terça-feira, 2 de novembro de 2010

Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 31 de Outubro de 2010:

Caro Carlos Vinhal e Editores
Como é feriado, ou domingo hoje e feriado amanhã deve estar de serviço o Vinhal. Ele está de serviço de segunda a segunda e aos feriados e dias de festa. Por conseguinte, salvo contratempo de ultima hora de serviço está.

Assim sendo, mesmo com o baralhar desta hora, que é só uma e dá para aborrecer, deprime, veio com neve e frio, chuva e vento uma m... chatice. Raio isto por vezes faltam as palavras e não queria dizer merda.

Como dizia e, em virtude de andar por aí, um ou outro escrito sobre os antigos militares portugueses de origem africana, cortei dois escritos, voltei a cortar, arredondei e vou anexar.

O titulo pode ser pouco ortodoxo. Cabral, Cabrais e suscitar alguma dúvida. Nada tenho a ver com o nome deles.

Quanto ao tal americano ou alemão ou só doutorando de história também pouco tem a ver com isto. Fica a saber, já sabia certamente, que há o verbo fuzilar. Não se praticava nas Forças Armadas Portuguesas.
Quanto à tese que atinja os objectivos pretendidos.

Um bom feriado.
Abraços do Torcato


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 24

Cabrais

Por vezes escrevo e ponho o título depois. Neste caso pus antes. Um nome, dois homens e, segundo estou informado, bem ou mal, muito diferentes.
Vou só abordar dois casos, levemente, parecendo muito pouco com eles ter. Não faço qualquer consideração mais. Devia faze-lo. Penso mesmo que seria necessário dizer algo mais. Fica para depois. Terei esse direito? Não sei. Mas se o não tiver que interessa isso, se nada dissermos caímos no amorfismo.
Quantas vezes se encobrem em mantos de silêncio crimes? Quantas vezes se assistem ao tecer de louvores e não são tão merecidos assim?


1 – Cabral (Luís)

Quatro anos depois de Abril, diante do pelotão (?) de fuzilamento qual teria sido o seu comportamento?
Acredito ter olhado com algum desprezo para quem comandava, para quem iria puxar o gatilho e, certamente, antes de abraçar com o ultimo pensamento a família, desprezou os mandantes, os senhores dos efémeros poderes daquele jovem País.

Para quem dialogou tanto com a morte, feia, desdentada e velha, para quem tanto naquela guerra combateu, do nosso lado claro, para quem acreditou num País novo, penso, pelo que dele conheci não ter sido de outro modo.

É tão estranho caminhar para uma possibilidade de morte onde os homens se temem, não se vêem, não sabem se se encontram mas caminham no medo e, de repente no encontro, o medo voa, vai-se e eles ficam mas já não são eles no seu todo. A parte do medo foi e só a outra parte deles ficou. Se a morte acontece cai o silêncio e só se ouve o sair do cheiro adocicado do sangue dos feridos.
Ele e muitos como ele a isso se habituaram.

Conhecemo-nos em 1968. Ele comandava ou era segundo de um Pelotão de Caçadores Nativos. Gente boa e valente. Fizemos alguns trabalhos juntos. Um deles foi uma operação na zona do Enxalé. Foi fuzilado em Porto Gole, não muito distante dali, dez anos depois.

Dez anos a separarem aquela operação estúpida, aborrecida e com demasiados contactos com o IN.
Ficamos amigos. Enquanto estive na Guiné ia tendo contactos ou só noticias dele. O Pel Caç Nat passou a ter outro Comandante, curiosamente um amigo também. Ele, depois de breve sobreposição, regressou a Bissau. Continuou militar, passou depois para os Comandos Africanos. Há uma foto dele na capa do livro do Amadiu Djaló – Guineense, Comando, Português. Ele era isso.

Depois de Abril ficou pela Guiné. Certamente acreditou num País novo, num poder vindo de Cabral (Luís), e, porque não acreditou que se iam implementar os ideais de outro Cabral, já então falecido e, por isso mesmo ou não, a ser esquecido. Erro dele, desse meu camarada.

Gostava de saber o porquê. Gostava de saber porque quatro anos depois isso aconteceu. Ingenuidade minha.
Até gostava de saber porque não consigo esquecer, a morte dele e outros, e perdoar ainda menos.

Deformações. Gente mal formada ou, talvez melhor, deformada como eu.
Certamente teria, como eles, o mesmo fim.


II – Cabral (Amílcar)

Era correio dele. Entre Conacry e o Leste. Só? Talvez mais.
Tinha, se bem me lembro, o posto de Comandante do PAIGC.
Foi feito prisioneiro em Mina, base IN perto do Xitole e viajou para Bissau. Como habitualmente falaram com ele e respondeu, tanto assim que veio fazer, como guia, chamemos-lhe assim, uma operação connosco.

(Nota breve: - Cheguei a Bissau, vindo de férias em Portugal, cerca de um mês antes desta operação. Disseram-me, com todo o à-vontade, que iria ser feita uma grande operação na “zona onde eu trabalhava”. Com estas fugas de informação... lá ia a guerra… mas era demais creio eu. Mesmo com tanto bufo).

