sábado, 13 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 – P5812: Histórias do Eduardo Campos (9): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 9): Nhacra 4


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, dando continuidade às suas histórias da Companhia em Nhacra, iniciadas nos postes P5711, P5729 e P5796, enviou-nos a 9ª fracção e mais 3 documentos históricos do seu vasto arquivo pessoal:

CCAÇ 4540 – 72/74

"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 9

NHACRA 4

Pela segunda vez iria passar o Natal na Guiné e nesta quadra em particular, estar longe da família significava ficar mais triste do que habitual.

No entanto como éramos jovens, tínhamos a força necessário para ultrapassar todos os obstáculos e, por muito sentimentais que fossemos, ainda tínhamos a arte e engenho para requisitar o pai natal a estar presente nessa noite.

O Natal de 1973

O calendário parecia ter parado no tempo. Se eu estivesse mais ocupado, talvez fosse diferente o meu estado de espírito, assim sendo, mentalizei-me que não podia ter tudo de bom. Afinal eu até estava de “férias” em Nhacra.

Comecei a pensar, vir passar as minhas férias, mas a abundância de “pesos” não era muita e, como tal, não seria com o auxílio destes que eu conseguiria chegar á Metrópole.

Foi então que resolvi solicitar, através de um requerimento, uma “boleia” nos aviões militares, o que me foi concedido.

Em Março de 73, durante 21 dias lá saí Nhacra e apanhei um North Atlas, até á Ilha do Sal, e só dois dias depois é que consegui continuar a viagem para Lisboa, dessa vez num DC 6.

Mas o barato sai caro e, apenas uma semana depois de ter chegado, recebia eu um telegrama dos Adidos de Lisboa, a comunicar-me que eu teria de regressar à Guiné nessa altura, caso contrário não teria direito a nova “boleia”.

A pressa de voltar a Nhacra, não era nenhuma, e, pensando no tempo que ainda tinha por gozar, tive que comprar o bilhete na TAP, tendo-me desenrascado a arranjar os escudos necessários.

Durante a minha permanência por estas bandas, surgiu em 11 de Março, a “intentona” das Caldas da Rainha, e, creio eu, regressei a Bissau no dia 25 desse mesmo mês, altura em que colocaram as bombas no Quartel General.

Quando cheguei a Nhacra, estava o pessoal das transmissões finalmente a trabalhar a sério, construindo um posto de rádio subterrâneo, em betão maciço, já que havia informações que o PAIGC, tinha aviões “MIGS” na Republica da Guiné Conakri, prontos para bombardear na Guiné.

Eu trocava as noites de serviço com os meus camaradas, com muita frequência, porque adorava trabalhar de noite e, assim, aproveitava para ouvir a BBC e outras rádios, o que começou a despertar-me alguma consciência para a vida política.

Por causa de trabalhar de noite, e como é óbvio dormir de dia, num dia dei origem a que a Companhia estivesse na parada, numa formatura geral, aguardando que eu lá chegasse.

Porquê esperarem por mim, pois se eu tinha o meu direito ao descanso matinal? Esta é uma história ainda mal contada, pelo nosso Camarada bloguista, Vasco Ferreira (ex-Alf Mil At Inf da minha companhia), que nesse dia estava de Oficial de Dia, tendo-me obrigado a sair da cama para a tal formatura, mais cedo do que devia. É claro que não me levantei logo, dando muita resistência para abrir os olhos e sair da cama. Ainda hoje continuo a pensar que o nosso amigo ”Vasquinho” me “roeu a corda” nesse dia.

Entretanto fomos surpreendidos com o 25 de Abril, de que me recordo que algumas mensagens recebidas nesse dia, chegaram ao COP 8 com um conteúdo que não fazia sentido nenhum. Será que a referida falta de sentido, estaria relacionada com instruções e código estabelecidos pela malta envolvida no Movimento Revolucionário?

Nunca o saberei!

DOCUMENTOS DE COLECÇÃO COM HISTÓRIA

O pessoal convivendo no Natal de 1973

O pessoal a festejar a passagem de ano 1973/1974

Boletim PRESSE, do serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné do dia, com notícias captadas na radiodifusão pelas transmissões, no dia 25 de Abril de 1974





Boletim PRESSE, do serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné do dia, com notícias captadas na radiodifusão pelas transmissões, no dia 26 de Abril de 1974


Aproveito também para enviar a primeira página da EDIÇÃO ESPECIAL, do jornal vespertino da Guiné - VOZ DA GUINÉ -, publicado no dia 25 de Abril de 1974, noticiando “Junta de Salvação Nacional Assume Governo do País…”

Um abraço Amigo,

Eduardo Campos

1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540

Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5796: Histórias do Eduardo Campos (8): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 8): Nhacra 3


Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (7)

