sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7160: Notas de leitura (160): Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Andei por terras da Galiza, mas não descurei as minhas obrigações.
Li duas obras de grande importância para o nosso blogue: “Guerra na Guiné”, de Hélio Felgas e “Crónica da Libertação”, de Luís Cabral.
Delas começarei a falar amanhã, haverá surpresas.

Um abraço do
Mário


O regresso das caravelas, por João Paulo Guerra (2)

Beja Santos

Em 25 de Abril de 1974 o dirigente máximo do PAIGC, Luís Cabral, convocou o Comité Executivo de Luta. O comunicado saído da reunião advertia de que não haveria negociações sem o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e sem o reconhecimento à autodeterminação e à independência de Cabo Verde, bem como das outras colónias portuguesas. Em termos de concessão, o PAIGC predispunha-se a começar imediatamente as negociações, com cessar-fogo ou sem cessar-fogo. Inicia-se um processo tumultuoso de reivindicações e até de actos de indisciplina. Aquando do golpe de Estado, Senghor estava em Paris e pediu a Spínola para falar com um delegado que ele mandatasse. Carlos Fabião seguiu para Paris e sobre o teor da conversa entendeu manter o maior sigilo. Depois começaram as negociações em Londres e Fabião considera que houve um grande erro do general Spínola em não ter reconhecido imediatamente a independência da Guiné. A este propósito, Almeida Santos vem afirmar que o general Spínola nunca aceitou de bom grado a independência de um território onde ele fora comandante-chefe das Forças Armadas. Para Carlos Fabião, Spínola tinha outros planos: “Ele desejava ir à Guiné, fazer um congresso do povo, que o povo lhe pedisse a independência, e ele, Spínola, oferecia a independência à Guiné. O PAIGC nunca aceitou isso, dizia que era da parte do general um acto de vaidade pessoal, e que se ele fosse à Guiné recomeçaria a guerra”. Alguns milhares de panfletos com fotografias de Spínola ainda seguiram para a Guiné e o recomeço da guerra esteve no horizonte. Quando Fabião chega à Guiné, todos se manifestavam a favor da paz. Portugal foi o 87.º país a reconhecer a independência da Guiné. Depois de 13 anos de guerra, Portugal descolonizou em menos de 20 meses, em África e na Ásia.

E veio o depois. No dia 11 de Setembro de 1974, o PAIGC entrou no palácio do Governo em Bissau. Revolucionários e românticos, traziam os ideais de justiça. Oiçamos Luís Cabral: “Quando chegámos a Bissau, uma das primeiras medidas que tomei foi aumentar o salário mínimo, porque eu achava que o salário mínimo não dava para nada. Mas fiz isso sem ter a preocupação de saber se o Estado podia pagar ou não o aumento. Depois disso, viemos a constatar que o dinheiro deixado pela administração colonial dava para pagar apenas os salários de Novembro e Dezembro. E no dia 31 de Dezembro tínhamos na Caixa do Tesouro 56 centavos. E não tínhamos experiência nenhuma. Tínhamos arroz para mais 15 ou 20 dias e nem sabíamos como comprar o arroz. Foi nessa altura que nos valeu a solidariedade decisiva de um homem, o presidente Siad Barre, da Somália. Ele tinha recebido uma ajuda importante dos países árabes para fazer face à seca e achou que, dessa ajuda, devia trazer-me um cheque de 1 milhão de dólares. E foi com esse cheque que nós arrancámos com o país.

Os grandes problemas da descolonização da Guiné bateram à porta dos africanos que cooperavam com o exército colonial. Em diferentes obras este doloroso e delicadíssimo assunto tem sido ventilado e nem sempre se descobre a determinação em agir bem. Para uns, durante as negociações com o PAIGC, tinham sido dadas garantias de que o país não iria entrar em ajustes de contas. Para outros, teriam sido tomadas todas as iniciativas para trazer os militares para Portugal mas que estes tinham preferido receber o que lhes era devido até Dezembro de 1974. Fabião é duríssimo com eles, custa a crer que o seu juízo implacável seja de todo consistente: “Veio ao de cima a face mercenária deles. Começaram a exigir dinheiro para entregar as armas, para passar à disponibilidade. Chegaram a dizer-me que já não me obedeciam porque estavam com o PAIGC. Eu paguei-lhes os vencimentos a que eles tinham direito até ao fim de 1974. E tentei trazer comigo aqueles que quisessem. Mas o PAIGC também os aliciava. Depois é que lhes tirou o tapete. Nas vésperas de regressar a Lisboa tive uma reunião com eles todos e disse-lhes: “Isto aqui está mau para vocês”. Mas quase ninguém quis vir na altura. Sei que muitos deles foram depois fuzilados. Mas o que quiseram vir comigo, vieram”.

