressadamente cada qual em sua direcção para encontrar meio para defesa e local de abrigo. A flagelação manteve cerca de 20 a 25 minutos, sempre a ribombar com detonações de morteiro, RPG 2; 7 e Kalashnikov, abrandando progressivamente quando o nosso morteiro 81mm, localizado na Tabanca, lado Nascente, Sul, iniciou os disparos, pois a posição deste espaldão era privilegiada para se poder ver a localização donde partia o fogo do IN. Este estava entrincheirado no filão das rochas e nos troncos de árvores existentes, devido à acção de desflorestação circundante ao Destacamento, lado nascente. Veja-se por favor o Poste - P6822.

O inimigo, ao flagelar Canjadude, estava posicionado um pouco distante do arame farpado, e, ou por falta de habilidade, colocação, ou visão, os seus disparos não provocaram a menor mossa física, não houve ferimentos humanos nem danos materiais de espécie alguma.

Dia 4, logo de manhã saiu um GCOMB para patrulhamento e reconhecimento, à zona envolvente donde tinha partido o ataque, eu estive presente. Havia vestígios de sangue em diversos locais, sendo expressiva a quantidade em dois pontos distintos. Foram deixadas no terreno algumas munições e quatro carregadores de arma ligeira, mas material pouco significativo.

Dia 5 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo, saímos para uma operação comandada pelo Alferes Anibal de Sousa, cujo objectivo era seguir os trilhos utilizados na debandada do IN após a flagelação. Estive integrado nessa operação. Os cursos de água têm um generoso caudal, todos eles, as Bolanhas estão todas alagadas, assim como as picadas, o que dificulta muito a actividade operacional no mato, somos obrigados a caminhar dentro de água muito tempo, com as consequências nefastas que isso acarreta. Grosso modo, o IN utilizou na chegada e na retirada o trilho que liga Canjadude a Ganguiró, local onde foram detectados um emaranhado serpenteado de trilhos, presumindo-se que criados propositadamente com a finalidade de nos confundir, para não podermos utilizar uma só pista identificadora, do rumo em que o IN prosseguiu.

Optou-se por um trilho que pareceu ser o mais consistente, que nos conduziu para a zona do Siai, local onde o trilho começou a ser labiríntico, um autêntico enrolado de quebra-cabeças. A morfologia do terreno, no Siai, apresentava relevo muito irregular e de difícil acesso, pelo que a progressão nestas condições e seguindo o sentido do trilho, oferecia muita perigosidade, permitindo ao IN emboscar-nos. Optou-se por abandonar o trilho e patrulhar a área adjacente. Não foram detectados vestígios de presença humana. Será provável que o IN utilize o local do Siai para fazer a cambança do Corubal e desenvolver a sua actividade de guerrilha no sector Sul da região de Nova Lamego. Regressamos a Canjadude dia 6, com agravantes dificuldades na progressão, devido aos terrenos estarem todos encharcados, nos quais a progressão exige muito esforço físico, provocando muito cansaço corporal, e complica a detecção dos trilhos de penetração do IN.

Nos factos do dia 3 de Agosto, houve muitas coincidências que para mim é natural que sucedessem.

Os acontecimentos do fatídico dia 3 de Agosto, (era previsível que algo adviesse, aniversário da revolta no cais de Bissau, Pidjiquiti, era uma data comemorativa para o IN e como tal queriam marcar território, eu pelo menos estava um pouco receoso, e outros mais experientes mais previdentes estariam,) deram azo a muita especulação, como de resto é hábito com tudo o que não queremos que aconteça, há sempre profetas da desgraça a apontar o dedo e a culpa não quer morrer nunca solteira! Houve vozes veladas que tiveram o atrevimento de afirmar que no Aquartelamento alguém tinha conhecimento que a mina existia e que a flagelação ia acontecer. Conhecimento é uma coisa, intuição é outra. Ora, estes boatos geraram uma certa instabilidade e desconfiança entre os militares. Também houve vozes, na altura, de mentes férteis e imaginativas, que afirmavam que em Uelingará pairava a maldição dum espírito vingador, cujo feitiço punidor, só amainava e se purificava quando dizimasse todos os metropolitanos de Canjadude. Outras vozes ainda mais fecundas, afirmavam convictamente que bastava analisar os nomes e sobrenomes dos envolvidos nas tragédias de Uelingará para se concluir qual seria a próxima vítima a tombar, porque o supliciado escolhido, obedecia a uma sequência ordenada por nomes e sobrenomes emparelhados, que se iria repetir. “Mais parecia que havia candidato para destronar as profecias de Nostradamus”.

Em tempos materializou-se uma operação militar, ao alvorecer, à Tabanca de Uelingará, onde todas as habitações foram viradas do avesso, mas nada foi encontrado. No dia 17 e 18 de Agosto, realizou-se a operação “Grão Torcato” que cercou a Tabanca de Tumbum Sincho, onde foram detidos dois elementos da população, que geraram suspeitas, nada mais foi detectado, eu não integrei esta acção.

