sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2010:

Malta,
O traçado da estrada, a partir de Jugudul, está substancialmente modificado. Toda aquela recta que vai até Finete foi afastada do Geba. Ao princípio desorientei-me, os meandros do rio estavam longe, apareciam difusos.
Em Mato de Cão, vi-me rodeado de casas, quase em cima da encosta, senti que a confusão era total. Depois tudo se esclareceu, mas foi preciso andar muito à pata, subir e descer Mato de Cão, Chicri, Gambaná, Finete. Irão ser dias irrepetíveis. Haverá até um momento, conversando com o Sr. Biloche, um ilustre empreendedor de Finete, em que cheguei mesmo a apalavrar uma casa para o Jorge Cabral.
Há coisas que acontecem só na Guiné.
Quanto ao dia que que aqui se fala, começou e acabou bem. Entreguei bacalhau e azeite de Avis em duas moradas.
A minha amizade com o Fodé crescera em Missirá, à mesa, comendo bacalhau cozido com batatas. Era indispensável regressar com bacalhau, se as plantas precisam de água, aquela amizade tinha que ser regada, na circunstância solene, com bacalhau.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (4)

Beja Santos

20 de Novembro: De Bambadinca para o Bairro Joli

1. A primeira incursão da manhã está reservada ao local em que funcionou o QG, o Quartel-General, a respectiva messe de oficiais e um conjunto de instalações onde se albergavam os oficiais do quadro permanente e milicianos. É um amanhecer abafado, depois latejou o calor e agarrou-se às casas, à estrada e aos corpos. O Tangomau está furioso, não repararam o duche da casa de banho, já fez as malas, deixou a bagagem no quarto, tal como combinou com a encarregada de recepção, esta desfaz-se em sorrisos tal como se desfaz em promessas quando fala nas reparações, há três dias consecutivos. O Tangomau inflecte à esquerda e sobe a antiga estrada de Santa Luzia, vai à procura, de acordo com a sua memória, dos locais onde teve reuniões, onde recebeu guias de marcha, onde se apresentou nos momentos em que chegou a Bissau, onde comeu e dormiu, até onde viu cinema.

2. Esta estrada de Santa Luzia é a mesma Pansao N’Isla de que já se falou, liga o antigo QG até Amura e Bissau Velho. O que vai encontrando pelo caminho tem pouco a ver com a realidade de há 40 anos: há cantinas, estofadores e até uma agência funerária com um jogo de matraquilhos à frente. Sente-se a decomposição dos edifícios da era colonial, algumas organizações não-governamentais procederam a restauros antes de ali se instalarem. Há hortas e, um pouco antes de chegar à guarita que assinala a chegada ao QG, emerge, muito populoso, o Bairro de Santa Luzia. O Tangomau limita-se a ficar especado à entrada das instalações do Quartel-General, o edifício principal está esventrado, foi num daqueles gabinetes que explodiu a bomba que matou um chefe de Estado-Maior das Forças Armadas da República da Guiné-Bissau, numa espiral de ajustes de contas que culminou com o assassinato de Nino Vieira, e ainda não se sabe se findou, em definitivo. Não se pode entrar, o Tangomau não pode rever os sítios pode onde andou em 1991, quando ali trabalhava diariamente como cooperante do Ministério da Indústria e dos Recursos Naturais.

Embrenhou-se em Santa Luzia e deu consigo a visitar em primeiríssima mão o hotel Azalai que maquilhou as instalações do antigo QG e do antigo hotel 24 de Setembro. O que era a messe de oficiais e as salas de convívio ainda é perceptível no traçado exterior, nada mais. A fisionomia dos bangalós está modificada, há ajardinamentos novos, adaptaram-se ruas, o Tangomau deambula surpreso por tanta novidade e chega à antiga piscina onde turistas tostam ao sol. Sem dificuldade maior, logo identificou o espaço onde, há mais de 40 anos, era possível estar ali sentado nas noites de cinema. E até aconteceu uma coisa curiosa, o Tangomau regressou ao passado e recordou um filme desempenhado por Rod Steiger, uma criação admirável de um usurário que acabou vítima da sua concupiscência pelo dinheiro, num bairro esconso de Nova Iorque, talvez o Bronx.

Nada há mais a ver, ele ainda anda à procura de uma instalação tipo armazém onde funcionava o Vaticano III, era um albergue de passagem para milicianos, aí se despediu da Guiné, entregaram-lhe um lençol roto, fora obrigado a aceitar, não vale a pena esmiuçar as peripécias, já em Portugal um agente da PSP bateu-lhe à porta e foi imperativo: ou pagava 17 escudos e 50 centavos pelo lençol danificado. O Vaticano III desapareceu, não faz parte dos equipamentos do hotel Azalai, paz à sua alma.

