quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7094: Notas de leitura (155): Polón di Brá, de João Carlos Gomes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Foi graças ao Francisco Henriques da Silva, antigo embaixador na Guiné-Bissau e nosso camarada na Guiné que tive acesso a este documento publicado graças à ASDI – Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional.
É compreensivelmente um documento muito datado e incompleto, é um apanhado de acontecimentos aos olhos de um jornalista que juntou os dados que lhe pareceram mais óbvios e evidentes.

Um abraço do
Mário


Poilão de Brá

Uma guerra devastadora, desnecessária e injustamente imposta ao povo

Beja Santos

“Polón di Brá”, de João Carlos Gomes (Bissau, 1998) é um livro singular. João Carlos Gomes é um jornalista guineense credenciado que trabalhou na Rádiodifusão Nacional da Guiné-Bissau e nas Nações Unidas. Em 1998, entrou pela fronteira do Senegal e veio cobrir os acontecimentos do chamado levantamento armado iniciado em 7 de Junho. O Polón di Brá foi o marco de separação entre as posições militares das forças leais ao presidente Nino e as posições da Junta Militar sob o comando do brigadeiro Ansumane Mané. O poilão é uma árvore muito respeitada na Guiné, usada mesmo para cerimónias da etnia papel, à sua sombra reúnem-se os guineenses para conviver.

Os acontecimentos descritos por João Carlos Gomes iniciam-se com o levantamento armado e vão até ao acordo celebrado em Banjul (Gâmbia) e Abuja (Nigéria), em que se previa a retirada total das tropas estrangeiras que tinham vindo em auxilio de Nino Vieira, uma força de interposição garantiria a segurança entre a Guiné-Bissau e o Senegal, ir-se-ia formar um Governo de unidade nacional e haveria eleições gerais e presidenciais o mais tardar até fins de Março de 1999. É escusado dizer que este acordo foi ultrapassado pelos acontecimentos, as forças leais a Nino Vieira acabaram derrotadas, este pediu exílio a Portugal e Ansumane Mané viria, tempos depois, a ser assassinado.

O autor coteja alguns dos acontecimentos que estiveram por detrás do motim militar: queixas persistentes dos antigos combatentes que se sentiam desprezados; revelações feitas por Ansumane Mané de um ambiente degradado no interior das Forças Armadas, revelando que no círculo presidencial estariam os principais cabecilhas ligados ao tráfico de armas para o Casamansa; o presidente Nino destituiu Ansumane Mané; inicio dos confrontos militares que rapidamente se intensificaram e que se saldaram na fuga de muitos habitantes de Bissau quer para o estrangeiro quer para o interior do país. Mas, como é evidente, o pano de fundo é muito mais denso, tem camada estrutural. Por detrás de uma revolta que levou a negociações políticas, em que os revoltosos tiveram uma arma eficaz no Rádio Bombolon, a degradação económica e social era profunda: desmoralização do aparelho de Estado, anarquia em todas as cadeiras de comando, penúria, desastres completos nos investimentos, incapacidade para prestar serviços de saúde e manter o sistema educativo em funcionamento; a própria cidade de Bissau era a vitrina de todo este abandalhamento: buracos nas ruas, desaparecimentos dos jardins, ausência absoluta de higiene, casas degradadas, uma oligarquia a exibir escandalosamente o seu arrivismo perante um povo a viver em condições deploráveis. Os antigos combatentes viam as suas condições de vida a deteriorar-se, o plano de liberalização da economia agravou as já péssimas condições de vida da generalidade da população. O PAIGC perdera totalmente a sua força mobilizadora, dera-se uma cisão profunda entre as forças armadas e o aparelho político.

É nesta atmosfera de desalento que as confrontações militares e as destruições que provocaram levaram ao êxodo das populações de Bissau. as imagens publicadas em Polón di Brá são eloquentes: a população em fuga, viaturas e tanques carbonizados, edifícios destruídos ou severamente atingidos, museus e estabelecimentos pilhados.