Como é de todos sabido, o PAIGC tentou uma experiência socialista, foi um falhanço clamoroso, a economia colapsou, entrou-se numa fase de ajuda e dependência permanente da caridade internacional. Foi uma fase romântica a que se seguiu a crispação e o devorismo, agitou-se o espantalho do inimigo interno e apontou-se o dedo aos Comandos. As questões étnicas, confabuladas e dissimuladas durante a luta da libertação, vieram ao de cima, em Novembro de 1980.

No campo da especulação, poderá argumentar-se que os dirigentes do PAIGC tinham razão quando pediam a presença das autoridades portuguesas por vários anos, a seguir ao reconhecimento da independência.

Resta saber se existia viabilidade para pôr em marcha um plano de cooperação depois de tudo o que se vivera na Guiné, a própria turbulência dos militares em Maio e Junho. O caldeirão pela luta do poder já fervia e os acontecimentos de Angola e Moçambique foram determinantes para esquecer que os militares do PAIGC podiam saber muito de guerra e da gestão dos armazéns do povo mas não estavam preparados para as complexidades de uma governação pós-colonial, em estado de puro abandono, sem técnicos, sem investidores, sem gestores. Foi um sonho que se consumiu rapidamente e que carbonizou uma esforçada classe política, que não aguentou o tempo da inocência.
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Nota de CV:

Vd. poste de 18 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7143: Notas de leitura (159): Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Unknown disse...

Caro Beja Santos, creio que seria de todo interessante e conveniente em certa medida, comparar (ou confrontar) o conteuodo deste Post com o boletim (ou caderno?) do "Serviços de Informação do PAIGC de 25 de maio de 1974" que tem como titulo: "A nossa força é uma força moral e politica, mas ela é tambem uma força material", cujo sumário é o seguinte:
"Mensagem dirigida ao nosso povo da Guiné e C.Verde, a todos os compatriotas, pelo secretário Geral adjunto do PAIGC e Presidente do Concelho de Estado, camarada Luís Cabral, por ocasião da abertura das negociações do nosso Partido com o Governo Português"
É um documento de 16 Págs.
E ainda não menos importante os documentos:
"Relato da reunião efectuada entre o encarregado do Governo da Guiné e uma delegação do PAIGC" de 23Julho 74, e que teve a duração de quatro horas, em Mansoa.
Portugal: Mj Carvalho Figueira, Mj Ornelas Monteiro, Cp. Paulino.
Guiné: Júlio Carvalho, Manuel da Silva (Manecas) , Caetano Semedo e Humberto Gomes.
Além de outra identica em 29 Julho 74, desta vez em Cacine.
Depois de estes encontros houve ainda mais três Sessões de Conversações, de 15 a 18 de Agosto 74, algures em Cantanhez.
No minimo estes documentos.

Há ainda o Protocolo de Acordo e respectivos anexos, que regulam a fase transitória de 26 Agosto 74.
Tendo posteriormente,31 Agosto de 74 havido outra reunião com a duração de 5 horas entre uma delegação Portuguesa e outra do PAIGC:
a primeira era composta por Brigadeiro Soares Fabião, Mj Hugo dos Santo, Mj Ornelas Monteiro e Cp Paulino. Da Guiné: Constantino Teixeira (Tchu Tchu), Dr. José Araujo, Paulo Correia, Honório Chantre,Mamadu Alfa Djalo, Caetano Semedo e Humberto Gomes.

Seria bom encontrar em Portugal os documentos gémeos ou correspondentes

Com estima
Um abraço para todos e para cada um
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Antº Rosinha disse...

Ao fim destas decadas passadas ler que ao fim de 2 meses Luis Cabral já não tinha dinheiro para os salários, faz lembrar que nós cá fomos um pouco mais poupados, pois só passados uns poucos anos é que nos socorremos do FMI.

Mas as diferenças não são tão grandes como possa parecer.

Anónimo disse...

Verifico, FINALMENTE, que vem a público o que alguns sabíamos quanto ás propostas de Fabiäo em trazer para Portugal os militares africanos que o desejassem,e as VERDADEIRAS reaccöes de muitos deles relativamente a dinheiros e outras condicöes exigidas.Torna menos "garridas" algumas das bandeiras täo politicamente agitadas por alguns.