Segue-se a descida da estrada de Santa Luzia, depois inflexão para a Praça dos Heróis Nacionais, faz-se uma paragem para beber uma bica na Pastelaria Dias & Dias. Como não há pejo em contar, o Tangomau fez um estranho escrutínio de livros para lhe fazerem companhia nesta viagem. Desta vez, nada mais nada menos que “Novas Cartas Portuguesas”, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, 9.ª edição, anotada por Ana Luísa Amaral.
O café não é dos melhores, mas o regresso à leitura deste livro é compensador, marca a pausa antes de descer a Baixa de Bissau até ao Pidjiquiti. A primeira vez que leu as “Novas Cartas”, sentiu-se inseguro: não era um romance, havia ali um amontoado de cartas, poemas, confissões sobre o corpo feminino, alguma crueza sobre relações sexuais, tudo a pretexto das cartas seiscentistas de Soror Mariana Alcoforado. Já lá vão quase 40 anos, o brado que a obra teve, a sua imediata proibição e os interrogatórios da PIDE às autoras, o processo judicial, podem hoje ser vistos como ridículos, anacrónicos, pois então. Voltar a mergulhar nesta obra é menos importante para apurar a consolidação da igualdade de género e mais para sentir um incontestável apuro literário, pois estas três autoras souberam escrever a seis mãos coisas tão belas, assim:

“Um vinho velho que adormeceu há séculos, amodorrado nos frascos postos em fila, com as suas pesadas rolhas de vidro trabalhado.
Eis, meu amor, a morte à qual tu afinal não pertences:
desço sozinha, ambiciosamente, pela vertigem, e descanso enfim nos degraus escondidos debaixo das árvores:
enormes degraus de pedra carcomida, escavada pelos anos, de onde a minha cabeça pende e onde os cabelos se espalham ainda aquecidos e vivos. Agarro com as mãos as tuas mãos que já me desprendem para o vácuo.
Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca da tua boca, o traço molhado da língua, dos teus dentes.
Desço:
macio deve ser o chão que as árvores conservam com a sua seiva.
Não necessariamente meu amor sem ti a liberdade ou a pressa de morte no meu corpo.”

Emerso nesta prosa poética, neste género literário gongórico, excessivo do princípio ao fim, atém-se menos às teorias feministas e mais à plenitude deste encontro de mulheres, à análise de percurso e de processo e à expressão literária singular que faz com que “Novas Cartas Portuguesas” continue a ser uma obra singular, impar, na literatura portuguesa.

3. Entrando por uma rua lateral de Baixa de Bissau, o Tangomau encontra-se numa praça onde esteve outrora a estátua de Honório Pereira Barreto, dali o apearam depois da independência, sabe-se lá com que acusações, e talvez na ignorância de que sem este governador nado e criado na Guiné as fronteiras da actual República da Guiné-Bissau poderiam ser outras, a hora é imprópria para dissertações históricas e moralidades. Regista um edifício denominado Centro Cultural Francês, entra e bisbilhota, confidencia para os seus botões que tem ali atmosfera para passar para o caderno as suas impressões de viagem. Não hoje, quando regressar de Bambadinca. E segue para o Pidjiquiti, caminha pelo esporão do cais, há barcos a atracar, outros a partir, as gaivotas esvoaçam, ouve-se nitidamente o bulício das negociações do peixe.


Aquele cais é um pólo de atracção. Poucos são os livros sobre literatura da guerra colonial que não tenham começado aqui. Deste cais avista-se agora o terminal cargueiro que destruiu a panorâmica da antiga marginal. Há um ponto do Pidjiquiti que é inultrapassável, tem a ver com enfiamento da Avenida Amílcar Cabral, é um traçado linear, de cá para lá permite uma vista desafogada, consegue até esquecer as ruínas permanentes de tantos edifícios. Seguindo pela sua esquerda, o Tangomau progride, em passo estugado, para a Embaixada de Portugal, são perto de 13 horas, é ali que vai almoçar a convite do Sr. Embaixador.

4. O interior da Embaixada tem decoração personalizada, o Tangomau percorre as salas com um copo de gin na mão, aguarda a chegada do diplomata, vê retratos (seguramente dos seus familiares), obras de arte criteriosamente escolhidas. António Ricoca Freire aparece e confirma que é o responsável por aquele desenho de interiores, introduziu cores, mudou os conteúdos das paredes, estão ali os seus haveres, que o acompanham em todas as suas missões, leva uns bons anos a atravessar África.

O Tangomau não vai falar da cooperação militar, nem científica e técnica, jurídica ou agrícola, na saúde ou na segurança social. Conta o que viveu naquelas paragens há 40 e há 20 anos atrás, como ofereceu os seus livros referentes à comissão militar ao Sr. Embaixador, sente-se desvanecido quando este lhe fala empolgado do primeiro volume cuja leitura está praticamente concluída.

Conta ao que vem, parece um paradoxo esta despedida, afinal tem 65 anos, tirando uns problemas no joelho direito nada de grave tem no cadastro, que se saiba. É verdade que tem havido uma verdadeira razia entre os seus soldados, não há ano que passe que não cheguem notícias de óbitos. Só raramente lhe chegam boas notícias, olhe, mal chegou a Bissau e quando se mostrou compungido com a morte do Benjamim Lopes da Costa, antigo primeiro-cabo que em momento desvairado até lhe chamou “branco assassino”, alguém observou: “Nada disso, está vivo e bem vivo, reformou-se, pode encontrá-lo no bairro da Ajuda”.