João Carlos Gomes disserta sobre o progressivo abandono de Nino, a necessidade que ele teve em, abruptamente, pedir a colaboração do Senegal e da Guiné Conacri, sem medir que tal iniciativa podia ter levado a uma eventual desestabilização de toda esta região da costa ocidental: havia a questão do Casamansa, o cenário de uma guerra civil envolvendo grupos étnicos ou do aparecimento de uma ditadura militar, até à anexação da Guiné pelo Senegal e Guiné Conacri. Sobretudo o comportamento das tropas senegalesas atingiu as raias da infâmia com pilhagens de postos de gasolina, hotéis, estabelecimentos comerciais, violações, etc. O impacto psicológico dos militares estrangeiros foi extremamente negativo, deixou sequelas que irão demorar muitos anos a sarar.

Por via diplomática, iniciou-se o processo de reconciliação nacional. Enquanto se escolhiam os promotores oficiais e os locais para negociações que levassem a um compromisso entre as duas grandes facções, internamente buscavam-se as soluções possíveis para resolver as preocupações imediatas dos deslocados e refugiados (Portugal teve aí um peso indesmentível); começou a discutir-se a necessidade de uma reforma geral e global das forças armadas e uma democratização do aparelho de Estado, controlado com a mão de ferro de Nino e o seu círculo próximo; durante este período que culminou com os acordos de Banjul/Abuja houve manifestações de paz, movimentaram-se os líderes muçulmanos e católicos apelando ao termo de todos os contenciosos.

O jornalista incluiu em anexos o conjunto de documentos de grande importância para a compreensão desta fase da guerra civil: Tratado de Amizade e Cooperação entre a República do Senegal e a República da Guiné-Bissau; manifesto da Junta Militar para consolidação da democracia, justiça e paz; memorandos das negociações entre as duas partes, actas de reuniões conjuntas e um documento reivindicativo de Combatentes da Liberdade da Pátria denunciando a corrupção e nepotismo nas Forças Armadas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7087: Notas de leitura (154): Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Cherno Baldé disse...

Caro Mario,

O acordo a que se refere o livro nao seria o assinado nos anos 70 entre o Luis Cabral e L. S. Senghor?

O Polon de Bra, para além de marco de separacao por altura da trégua (cessar-fogo), foi mesmo um dos locais do inicio do conflito quando alguns funcionarios da presidencia (do protocolo ou da seguranca?)que alegadamente seguiam para o Aeroporto a fim de preparar a viagem do Presidente, foram mortos na manha do dia 7.

O mesmo Polon, simbolizou ainda, aos olhos da Junta militar, a resistencia das forcas patrioticas contra a ocupacao estrangeira protagonizada pelos exercitos dos paises vizinhos que tentaram desalojar os rebeldes do quartel de Bra que, por sua vez, servia de tampao a Base Aerea, transformado em quartel general dos mesmos (revoltosos). Muitos pensam que ali, sob o olhar do Polon de Bra, tera ocorrido, a batalha mais decisiva da chamada primeira guerra de Bissau (que termina com o primeiro cessar-fogo). Um tanque de guerra carbonizado e restos de corpos humanos disputados por caes vadios ainda se encontravam muito perto do local em Agosto do mesmo ano quando regressei a capital, quando ja nao sabia o que fazer com a monotonia da vida na aldeia.

Quando se fala do comportamento das tropas durante o conflito, esquece-se ou omite-se, muitas vezes, de se referir dos actos das tropas da Junta, que na minha opiniao, fizeram a mesma coisa aos estabelecimentos comerciais nas suas zonas de controlo, por exemplo a empresa Geta-Bissau e muitas outras em Bissau e no interior,viram todos os seus bens, inclusive armazens, pilhados/confiscados e o produto revendido além fronteiras.