quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7525: Notas de leitura (181): Tempestade em Bissau, Ano 1970, de Mário Gonçalves Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Queridos amigos,
Que eu saiba, é o primeiro médico a afoitar-se nas incursões literárias da guerra da Guiné. Não é uma grande lançada em África mas dá para saudar as reconstituições de atmosferas e vivências militares.

O autor centra-se em Tolentino Menezes, o que certamente o fascina é mostrar como nestes períodos de mudança o ser humano defende-se ignorando o que vê à volta. Depois morre e não pode participar na tempestade…

Um abraço do
Mário


Tempestade em Bissau (ano 1970)

Beja Santos

Mário Gonçalves Ferreira, cardiologista, nascido em 1937, foi médico do BART 2917, em Bambadinca. Iniciou a sua actividade literária com o romance “Tempestade em Bissau (ano 1970)”, Pallium Editora, 2007.

Sem nunca iludir que se trata de pura ficção, o autor faz desfilar, com jocosidade e uma acidez temperada personagens da vida civil e militar que todos conhecemos na atmosfera da guerra: a pesporrência e a vacuidade de alguns discursos: a chegada e a partida de tropas no mítico cais do Pidjiquiti; a encenação da vida dos funcionários coloniais, as suas cumplicidades e o seu quadro de ambições; a vivência dos oficiais e suas famílias em Bissau… recorrendo a um discurso retórico e a uma efabulação grotesca, fazendo irradiar a acção à volta do obscuro Tolentino de Sá e Menezes, o autor risca os traços mais pronunciados do drama desse funcionário colonial que vai perdendo referentes e se ausenta da realidade da evolução de uma guerra onde ele não encontra lógica nem adaptação.

Tolentino nasceu em Goa, veio cedo para Bissau, tomou posse do lugar de 3º escriturário do Tribunal Civil. Aprendeu a curvar a cerviz, a fechar os olhos a mais ou menos graves ilegalidades, apaixonou-se pela lavadeira Famatá Sanhá, dessa relação irão aparecer André e Lamine Sanhá Menezes. A irmã de Famatá imiscui-se na vida de Tolentino, vai crescer uma relação conjugal triangular. 

Chega a guerra, alterou-se a pacatez daquele pequenino cosmopolitismo, progressivamente vamos assistindo a divisões ideológicas, à consciencialização das asperezas daquela guerra. André até vai a Bambadinca visitar membros da família e conhece um primo guerrilheiro que o impressiona com a sua determinação. A saúde de Tolentino deteriora-se, assolado pela diabetes. André partirá para a guerrilha, Tolentino para a metrópole, vai fazer exames, é submetido a tratamentos rigorosos. 

O autor engrossa a escrita colocando episódios bélicos, assistimos até ao Natal do soldado e ao envio de saudações para as famílias em Portugal. Um certo alferes Gonçalves envia uma carta para a namorada e depois vai a Fá Mandinga encomendar uma peça de ourivesaria. O artesão disse-lhe: “O que eu tenho de mais valioso é esta peça de prata fina que tem incrustada uma moeda de oiro. Mas para a trabalhar a uma semana e usar o saber de muitos anos de uma experiência acumulada”. 

A viagem de regresso vai culminar numa tragédia, o Unimog pisará uma mina, o condutor e o jovem alferes morrerão. E sobre o alferes Gonçalves fica escrito: “Tinha um lenço atado à volta do coto que restava da sua perna esquerda. E no bolso foi encontrado um colar feito de prata fina, com uma medalha em filigrana onde estava incrustada uma moeda de oiro que tinha, em relevo, as seguintes gravações: Victoria D: G: Britannia R: Reg: F: D:, com a efigie da rainha; na outra face ostentava, também em relevo, a imagem de um cavaleiro a matar um dragão e uma data: 1884; e, por baixo, artisticamente desenhado, um nome: Lena.”. 

Tolentino adoece gravemente em Lisboa, aqui vai falecer. Na celebração das exéquias na catedral de Bissau uma tempestade sacode Bissau.

O que sobressai do relato é o pendor para exibir as misérias do mundo e a incapacidade de fazer a leitura das mudanças à nossa volta. As descrições de Mário G. Ferreira são pouco lisonjeiras para as individualidades do regime, para os militares em Bissau, para os esteios administrativos guineenses. É uma mordacidade que não se dissimula. É uma tempestade que muitos recusam ver. A prosa é barroca, a linguagem privilegia o obnóxio, o discurso espalhafatoso, os guerrilheiros heróicos e ingénuos. Vamos ficar à espera da continuidade literária deste médico de Bambadinca que tomou gosto pela escrita.
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Notas do Editor:

(*) Vd. último poste de 28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

Vd. último poste da série de 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7501: Notas de leitura (180): Poemas, de Vasco Cabral (Mário Beja Santos)

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