Não sei a história que terá chegado à metrópole, sobre o que ocorreu em Canjadude neste profético e maldito dia 3 de Agosto de 1970, porém, um amigo de infância, dum dos desditosos falecidos neste dia (o Dinis), que é membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, logo que se apercebeu que eu fui da CCAÇ. 5, e por acaso contemporâneo com os factos, apressou-se a pedir-me informações sobre o caso, porque lhe tinham contado uma história macabra e absurda sobre os acontecimentos desse dia, que eu imediatamente os contradisse, porque estavam desfasados de toda e qualquer realidade do que efectivamente tinha sucedido.

Coincidências da Vida, dirão alguns! O destino, o acaso, o inevitável, o que tem que ocorrer tem muita força, o que é passível de acontecer, acontece mais cedo ou mais tarde, todos têm a sua hora certa, Deus tarda mas não falha, afirmarão outros…!

A Vida é muito breve e é tão delicada e complexa que por vezes poderá até dar-se a coincidência, que ao estarmos a prevenirmo-nos da morte, podermos estar a caminhar para deixar a Vida…! A Vida é um prodígio assaz efémero na existência de cada um de nós, que temporalmente nada mais representa, que o milésimo dos milésimos do período de tempo, (a caminhar para o infinito) que é o tão pouco tempo que nos sobra da morte! Mesmo antes de sermos Vida, (gâmeta) já participámos em renhida e desenfreada competição para alcançar uma meta, que foi disputada por milhões e milhões de concorrentes, para um só ser o premiado, que recebeu o troféu que lhe outorgou a conquista do direito à Vida. Com todo o mérito, cada um de nós pode bem alto Gritar: - EU FUI O VENCEDOR ELEITO, SELECCIONADO ENTRE MUITOS MILHÕES E GANHEI O DIREITO A SER VIDA…! Mas por vezes, valerá a pena o GRITO, se a Vida é tão Efémera …?!

SÓ SÃO COINCIDÊNCIAS QUANDO NÃO HÁ MANIPULAÇÃO HUMANA

Um abraço e boa saúde para todos.
José Corceiro
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)

Vd. último poste da série de 27 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6901: José Corceiro na CCAÇ 5 (16): O depoimento do Armando Oliveira Alves, ex-Alf Mil, Brá, Cheche, Canjadude, 1967/69 (José Corceiro)

2 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Corceiro

Não completei, ainda, a leitura deste post.

Mais uma página da nossa CCAÇ 5. Mais uma tragédia para duas famílias, a dos mortos, e outras mais, a dos feridos, que, já que não estava presente, foi o Antunes substituir-me em Maio anterior, não sei ao certo quantos foram.

Quando terminar a leitura, ficarei a saber mais um acontecimento que tu, como sempre, registavas.

São estas histórias que não estão arquivadas no AHM e que ajudam a conhecer as histórias da guerra que, sem querermos, fomos protagonistas.

Com este texto, vou ter de fazer adendas no trabalho que estou a reunir sobre os Gatos Pretos

Anónimo disse...

Corceiro

Acabo de reler o teu post e como sempre tua precisão nos relatos é impressionante, infelizmente o dia 3 de Agosto de 1970 foi mais um dia marcante para C.Caç 5.
Tenho algumas recordações desse dia fatídico, como seja ver o Furriel Cecilio após o rebentamento da mina, quando foi colocado na enfermaria, não descrevo o que senti por poder ferir susceptibilidades.
Outra situação que me revoltou foi a chegada do “homem grande “ da tabanca de Uelingará, que apresentou na minha presença, os sentimentos ao Alf. Deodato. Também ia obter informações para prestar ao PAIGC.
Fiquei de tal modo revoltado que me deu vontade de o desmascarar no momento, mas não tinha provas, da conivência dele na colocação da mina, tive que conter a minha revolta.
Lembro a dificuldade que se encontrou ao identificar o 1º Cabo Pereira na foto de confraternização do posto rádio que apresentas no blog, até que se fez luz depois de todas as tuas investigações.
Ele só podia ser de transmissões, mas o que era feito dele? Até que descobriste que ele era um dos acidentados na mina.
O Furriel Moura que se vê na foto que apresentas no blog, que na nossa ânsia de encontrar uma foto do Fur. Cecílio chegou a ser confundido com ele. Afinal não se encontrou nenhuma foto do Fur. Cecílio, tendo tu que recorrer ao António Nobre da C.Caç 2464.
Os resultados ao fim de quase quarenta anos podem considerar-se positivos, por isso acho que deves continuar e se precisares de ajuda já sabes que podes contar comigo.

Um Grande Abraço
Antunes