A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor


Beja Santos

“Cabo Donato, pastor de raparigas”, “Estranha Noiva de Guerra” e “A Cubana que dançava flamenco” são obras muito afins na arquitectura literária e nos esquadrinhar das memórias. Direi que entrelaçadas, diferentes prismas do mesmo olhar. O que era convencional nos anos 60, desaguou na sinceridade que é possível a quem já nada tem a perder com a dor revelada. Agora, a linguagem vai-se desprendendo, Armor Pires Mota deixa de procurar soluções lisonjeiras, o que é bruto deixa de ser polido, o que é áspero deixa de ser amaciado, os heróis transgridem, vivem alucinados, superam os tempos da realidade, têm uma capacidade quase sobre-humana de conciliar e reconciliar os pólos opostos. A tropa, os seus figurantes, estão no local de combate e quando se encontram com a gente da guerrilha descobrem as aproximações e a disponibilidade do amor. A gente só se reencontra quando se tornou demencial apontarmos as armas uns aos outros.

Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.

Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.

É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.

E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.

Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.

Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.

Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.

Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5810: (Ex)citações (57): Os maus exemplos de um 1.º Sargento (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2010:


OS MAUS EXEMPLOS

Binta, mais um dia de saída para o mato que era rotina quase diária, procede-se à distribuição das rações de combate, entre nós fazem-se as respectivas trocas de latas, uns gostam da dobrada, outros de conservas, outros ainda preferem apenas os sumos, enfim vocês sabem como era.

Em frente a nós, nesses amanheceres, junta-se um conjunto sempre elevado de miúdos que nos observam nos nossos preparativos, de latas vazias de calda de pêssego na mão, esperam a já habitual distribuição pela nossa malta das possíveis sobras que os nossos organismos já não consomem, por efeito de saturação dos mesmos.

O que começou por ser coisa sem a mínima importância, dar algumas latas de ração, tornou-se numa obrigação por culpa do nosso 1.º.

Distribuem-se latas das rações de combate pelos miúdos, perante a sua alegria incontida, fazemos apelos aos camaradas para que dêem o que não vão comer, estas cenas começaram a ser habituais e causaram azia a um 1.º Sargento que um dia resolveu intervir para acabar com estas pequenas generosidades.

Dirigiu-se a nós e disse mais ou menos isto:

- Esta merda tem de acabar! - Vocês estão a alimentar os filhos dos turras, com o comer do Exército! Estão a dar maus exemplos, depois não se queixem!

Neste caso era uma excepção à regra, mas quantos havia a pensar assim? Adiante….

Perante os nossos protestos e algumas bocas dirigidas ao mesmo, dizendo-lhe que as únicas vítimas inocentes naquela guerra eram as crianças e em surdina, dizíamos:

– Vai mas é para o mato!

As coisas ficaram por ali, mas serviu para comentarmos entre nós a forma de abastecer ainda melhor a miudagem.

Então quando comíamos (mal) no barracão a que se chamava refeitório, as sobras eram entregues aos miúdos que esperavam a distância conveniente, longe de olhares indiscretos para evitar chatices, e lá iam eles todos contentes para as suas tabancas, com as latas fornecidas.

Mesmo alguns dos nossos camaradas (poucos) faziam cara feia, quando ao terminar as nossas refeições, se recolhiam os restos para depois lhes encher as latas, era preciso fazer pedagogia e apelar aos seus melhores sentimentos, o que em verdade se diga não era difícil.

Mesmo que assim fosse, o Exército não dava alimentação decente para o qual tinha todas as obrigações de o fazer, e o que dávamos aos miúdos, não compensava os prejuízos de cabritos que surripiávamos aos pais, para suprir a nossa alimentação.

Convém dizer que se tentava quase sempre a compra junto da população de animais para a nossa alimentação, galinhas, porcos e cabritos, o que não era tarefa fácil, em virtude das suas crenças religiosas.

Tudo o que era negro, era turra ou parente aproximado, e depois nós que andávamos no mato com as milícias, que faziam a mesma guerra ao nosso lado, ouvíamos muitas recriminações e críticas a estas manifestações raciais de mau gosto.

A estas atitudes não era alheio o facto de termos vivido Guidaje, já que deixou revoltas mal resolvidas entre nós, e pelo facto de por essa altura haver sempre Companhias em permanência por causa das colunas que eram feitas, e o desgaste a que éramos submetidos, em permanentes escoltas e patrulhamentos, e a fazer as guardas de sentinela aos postos durante a noite, com intensa actividade operacional, era natural a nossa hostilidade, a comportamentos menos correctos por parte de quem tinha obrigação de dar exemplos.

Felizmente esta foi uma voz isolada, num contexto de guerra em que muitas atitudes similares agravaram o que já era complicado, e foi um acto que não se repetiu porque a razão estava do nosso lado.

Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho

Foto 1 > Binta > Novembro de 1973 > Elementos do 1.º GCOMB a petiscarem no barracão que servia de caserna. Marinho é o 4.º a contar da esquerda.

Foto 2 > A mesma malta mas tirada do lado contrário.

Foto 3 > Nema > Março de 1973 > De cócoras, eu e o Chico Santos, jogador de futebol do Varzim, e de pé o Tavares, um herói de Guidaje.
Fotos: © Manuel Marinho (2010). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)

Guiné 63/74 - P5809: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (7): O Ventoínha e o seu rádio fulminado

1. Mais uma Nota Solta da CART 643, enviada ao Blogue pelo nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), no dia 3 de Fevereiro de 2010:


O VENTOINHA

De baixa estatura e porque andava sempre em correria, este condutor da CART 643 tinha a alcunha do VENTOINHA. Em virtude de haver na altura excesso de Condutores na Companhia, o citado moço foi colocado como impedido do alojamento de Sargentos, alojamento esse que segundo informações passou a ser Bar dos Sargentos das Companhias vindouras, 816 ou 1419?

O seu sonho era ter um rádio/telefonia, para nos momentos de descanso ouvir música e as notícias. Esse sonho era difícil de concretizar, o pré não era mais do que umas centenas de escudos, ainda por cima uma parte ficava na Metrópole.

Juntou a pouco e pouco alguns escudos e comprou em segunda mão a um civil o dito aparelho. Andou de mão em mão a mostrá-lo, e chegado a noite, porque havia fraca recepção, decidiu ligar à antena do rádio militar. A assistência era grande até parecia uma cena do filme O PÁTEO DAS CANTIGAS, os camaradas estavam ansiosos por ouvir aquela fonte.

Mal ligou, caiu uma forte trovoada antecipada por um raio, mas logo por azar foi direito à antena e logo o aparelho começou a deitar fumo.

Claro com a crueldade normal dos jovens ouviu-se dizer:

- Oh Ventoinha a caixa talvez ainda sirva para uma gaiola de periquitos.

Rogério Cardoso
CART 643
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5781: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (6): Rondas e sentido de solidariedade na 643

Guiné 63/74 - P5808: Lembrando um dia duro, obrigado e fortíssimos abraços a todos (José Brás)

1. Mensagem de José Brás (ex-Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 11 de Fevereiro de 2010:

Meus camaradas
Ontem foi um dia duro para mim, confesso... explicando*.

De tanta palmada nas costas, ainda hoje ando um pouco inclinado em frente.
De tanto abraço, quase me estrafegaram.
E isto não se faz a um crente, amigos.

Já me lembrava a fábula de John Steinbeck sobre a mãe que por tanto querer aos filhos os matava contra o peito.

Mas pronto, cá vou a caminho das vésperas de 70 (que a idade em que um homem só "sessenta").

Obrigado a todos e se, pela conversa, a uns sei que pagarei continuando a dizer as minhas parvoíces, aos outros que discordam muito ou pouco, apenas lhes posso garantir uma amizade igual à que dedico aos outros.

E envio-lhes aqui uma prenda em forma do retrato de tanto trambolhão

Muito obrigado e fortíssimos abraços a todos
José Brás


Deve ser a isto que se chama "pegar o boi p'los cornos". Na cara de um toiro de 600Kg de João Branco Núncio

...e foi nos toiros que ganhei o gosto pelo vôo (e pelas aterragens de emergência)

Nas matas da Guiné, zona de Mejo o toiro era mais duro, mas tinha de pegar-se
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5795: Parabéns a você (78): José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68 (Editores)

Guiné 63/74 - P5806: Tabanca Grande (202): Raul Rolo Brás, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba/Quebo/Mampatá/Empada, 1968/70



1. O nosso Camarada Raul Rolo Brás, foi Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70, enviou-nos, com data de 11 de Fevereiro de 2010, a seguinte mensagem:



Olá amigos, camaradas e companheiros de guerra,

Assim me apresento:

Para quem não me conhece, sou o Raul Rolo Brás, nascido e criado em Salavessa, na data de 18/04/1946, concelho de Nisa, distrito de Portalegre, devidamente recenseado e editado para o serviço militar obrigatório, na data de 14 de Agosto de 1967.

Assim como qualquer bom português, no meu tempo, apresentei-me à chamada no dia 14/08/1967, Regimento de Lanceiros Nº 1 (C.I.C.A. 3), em Elvas, para frequentar a recruta e a especialidade de Condutor Auto.



Após 6 ou 7 semanas de instrução e o Juramento fidedigno á Bandeira Nacional, ainda em Elvas, fui destacado para o Regimento de Cavalaria Nº 6 no Porto, em 08/10/1967.




Permaneci com a especialização apontada mais 2 meses aproximadamente, findos os quais fui destacado para Regimento de Transmissões, também no Porto, no dia 26/11/1967, onde permaneci até finais de Janeiro de 1968.