Para ser preciso, conversava ele à mesa da sala de jantar, já se tinha comido uma sopa de feijão encarnado com uns olhinhos de azeite, a que se seguira uma estupenda lasanha de carne, repetira, sem vergonha, sentia-se mentalizado para as dificuldades que se adivinhavam a partir de Bambadinca, viera, confessou, não só para se reconciliar e até espanejar os últimos fantasmas mas para encontrar a encenação do final de um livro que tem entre mãos. É uma conversa ciciada, são dois interlocutores cúmplices, um que revela um segredo, outro que tem como profissão absorver e filtar os segredos dos outros. Nos jardins ouve-se o piar das aves entre o sombreado de poilões e cajus.

Até que alguém vem avisar que o Sr. Sabino está pronto para partir.
António Ricoca Freire acompanha o expedicionário à porta, augura-lhe a plenitude dos sucessos, pede-lhe prudência e reclama que pretende informação dos resultados.

Recolhe-se a bagagem da Pensão Lobato, está confirmado que a casa de banho continua a aguardar reparação, e de Bissau, por via de Bissalanca, Safim, Nhacra, Jugudul, sempre o jipe a dançar entre o alcatrão esburacado, comentando o Sr. Sabino o cultivo do arroz pam-pam, um arroz de sequeiro muito apreciado no chão manjaco, chega-se àquela recta que passa pelo Enxalé, Saliquinhé, Mato de Cão, Gambaná, Finete, a estrada agora enviesa em torno da bolanha, já se passou a ponte sobre o Geba, segue-se pela Bantajã Mandinga, de certeza que ali à direita é o caminho para Fá, já junto a Bambadinca é certo e sabido que temos Santa Helena, mas vamos estrada fora, inflecte-se à esquerda, contorna-se o velho porto e até a estrada que o Tangomau fez vezes sem conta, subindo ou descendo a pé, e lá no alto avista-se um arremedo de mercado ou feira, pergunta-se onde vive Fodé Dahaba, um adolescente entra no jipe e encaminha os viajantes para a morada demandada.

Diga-se em abono da verdade que o reencontro é comovente, há gente entre os Dahaba, os Fati e os Sanhá que lacrimejam ou incitam à coragem, entre gritos e clamores, nisto de reencontros o chorar é explícito, consentido, partilhado.
O Sr. Sabino a tudo isto assiste estupefacto, ninguém viera até hoje à Embaixada para se lançar nos braços de antigos combatentes, preparado para calcorrear lugares ermos, manda a sabedoria da vida que há sempre uma primeira vez para ver e até acreditar no que os olhos vêem.


O Príncipe Samba, o meu querido amigo Albino Amadu Baldé, que vive em Sinchã Indjai, perto do Xitole, deixou ao Tangomau esta carta amorosa. Foi o suficiente para que, na manhã seguinte, a caravana dos camaradas da Guiné se deslocasse ao Xitole… É tão bom que alguém nos escreva uma carta tão bonita!

5. A carta enviada há semanas atrás é lida em voz alta, como se de edital se tratasse. As viaturas são apresentadas, o Tangomau olha transido para duas viaturas semiarruinadas, com carências impossíveis mesmo numa Roménia ou Bulgária: vidros esmagados, partidos e presos com fita-cola; farolins desaparecidos; capôs boquiabertos, mostrando o interior arruinado; bancos esfarrapados, adaptáveis a qualquer contingente, e mais que se sabe acerca de viaturas que se movem por milagre. No mínimo, o Tangomau aguarda que esse milagre dure todo tempo da estadia. Fodé dá ordens para o dia seguinte:

“Amanhã o Calilo vai-te buscar às 8 da manhã, há milícias de Finete que querem falar contigo, depois vamos visitar a minha família aqui, seguimos depois para Amedalai. Depois vamos ao Xime e a Ponta Varela. É impossível irmos à Ponta do Inglês, a estrada está cheia de água. A mesma coisa entre Amedalai e Demba Taco. Tem paciência”.

O Tangomau tem paciência. Já cumprimentou meio mundo, como não tem o caderno à mão não fixou nomes que se irão tornar tão comuns como Braima, Madjo, Aliu, Fatu ou Nhalim. Calilo no que resta de uma Renault Express leva-o até ao Bairro Joli, é em casa da família Semedo que se vai aboletar. É melhor ficar por aqui. É que muito há a dizer sobre o Bairro Joli e esta quinta que Inácio Semedo ergueu com tanto amor, muito antes da guerra. O importante é saber que a bola de fogo paira sobre os palmares de Finete quando ele é acolhido no Bairro Joli. E por hoje, ponto final.
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Notas de CV:

(*) Vd. Postes de:

7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7397: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (3): O segundo dia em Bissau
e
9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010

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