domingo, 26 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7505: Blogoterapia (170): A Casa da Praia (Torcato Mendonça)

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 21 de Dezembro de 2010:

Caros Editores
Vai direito ao Carlos Vinhal, ao Blogue certamente e se apanhar o Luís Graça que a ciática, estúpida dor, o deixe de atormentar.

Por isso, pelos meus tormentos do passado, sentei-me e escrevi. Devia ter revisto melhor Mas é Natal e lembrei-me de algo que me atormentou e, porque não, de algo que me foi querido e no Natal seguinte de mim desapareceu.

Vamos perdendo e ganhando neste passar pela vida.

Um Bom Natal para Vocês, para a Familiar e para Todos, crentes ou não desde que sejam Homens de Boa Vontade, de Dádiva e Amor ao Próximo.

Fazem disto o que entenderem é vosso e vosso também é um abração que vos envio,
Torcato


A Casa da Praia

O copo rolava entre os dedos, atravessado pelo olhar a perder - se logo ali ou a projectar-se longe, muito longe, de onde só parte dele voltara.

Para lá voa o pensamento e isso tornava o olhar amortecido, baço, amarrotado.

Buscava o quê e porquê? Por nada? Por uma desejada aquietação, uma adaptação a esta nova realidade diferente e incómoda.

Por estranho que lhe parecesse era o seu mundo. O mundo do seu viver de outrora. Certamente não tinha ficado estático, certa e naturalmente avançara, como na canção - …pulara e avançara como bola… ele não. Por isso ali estava, parado, preso ao breve momento, ao rolar do copo, aos mil pensamentos a irem e virem, tentando aos poucos, sair daquele torpor e caminhar por um novo trilho. Qual?

-Dás-me um cigarro?

Sobressaltou-se e olhou-a. Cabelos negros caídos, olhar amendoado, sorriso leve a sair de uma boca de desejo.

Mal esboçou o gesto de se levantar. Viu-a sentar e sorrir em espera do pedido feito.

- Dá duas ou três fumaças antes. Não gosto do sabor a gasolina do “Zippo”.

Falaram um pouco e pediu para ele a acompanhar à casa da praia.

Já no carro olhava a imensa planície, a charneca, as árvores e, até sobre isso fazia comparações, até nisso estabelecia a diferença com as bolanhas.

- Dá-me outro cigarro e diz-me porque vais tão calado. Estás sempre ausente. De quando em vez pareces desaparecer. Estás diferente, tão diferente

- Observo só e já vejo o mar. Não vale a pena fumares a esta velocidade.

A aldeia apareceu ao fim da recta, numa visão de quietude, casas brancas ladearem a estrada que, aos poucos, se tornara rua.

Sentiu um pouco de frio ao descerem do carro. O cheiro da brisa marítima e o som ritmado da ondulação forte adocicavam o ambiente e acalmavam-no.
Enlaçou-a pela cintura e sentiu o ligeiro estremecer.

- Tens frio?

- Um pouco. Vamos já a casa e depois ao café. Deves querer comer perceves. Tenho uma proposta a fazer-te: porque não passas uns dias aqui, na casa da praia? Fazia-te bem. Pensavas, estavas junto ao mar, eu vinha cá uma ou outra vez. Depois do Natal claro.

Nada disse e nem quis entrar. De facto, talvez ali se encontrasse melhor com ele. Depois do Natal, claro. Este ano iria passá-lo com a família.
O ano anterior passara-o com outra família, o pessoal da CART 2339. Recordava os rostos de seus camaradas, expressões de alheamento ao que se passava em redor, pensamentos a irem para junto de seus familiares. Faziam, mesmo assim, tentativas de ali fazerem Natal. Apareceu bacalhau, talvez liofilizado, batatas e outras imitações para enganarem mentes e paladares.

Natal a quarenta graus, mas era Natal.

Recordava-se de se sentir mais atento, besta militar que era e, por isso mesmo, atento a um possível ataque a Mansambo. Eles estavam logo ali e nada tinham a ver com o Natal ou com a vida deles.

Outrora ou agora era ilha, era um homem só, um sujeito, quer lá ou cá, deslocado, em grande parte, de si.

Houve jantar e alegria em Mansambo, meninos sem prendas, meninos homens de rostos fechados em sorrisos forçados, ali e, todos eles iam muito mais para além, para junto de outros que amavam e a brutalidade imposta não apagara.

Esses outros, estando nesse além para onde parte deles ia, certamente neles pensavam e, porque não, alguma lágrima furtiva pelas caras rolara.
Eles não. A maioria, quase a totalidade, secara as lágrimas há muito. Natal no mato, na mata, naquele lugar erguido por eles e transformado em aquartelamento, em lugar de viver, de lutar. Lugar a muito e a nada dizer.

Sentiu o leve toque dela e disse-lhe de pronto.

- Aceito. Depois do Natal venho até cá uns dias Só. Eu e o ruído do mar podemos encontrar um caminho. Espero que não o das caravelas.

- Pensas voltar? É isso que queres? Ainda?

- Irei pensar e certamente encontrar-me melhor. Percebes?

Porque não vamos á procura de perceves ou de uma sapateira…?

Hoje, quarenta anos depois, recorda ainda quanto foi difícil adaptar-se à vida civil… tanto tempo, tantos Natais depois de só um por lá passado.

Quase Natal de 2010
__________

Notas do Editor:

(*) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7435: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (26): Siga a Marinha (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7503: Blogoterapia (169): Para quando um Soldado Deconhecido das últimas guerras de África? (José Belo)

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro 'camarigo' Torcato

Esta tua 'história de Natal' é bem reveladora da dificuldade de (re)adaptação por que passaste. E olha que ainda hoje em dia...

É também, para além do mais, uma belíssima história. Com sentimento, com 'alma', com interrogações.

Abraços
Hélder S.

Anónimo disse...

olá Amigo Torcato Mendonça!

Com que então, em mais um Natal das nossas vidas, o Sr. recorda... um tempo que não esquece!
Difícil, ou mesmo impossível, esquecer o passado, seja ele, bom ou mau!
Mas, é evidente a sua ligação a esse tempo, que tenho a certeza, lhe trás boas e más recordações.

Gostei da história, solta, esclarecedora,evidenciando o seu grau de ligação a um passado "presente".

É assim meu amigo!
Não se passa impunemente por uma experiência dessas.
Mas...mantenha-o à distância a que se encontra!

Um Abraço fraterno da amiga

Felismina Costa

Anónimo disse...

Viva Torcato!

Tuas palavras... brisa sentida, de um pensamento ondolante nos trigais da planície!

Sim lá nesse Natal de Massambo a ondolação era de capim aspero e cortante.

O que aqui tão profundamente transcreves, é um Natal consequente de vivência machucada pelo passado.

Bonito!

Como eu gosto de ler e procurar a beleza escondida, nas palavras que roubas ao pensamento.

Obrigado meu amigo, por este tão belo e sentido naco de escrita.

Sonha!... Com essa bola colorida que ninguém nos rouba.

Hoje! Sumula de alguns Natais que se foram, que seja a esperança de sempre um Natal melhor.

Um abraço do tamanho da Planície!

Mário Fitas