Na perspectiva de aperfeiçoamento de condução em todo-o-terreno, onde revi e contactei novamente, com antigos camaradas da recruta, segui para Santa Margarida - Regimento de Cavalaria Nº 4, até à data de 18/03/1968.

Nessa data fui destacado para o Regime de Infantaria Nº 2, em Abrantes, permanecendo ali com o destino traçado até hoje na minha memória, á Guiné, no dia 30/04/1968.

Dali parti, integrado na Companhia de Caçadores 2381 “Os Maiorais”, no tão afamado e conhecido transportador marítimo Niassa (que para a guerra levou e trouxe tantos de nós como eu), no dia 01/05/1968.

Um abraço,
Raul Brás
Sold Cond Auto da CCAÇ 2381


2. Camarada Raul Brás, em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e demais tertulianos deste blogue, quero dizer-te que é sempre com alegria que recebemos notícias de mais um Camarada-de-armas, especialmente, se o mesmo andou fardado por terras da Guiné, entre 1962 e 1974, tenha ele estado no “ar condicionado” de Bissau, ou no mais recôndito e “confortável” bura… ko de uma bolanha.

Tal como o Luís Graça já referiu inúmeras vezes, em anteriores textos colocados em postes no blogue, todos aqueles que constituíram a geração dos “guerreiros” do Império, temos alguma coisa a contar para memória futura e colectiva, deste período sangrento da História de Portugal, que foi a Guerra do Ultramar.

Foram 12 anos de manutenção de um legado histórico, à custa de muito sacrifício, privação de toda a ordem, dor, sofrimento, morte…

Como se não tivesse bastado, sofremos nos últimos 35 anos com o modo como os políticos portugueses nos tratam. Nós que, nos nossos 21/22/23 anos, demos o nosso melhor, como podíamos e sabíamos, muitas vezes mal treinados e armados, sabe Deus como alimentados e enfiados em autênticos buracos, feitos no lodo, em meios completamente hostis e perigosíssimos, sob vários aspectos, onde, além dos combates com o IN, enfrentávamos as traiçoeiras minas e armadilhas, e ainda tínhamos as doenças a apoquentar-nos (paludismos, disenterias, micoses, etc.).

Nós até nem pedimos muito além de respeito e dignidade, que todos nós merecemos pelo que demos a esta Pátria, queríamos, e continuamos a querer, no mínimo, que os nossos doentes, física e psicologicamente, sejam tratados condigna e adequadamente.

Oferecendo-te então as nossas melhores boas-vindas, ficamos a aguardar que nos contes estórias, que ainda recordes, e se tiveres fotografias daquele tempo que nos as envies, para as publicarmos aqui.

3. Não sei se já sabes, mas a tua companhia já tem entre o pessoal da Tabanca Grande, mais 4 Camaradas. São eles:

- o José Belo Alf Mil At Inf, o José Manuel Samouco Fur Mil At Inf, o 1º Cabo Enfermeiro José Teixeira e o Arménio Estorninho 1º Cabo Mec Auto Rodas.

Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P5805: Agenda Cultural (58): Do Carnaval de Lazarim, Lamego, a Guileje, Região de Tombali... Quem se lembra do pirotécnico Hélder da Costa, da CCAÇ 2617 ? (Luís Graça)




1. Façam-se à estrada e venham até ao  Entrudo de Lazarim, Lamego, 13-16 de Fevereiro de 2010....


Lazarim é célebre pelos seus caretos... Neste artigo, de João Garcia, publicado em 1998 no Expresso, há um  referência, inesperada, a um camarada nosso, o Hélio da Costa, que estava em Guileje, em 1970...  Era de minas e armadilhas, viu morrer dois camaradas, um cabo e um furriel. Em Guileje, perdeu o medo ao fogo... Em Lazarim, era o pirotécnico do Entrudo...

 Nesta época, em 1970,  passaram por Guileje 2 unidades... (Inclino-me para a hipótese do Hélio ser da CCAÇ 2617, já que na lista do pessoal da CART 2410, elaborada pelo Luís Guerreiro, não encontrei o seu nome): 

CART 2410, Os Dráculas  (Junho de  1969/ Março de  1970)
CCAÇ 2617, Magriços do Guileje, Março de 1970 / Fevereiro de 1971

Será que alguém, dos Magriços,  conhece (ou lembra-se de) o Hélio da Costa, de Lazarim, Lamego ? Vou dar um salto até lá, neste Carnaval de 2010. (LG)


2. Tradições > Viagem ao velho Entrudo > A Arte das Máscaras
João Garcia, Expresso, 21 de Fevereiro de 1998

Caretos é também a designação dos mascarados de Lazarim. Mas ali, na proximidade de Lamego, conta mais a máscara, esculpida em amieiro, do que o fato. E, dado inesperado, nenhuma das práticas do Entrudo está vedada às mulheres... embora tenham o seu risco.

