sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7188: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (1): Carta ao meu querido amigo Fodé Dahaba

1. O nosso camarada Mário Beja Santos vai à Guiné-Bissau a partir do próximo dia 17 de Novembro de 2010.
A este propósito e sabendo que o Mário nos irá proporcionar relatos interessantes da sua viagem, vamos criar uma série dedicada a esta romagem de saudade, hoje inaugurada com uma carta que o camarada Beja Santos dirigiu ao seu querido amigo Fodé Dahaba*.


2. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2010:

Caríssimo Carlos,
É só para ficares com conhecimento do que é que eu ando a preparar.
Ficas autorizado a dar-lhe a publicidade que entenderes.

Recebe um abraço do gratidão do
Mário


3. Carta de Mário Beja Santos para Fodé Dahaba

Lisboa, 24 de Setembro de 2010

Fodé, meu querido irmão,


Por recomendação do Abudu Soncó, que me prometeu portador para esta carta, nos próximos dias, faço-te chegar por escrito o plano da minha viagem.

Espero na próxima semana marcar a viagem entre, aproximadamente, 17 de Novembro e o primeiro fim da semana de Dezembro. Tenho assegurado um quarto para os dias em que ficar em Bissau e o Sr. Fernando Ramiro Semedo, que tem uma quinta em Santa Helena dar-me-á abrigo, no período em que eu estiver na região de Bambadinca. Se ao Sr. Semedo convier que eu parta imediatamente do aeroporto de Bissau para Santa Helena, assim acontecerá. Estarei aí cerca de 10 dias e depois regresso a Bissau. Mas também pode ser ao contrário, fico primeiro uns dias em Bissau e depois sigo para Bambadinca.

Como te disse ao telefone, só vou porque tu me podes ajudar com a viatura e o motorista (que eu pagarei) e porque o Sr. Semedo me dá condições de alojamento. Estou a preparar um livro que é complemento dos dois que escrevi sobre a minha comissão na Guiné. Desta vez, um homem de 65 anos vai rever os sítios onde viveu e onde combateu, vai reencontrar-se e despedir-se dos seus amigos, nada tem de melancólico ou triste, faz parte das leis da vida, muitos dos nossos camaradas já partiram deste mundo, quero-me despedir dos que ainda cá estão e que nunca, em todos estes dias ao longo de 40 anos, esqueci a amizade e a lealdade que tiveram comigo.

O que pretendo fazer?

Em primeiro lugar, percorrer todo o Cuor: De Finete a Canture, de Canture a Gãngémeos, de Carenquecunda a aldeia do Cuor; visitar Sansão, que foi a velha tabanca do régulo, subir depois a Missirá e ir a Cancumba (onde estava fonte onde nos abastecíamos) e depois seguir até à ponte do Gambiel. Claro está que penso visitar demoradamente Missirá. Depois se, houver estrada, ir até Pate Gide, Sancorlá, até Salá. Também se houver condições, descer até Quebá Jilã, que naquela altura era território povoado pelo PAIGC. Noutro passeio, seguir de Cancumba até Gambana e depois Mato de Cão, onde fui praticamente todos os dias, enquanto estive no Cuor; e fazer a estrada entre Saliquinhé, passar por São Belchior e descer até ao Enxalé. A última etapa será subir por Sinchã Corubal e ir até Madina e depois Belel, no fundo todo o território onde vivia a população e o bigrupo que nos atacava no Cuor.

Em segundo lugar, pretendo rever a região dos Nhabijões, seguir daqui para Amedalai, depois Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, se existir. Não te esqueças que percorri esta região a pente fino, um pouco à semelhança das tabancas próximas de Bambadinca, desde Bambadincozinho até Samba Juli.

Em terceiro lugar, percorrer toda a região do Xime, passando por Madina Colhido, Ponta Varela, Poindom, Gundagué Biafada, Baio, Buruntoni e depois a Ponta do Inglês. É muito provável que esteja tudo bastante diferente, haverá certamente população, no tempo da guerra era o Xime e depois o Poidom o Buruntoni e Galo Corubal, onde nunca estive. Combati muito neste sítio, faz todo o sentido voltar a visitá-lo.

Em quarto lugar, mas só se houver condições, fazer o itinerário até Bafatá, onde fui tantas vezes, seja para ir buscar correio, receber instruções no agrupamento, fazer compras, etc.

Em quinto lugar, e também só se houver condições, ir até ao Xitole, pois dirigi várias colunas, fará todo o sentido ir até lá, embora não seja prioritário, tirando a região de Mansambo, onde combati e patrulhei, tudo mais foram colunas de reabastecimento, embora sempre cheia de riscos de toda a espécie.