Como dizia: - na véspera da tal importante operação, foi recebida uma mensagem a anunciar a vinda de um guia especial.
Horas depois, montada a segurança ao héli, eis que chega o homem.
Fui buscá-lo. Porquê eu? Não me recordo. Recordo, isso sim, ter assinado uns papéis e ter havido uma cena caricata com umas algemas. Continuemos.

Os papéis assinados, entregues, salvo erro por um oficial carteiro, eram uma espécie de apólice de seguro de vida ou encomenda recebida com aviso de recepção. Acrescentaram, em reforço, a importância da encomenda e foram-se a caminho de Bissau, levantando a poeirada do costume.

Olhei para o tal guia e vi um homem de estatura média, magro, calção e camisa, olhar sereno. Nada lhe disse. Enquanto caminhava para a zona do comando pensava para comigo: - mas que vale a vida de um homem aqui neste buraco ou nos locais para onde vamos? Nada. Menos que zero ou zero a caminhar para menos infinito. Eu, ele, todos nós éramos peças de um sistema.
Só que sem garantia. Se tinham defeito ou avariavam era um problema. Ele devia saber e tanto assim que a uma pergunta minha nada respondeu. Entrei no jogo e entreguei-o a quem sabia tratá-lo com cuidado.

No dia seguinte lá fomos, cuidados redobrados, as dúvidas a aumentarem e a resposta veio pela madrugada; uma valente e bem montada emboscada. Nunca esqueço aquela emboscada. Quatro feridos no meu grupo e a raiva a descarrilar. Ele e certamente muitos carregadores balantas a observarem a nossa reacção. Com a acalmia e depois das evacuações fizemos o balanço, mais um balancete e, para mim, foi a evacuação num dos últimos hélis.

Voltei recuperado dois dias depois.

Há pouco tempo, ao ver um vídeo de um helitransporte as imagens bateram fortes em mim. O aviso do piloto: - um minuto… o rotor mais forte, três para um lado e dois para o outro, o capim a ondular forte e a agachar-se e a subir com o héli a sair, a espera breve a virar eternidade e a fuga para o desconhecido da mata. Só que, desta vez, estavam lá o Comandante da minha Companhia e os meus camaradas. As saudações, os risos breves e a alegria do regresso. Passado pouco tempo vi-o. Perguntei pelo comportamento dele. Fala muito pouco e a comida quase não lhe faz falta.

Como estávamos à espera de ordens e era quase final de dia, sentei-me perto dele. Passado pouco veio cumprimentar-me em francês. Respondi-lhe e perguntei se não falava português. Sabíamos que ele falava várias línguas e dialectos.
Sorriu e falou em português. E em português nos entendemos durante os dias que durou a operação. Não descrevo aqui e agora. Creio já dele aqui ter falado.
Por vezes torneava e não me respondia. Outras era ele a perguntar e eu a fugir à resposta. Um dia disse-me:

- Sou um homem morto. Se tento fugir vocês abatem-me. Se conseguisse o PAIGC fuzilava-me.

Olhei-o e pouco ou nada disse. Retive a palavra fuzilar. Nesse dia ou no outro perguntei-lhe e ele habilmente fugiu à questão. Era natural. Mesmo assim fiquei a saber bastante nas conversas tidas.
Regressou connosco. Vinha estafado e ajudamos na sua recuperação.

No outro dia um héli veio buscá-lo. Despedimo-nos com militares e amigos. Amigos de futuro incerto. Tinha a noção de que, naqueles dias tinha convivido com um homem de fortes convicções e saberes. Sabia o que dizer e até onde podia ir. Respeitava a nossa tropa e disse-o sem lisonja.

Mansambo > Alf Mil Torcato Mendonça acompanhado pelo prisioneiro do PAIGC

Talvez em Bissau o regresso tenha sido festejado com interrogatório mais duro. Talvez. Certo é que, passado pouco tempo no Batalhão foi recebida uma mensagem a pedir informações sobre um alferes. Tudo passou.
Dele nunca mais soube.

-Em nota de rodapé:
Devia ser feita uma análise ao PAI e ao PAIGC. Duas letras GC, dois Países hoje, colónias outrora, gentes que tinham e têm enormes diferenças. Um dia disso poderemos falar. Porque não?
Até poderá falar alguém. Devia ser feito.

Em Parte Incerta Outubro de 2010
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7196: Blogoterapia (166): Um abraço fraterno neste ultrapassar dos 2,1 milhões de visitas (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor

1 comentário:

Anónimo disse...

Amigo Torcato,

PAI, PAIGC e PAICV, devem ser analisados mas não por nós mas por aqueles que sabiam escever e tinham uma cultura africana que nos falta a nós tertulianos em geral.

Ou seja, uma análise feita por eles próprios, aquelas dezenas de fundadores de que alguns ainda estão vivos.

Pena que se exclui em geral o PAICV de todas as conjunturas possíveis que se possam imaginar, quando foram essas dezenas os maiores obreiros de tudo o que se seguiu de bom para uns de péssimo para outros, não só na Guiné como nos outros paises lusófonos africanos e até Timor.

Cumprimentos,

Antº Rosinha

Cumprimentos