«Uma vez pedi uma máscara, vesti-me, e saí de careto, juntamente com outra moça. Mas eles lá descobriram, fosse pela forma do corpo, fosse pelo andar, e começaram a querer pôr as mãos onde não deviam. Tivemos de fugir», recorda Maria de Lurdes, com 49 anos e muita saudade do tempo em que podia fazer versos para o testamento das comadres.

 Na terça-feira, um rapaz e uma rapariga fazem a leitura dos testamentos dos compadres e das comadres, versos compostos em segredo e de crítica aos jovens do sexo oposto. Mandam as regras que só os solteiros possam criticar e só eles sejam alvo de chacota. Do testamento consta a imaginária distribuição de um burro ou burra, que a imaginação divide, cabendo a cada um o órgão ou parte que mais se adequa ao «defeito» que lhe é enunciado.

Todas, mesmo todas, as partes do animais são atribuídas, no meio de quadras que nem sempre dissimulam os palavrões. «As raparigas são mais finas, sabem dizer as coisas de outra maneira. Agora eles, às vezes, dizem tudo por claro», conta Ester Ribeiro, de 19 anos, uma das moças que têm ajudado a compor as estrofes da comadre. Sabe que vai ouvir das boas, mas já está preparada para não ligar. Sempre as raparigas as compuseram, mas só em 1985 se libertaram do porta-voz que fazia, por elas, a leitura das «deixadas» do testamento.

Apesar da permissividade própria do Carnaval, que, dizem os antropólogos, serve para exorcizar e esquecer o passado, nem todos se contentam com um cerrar de dentes. Houve um ano em que a GNR foi chamada e as ofensas valeram multas de 400 escudos, acrescidos de cinco tostões de imposto de selo. No ano seguinte, o testamento só teve uma quadra:

«Vamos ler o testamento / para que ninguém se fique a rir / por causa de 400 e coroa / fica a burra por dividir.»

 As máscaras de Lazarim já andam pelo mundo. José Costa, de 24 anos anos, carpinteiro, é o mais jovem artífice. Às caraças tradicionais, muitas de fisionomias com pequenas barbichas, orelhas bicudas ou cornos, está a juntar figuras da banda desenhada: «O ano passado saiu à rua uma do Alf.»

Na primária, os alunos inspiraram-se no Gil, a mascote da Expo. Mais tradicional, Afonso Costa, de 72 anos, vai esculpindo animais, guardas, reis e algumas figuras diabólicas. «Já vendi máscaras para museus dos Estados Unidos, da França e da Alemanha. E há também em Lisboa, no Museu de Etnologia, e no Grão Vasco, de Viseu.» O Carnaval de 1949 valeu-lhe 16 horas de prisão, quando o reboliço na aldeia levou à intervenção da Guarda.

Terminam os festejos com os caretos a emitirem uivos, enquanto pequenas explosões despedaçam os bonecos que representavam a comadre e o compadre. Feitos de arame, papel e palha, armadilhados com pequenas peças de pirotecnia, presidem ao testamento e são sacrificados no final. Quem os faz, por 20 contos cada, é Hélio da Costa: «Na Guiné, em Guilege, em 70, vi morrer um cabo e um furriel. Éramos de minas e armadilhas. No fim da comissão tinha perdido o medo ao fogo.»

Afinal, nem tudo o que é passado se esquece com o Carnaval.


Fonte: At-Tambur.com - Músicas do Mundo (com a devida vénia...)

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5804: Documentos (10): PAIGC: A agressão contra a missão especial da ONU, Excertos de um relatório de Amílcar Cabral, 1972 (António Graça de Abreu)






1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de 22 de Janeiro último:

Assunto - Relatório da ONU,  Abril 1972

Meu caro Luís



Inicialmente coloquei isto como comentário (*) mas creio, com as fotografias do documento, que merece um post.


Deixo ao teu cuidado.


Um abraço,


António Graça de Abreu



Meus caros: Já havia esquecido, mas ontem fui aos meus papéis velhos sobre a Guiné e lá encontrei o relatório da "Missão especial da ONU na Guiné, Abril de 1972."

Está aqui comigo e recomendo a leitura e entendimentos a todos os que passámos pela Guiné na fase final do conflito. Esclarecedor, brilhante, também angustiante. As verdades dos factos. Talvez a publicar no blogue mas são dez páginas em A 4.

Em anexo ao texto dos homens da ONU, são publicados excertos do relatório então escrito por Amílcar Cabral sobre a visita dos homens da ONU.

No nosso blogue temos tido o gosto (eu não) de denegrir a capacidade militar das NT (Guileje, a guerra militarmente perdida, perdida em termos militares, etc.).