Em sexto lugar, rever os meus inesquecíveis amigos. Conto que tu possas dar notícia da minha viagem e escolhermos um dia para nos encontrarmos todos em Bambadinca. Tu ficarias responsável por organizar um encontro com arroz e frango assado que, como é evidente, serei eu a pagar. Dos cabos do meu tempo, não sei por onde andam o Domingos Silva e o José Pereira. Tenho feito perguntas ao Mamadu Camará e ao Queta Baldé, mas eles perderam o rasto dos seus camaradas, vivem há muitos anos em Portugal. Disseram-me que morreu o Ussumane Baldé. Parece que o Jobo Baldé vive em Galomaro. O Serifo Candé vive em Biana, ainda estava cheio de saúde quando o fui visitar, em 1991. O Mamadu Jau, um dos meus bazuqueiros, vive em Amedalai. Tenho por ele um afecto muito grande, e sei que sou retribuído pelo Mamadu. Nada sei do Abdulai Djaló, a quem chamavam “Campino”, não se está na Guiné ou no Senegal. O “Doutor”, Quebá Sissé, parece que vive em Farim. Nada sei de Ieró Baldé, o “Nova Lamego” que foi o meu primeiro guarda-costas. Tu tens obrigação de me ajudar com os nomes dos soldados milícias de Finete, aqueles que estiveram às minhas ordens entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969. Disseram-me que o Mamadu Silá era padre, deve viver em Badora ou no Cossé. Tenho imensas saudades de Gibrilo Embalo, do Albino Amadu Baldé (era o comandante das milícias de Missirá) e de Madiu Colubali. Em 1991, andei à procura de Dauda Seidi, também não sei nada dele. Olhando agora para a fotografia que tirei na ponte de Udunduma, no dia de Natal de 1969, vejo Tunca Sanhá, Sadibi Camará, Jalique Baldé, Sadjo Baldé (não confundir com o Sadjo Baldé que morreu em Missirá na noite de 19 de Março de 1969), Bacari Djassi, Fodé Sani, a memória não guardou mais nomes e eu não tenho coragem para te pedir para andares a anunciar esta minha viagem a toda a gente. Faz o que puderes, nunca terei palavras para te agradecer o que vais fazer por mim.

Não podes imaginar a emoção que representa para mim esta viagem, todos estes encontros, rever com os meus olhos todos estes locais, ver o pôr-do-sol em Chicri e sobre Finete. Todas as noites rezo pelos nossos mortos, pelo Uam Sambu, o Cibo Indjai, o Paulo Semedo, o José Jamanca, o Benjamim Lopes da Costa. A distância que nos separa é irremediável e é por isso que me quero preparar bem para um dos maiores acontecimentos da minha vida, visitar pela última vez a Guiné onde me fiz homem.

Logo que esteja tudo concretizado sobre os horários de chegada e partida, telefono-te. Fiquei à espera que a Margarida me falasse do assunto do teu filho, ainda não telefonou. Vê no que eu posso ajudar. Será com muita alegria que te vou ver e abraçar dentro de poucos meses. Desde o dia 22 de Fevereiro de 1969, em que ficaste tão ferido, que te guardo como a imagem de todo o sofrimento em que tem vivido a Guiné. Daria tudo o que tenho para que esta viagem se transformasse na derradeira hora de paz desse martirizado.

Até breve, beijo-te com muito carinho e mando saudades à tua mulher e toda a família,
Mário

__________

Nota de CV:

Vd. poste último poste de Mário Beja Santos de 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7192: Notas de leitura (162): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (2) (Mário Beja Santos)

(*) Vd. poste de 3 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3016: Em busca de... (32): Margarida Dahaba, professora, filha do 2º Sargento Fodé Dahaba (M. Ribeiro de Almeida / J.M. Gonçalves Dias)

4 comentários:

Unknown disse...

Beja Santos, desejo-te os maiores exitos na tua viagem e que consigas aquilo que pretendes concretizar.

Um Abraço
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Jorge Narciso disse...

Caro Mario

Este teu Post remeteu-me imediatamente para a delicia que foi a leitura dos teus livros.

Nele se sente a reposição das tuas emoções, na forma como preparas este tua revisitação: aos lugares, aos AMIGOS e neles, e com eles, a situações inolvidaveis

Viagem???

Viagem será termo inignificante para definir esta tua nova e diferente “missão”, que subtilmente deixas subentender como última, naquela terra.
Sinceramente, por ti, por ela (terra), por eles (amigos) e, um pouco egoisticamente, por nós, desejo que não o seja (ultima)... ainda.

Um ano atrás, mais ou menos por esta altura, vislumbrou-se a hipotese de alguns Especialistas da FAP também revisitarem a Guiné.
Acredita que no tempo que durou essa possibilidade, afinal não concretizada, dormi menos e quando o fiz sonhei com tantas coisas, há muito remetidas ao limbo.
E no “limbo” a s tive que “reguardar” até que…

Mas como a tua seguramente se efectivará, deixa-me desejar-te que, até ela, usufruas sempre do "sono dos justos" e que a estadia ultrapasse (se possível) as expectativas que naturalmente enformam os teus sonhos presentes.
Naturalmente nos ficas a devedor do devido o relato.

Recebe um sentido e "invejoso" Abraço

Jorge Narciso

Jorge Narciso disse...

corrigindo:
Naturalmente nos ficas devedor do relato.

Anónimo disse...

Caro Mário
Uma viagem para recordar até ao fim da vida...
Transmite essa emoção para prosa e fotos, de certeza que contribuirão para um belo livro sobre a Saudade e a Amizade, já que esta é como os Diamantes...é ETERNA !!!
Mantenhas
Abraço Fraterno
Luís Borrega