Pois,  Amílcar Cabral faz exactamente o contrário, exalta e exagera a capacidade militar das tropas portuguesas em Abril de 1972. Leiam as palavras de Amilcar Cabral no seu relatório sobre Missão da Onu:

"No dia seguinte da partida da missão (da ONU), o Estado Maior Português, declarou o estado de prevenção para os 45.000 militares das tropas coloniais existentes no nosso país, dos quais 15.000 se encontram acampados no Sul (...) 10.000 homens das tropas especiais foram transportados durante alguns dias de Bissau para o Sul. Se juntarmos as forças da aviação e da marinha que operaram no decurso da agressão, o número total de homens mobilizados foi da ordem de 30.000."

Isto num pequeno país onde, segundo a missão da ONU,  3/4 do território eram "zonas libertadas pelo PAIGC" que dispunha de 5 a 6 mil combatentes, e onde (agora em Janeiro de 2010) segundo a opinião do diplomata equatoriano da ONU que fez parte da missão, os portugueses, "entrincheirados nos
seus quartéis" apenas "se deslocavam por via aérea."

Tanto dado falsificado!... Difícil fazer a nossa História e a dos povos da nossa Guiné!

Um abraço.

António Graça de Abreu
 
2. Comentário de L.G.:
 
 No mesmo poste,  havia já eu inserido antes um comentário, a 21 de Janeiro, começando por reforçar "as palavras que tu escreveste no teu Diário (Pouca gente em Portugal tinha essa informação privilegiada e detalhada, como tu tinhas em 25 de Junho de 1973, quando chegaste a CUFAR, como alferes miliciano do CAOP1":


"(...) Até Dezembro de 1972, isto era quase tudo território do PAIGC. Havia os aquartelamentos de Catió, Cufar e Bedanda bem defendidos onde a tropa portuguesa não punha muito o nariz de fora.


"Em Abril de 1972 estiveram por aqui observadores do Comité de Descolonização da ONU para conhecer as realidades das zonas libertadas pelos guerrilheiros. Vieram de Conacry, entraram pela zona de Guileje, chegaram até perto de Cufar, sempre a pé, abrigados pelas florestas." (...)

E no mesmo comentário, acrescentava eu: "E depois, dizes, mais à frente e bem, que as coisas mudaram, a partir de finais de 1972, com a reocupação do Cantanhez por dois mil homens das NT... que praticamente não sentiram resistência por parte do PAIGC... Tal como tinha acontecido no Como, em 1964...

"Como tu também sabes, as guerras não se ganham só com as armas e os homens em armas, e as unidades de quadrícula...O Como e o Cantanhez são a prova provada de que não havia 'santuários' (tu mesmo falas em 'zonas libertadas')... Mas não foi aí que a guerra se ganhou ou perdeu... O campo de batalha, a batalhava mais decisivo, não se travava aí, mas nos aerópagos internacionais, nas chancelarias, na Assembleia Geral das Nações Unidas...

"Bem, vamos ler o relatório ? O primeiro que arranjar uma cópia, faz a divulgação no blogue, para que todos possamos perceber qual foi a metodologia, o itinerário e os locais da visita, as observações, as conclusões... Bom dia!"

Como foste tu o primeiro a arranjar a tal cópa, deixa-me dizer-te duas palavras de agradecimento:

Obrigado, António, por teres sabido guardar, preservar, proteger e depois divulgar um documento como este, dactilografado, policopiado, e que seguramente terá interesse para a historiografia dos dois países... Se tiveres tempo e pachorra, podes digitalizar e mandar-nos as restantes páginas que faltam (dez ?)... Muitos dos nossos camaradas não estão habituados a lidar com documentos originais como este. E é importante que tenham acesso a cópias dos documentos originais, sejam  das NT sejam do PAIGC... Não tendo formação em história, muitos leitores nossos também não sabem como trabalham os historiadores, como é a sua metodologia (e a sua ética) de investigação, como é isso do recurso à triangulação das fontes ou das versões, etc.

O Amílcar Cabral não era historiador, era um líder revolucionário. O excerto que aqui transcrevemos deve ser visto apenas como um texto de combate político. Não mais do que isso. Na guerra de propaganda, cada uma das partes puxa a brasa à sua sardinha. Spínola também não era historiador, era um cabo de guerra, um líder político-militar. Os seus discursos, defendendo a Guiné Melhor, também devem ser vistos como armas de arremesso político.

Quarenta anos depois, somos capazes de ler e analisar os documentos (escritos, falados, etc.), de um lado e de outro, com a suficiente distância crítica, isenção, objectividade... Pessoalmente congratulo-me por podermos e sabermos apresentar e discutir, aqui no nosso blogue, com naturalidade, sem crispação, documentos sobre a guerra colonial que não têm necessariamente uma leitura única, linear...

Um bom Carnaval (a festa do "Adeus à Carne"). Daqui do Porto, da tua terra, envio saudações para ti, para Lisboa, e para o pessoal das diversas Tabancas deste regulado, de Matosinhos, do Centro, da Linha,  da Lapónia... Ainda quero ver se vou ver os caretos de Lazarim, Lamego, onde há o Carnaval mais português de Portugal...

PS - Estou a envidar todos os esforços para poder participar, eu e a Alice,  no almoço da Tabanca do Centro, a 26  do corrente...

____________

Nota de L.G.:

(*) 20 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5680: Efemérides (41): No 37º aniversário da morte de Amílcar Cabral, recordando o sucesso diplomático que foi a visita da missão da ONU às regiões libertadas, no sul, 2-8 de Abril de 1972

Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "O milícia e guia das NT, Seco Camará: 56 minas detectadas e muitas guerras" (TM)... O Seco Camará, natural do Xime, esteve ao serviço das NT até ao dia em que foi morto à roquetada, a 26 de Novembro de 1970 (Op Abencerragem Candente)... De etnia mandinga, era provavelmente o melhor guia e picador, ao serviço do sector L1, na zona leste...

Como já aqui escrevi, "o Seco Camará morreu ingloriamente em 26 de Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se alguma vez se sentiu (ou poderia sentir) português. Sei apenas que foi um bravo soldado - ou melhor, auxiliar dos militares portugueses - e eu não posso julgá-lo, sumariamente, com base nos meus valores ou princípios éticos. É claro que também não vou absolvê-lo com base no relativismo cultural: o facto de ser mandinga, descendente de um povo de guerreiros e conquistadores, não lhe davam quaisquer direitos, e muito menos o direito de vida ou de morte"... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de 7 do corrente, do António José Pereira da Costa  (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço; comandou a CART 3494, Xime, 1972/1973):


Assunto - A Minha Guerra a Petróleo


Camaradas: Satisfazendo vosso pedido aqui vai um artigo para o blog, Sendo assim ficam a faltar 4.  A série deverá ter o título supra. Este poderá chamar-se "Malan e Mancaman: duas maneiras de olhar a Guerra".


Um Ab.


2. A Minha Guerra a Petróleo (*) > O Malan e o Mancaman: duas maneiras de olhar a Guerra".

por Pereira da Costa


Antes do mais uma justificação para este título. Conheci, na Escola Prática de Artilharia [, EPA], um soldado cujo nome nunca soube, mas cuja alcunha ainda recordo, relacionada com a marca dos automóveis e não com o animal selvagem. Era o Jaguar. Tinha a especialidade Campanha 10,5  e, embora muito conhecido, não era nem bom nem mau soldado. Talvez se distinguisse pelo seu aspecto físico, magricela, meio escangalhado e com uma cara que dava ares do Groucho Marx. Creio que talvez soubesse ler pouco. Era hábito, nessa altura, que as pessoas não soubessem ler muito bem. Havia coisas mais importantes a fazer, como, por exemplo, trabalhar, na altura da vida em que se devia aprender essa minudência.

Nesse tempo, usava-se, ainda, na maior parte das cozinhas, o fogareiro a petróleo [, foto acima, à esquerda, **] que, na sua versão mais sofisticada, tinha uma cabeça silenciosa. Porém, este upgrade custava mais e, por isso, em muitas casas optava-se pela cabeça barulhenta, que até havia quem dissesse que era mais barata e aquecia melhor.

O processo de acendimento do fogareiro era complicado e exigia um certo treino. Tudo começava com o aquecimento da cabeça, feito com álcool metílico ou de queimar (colorido a azul, por ser tóxico). Depois, era necessário dar à bomba, ou seja, agitar o petróleo dentro do depósito, pulverizando-o de modo a estivesse apto a ser queimado. A máquina podia entupir-se a qualquer momento ou ir-se a baixo e, se se apagasse, o processo teria de ser reiniciado, com a soltura dos consequentes impropérios por parte do utente. Se o fogareiro se avariava a oficina chamava-se funileiro ou picheleiro, consoante fôssemos mouros [, no sul,] ou morcões [, no norte]. Enfim, um processo laborioso que o fogão a gás veio terminar e que deixou na nossa memória o sinónimo de um certo anacronismo.

O Jaguar era esperto e, da sua análise à vida militar, deverá ter concluído que faltava algo – muito significativo – em termos de organização para que as coisas funcionassem bem. Daí que, ainda na EPA, utilizasse a expressão: "Isto é uma Guerra a Petróleo!" para resumir uma conversa sobre os defeitos (e virtudes) da vida militar que tanto contrastava com a sua alegre e desejada vida civil.

Encontrei-o na Guiné, em 1968, integrado num pelotão de artilharia da então BAC 1, a bordo de um batelão (daqueles sem motor que andavam de braço dado com um que tinha motor) que passou por Cacine, com destino a Gadamael, creio.

Fixei a expressão e, desde então, acho-a muito rica, traduzindo em poucas palavras, uma realidade incontornável, sobre muitos aspectos, da Guerra. Aqui fica a justificação para o título destas crónicas.

O Xime, o Xime ainda, o Xime sempre. (***)

Passei ali aqueles que, ainda hoje, considero os cinco piores meses da minha vida. Por razões que não descortinei, nessa altura, a CArt 3494 utilizava dois guias-picadores para as suas operações e que eram pagos como tal: o Malan Djai Quité e o Mancaman (**). Teoricamente guiariam alternadamente as forças que saíssem, procurando também detectar minas, o que lhes asseguraria um pequeno pecúlio, creio que de cerca de mil escudos, por cada mina anti-pessoal e dois contos, por cada mina anti-carro.

Estas, porém, o inimigo não tinha muito motivo para utilizar, uma vez que a tropa saía sempre em direcção ao Sul e apeada, considerando que nessa direcção não tínhamos qualquer aquartelamento até à curva do Corubal. Nunca entendi bem como é que numa área onde andávamos a corta-mato ou por trilhos pouco batidos, se poderiam colocar minas com boa possibilidade de serem accionadas. O inimigo poderia colocá-las, mas nada lhe garantia que iríamos passar naquele trilho e não a todo-o-terreno ou não abriríamos outro, alguns metros mais ao lado, que a Natureza pressurosamente iria fechar nos dias seguintes.

Detectar minas parecia-me uma coisa problemática, a menos que se soubesse onde íamos passar e, forçosamente com pouca antecedência, ali as colocassem. Efectivamente, da antiga estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês restava pouco mais de um kilómetro. Depois, o terreno era "todo ou quase todo igual" e a progressão era feita a todo-o-terreno, com uma ou outra referência. Claro que poderíamos descer pela margem do rio, tendo-o sempre à vista e ao nosso lado direito, o que facilitava o movimento e dava a possibilidade de nos opormos às travessias, que, às vezes o inimigo tentava mesmo à luz do dia. De qualquer modo, uma coisa era certa: o caminho que seguiríamos entrava no âmbito do cálculo das probabilidades, um a dois kilómetros depois de sairmos do arame farpado.

Eram bem diferentes os dois guias, embora fossem ambos mandingas.

O Malan, mais velho, rondaria o cinquenta e cinco anos. Era, portanto velho, no contexto da população, mas exibia os restos de uma constituição física notável que lhe permitia realizar sozinho trabalhos agrícolas, recorrendo a alfaias tradicionais. Usava uma espécie de remo, com cerca de dois metros de comprido e, espetando a pá no solo com uma inclinação inferior a 45º, ia removendo pasadas de terra que punha para o lado, abrindo uma leira onde plantava arroz.

Outras vezes, pescava com uma espécie de rede (uma ridia, como ele dizia) e apanhava uma espécie de lagostins cuja cabeça tinha o comprimento quase igual ao do corpo. Eram saborosos e, infelizmente, poucas vezes apanhava mais de dez. Estou em crer que seria uma espécie de lagostins adaptados à água salobra, muito semelhantes aos que, por cá se desenvolvem nos arrozais.

O Malan fumava um daqueles cachimbos de madeira que enchia com toda a calma, dobrando cientificamente a folha do tabaco. Era um trabalhador infatigável e um guia de confiança. Era casado com uma mulher, mas vivia sozinho num abrigo minúsculo, construído por ele. Aproveitava o reabastecimento às auto-desfesas para visitar a mulher, em Demba-Taco. Levava-lhe dinheiro e alguns produtos da terra e eu nunca entendi de que é que uma mulher bastante mais nova que ele, vivia numa tabanca tão pequena e com tão poucos recursos.

Ao que me foi dito, durante os ataques com armas pesadas, sentava-se tranquilamente em cima do abrigo a fumar o cachimbo e explicava que "O homem "mure", quando "mure"!" e, por isso, não tinha grande necessidade de se abrigar. Ao que parece teria problemas sexuais de impotência, mas também de desejo.

O alferes Pinho da Artilharia contou-me que um dia, durante uma operação, resolveu pôr-se a gritar no meio da bolanha de Lântar: "A tabanca matou o meu caralho!", enquanto mostrava a "prova do crime". Durante o meu tempo, só recebi queixa da Maria, viúva de um furriel dos comandos, e que vivia com um filho de quatro ou cinco anos.

Uma noite, o Malan resolveu visitá-la. Creio que não terá sido bem recebido ou nem sequer tolerado nas proximidades. Depois... uma intervenção da vizinhança em apoio da Maria resolveu o problema. No dia seguinte, ela veio apresentar queixa e eu lá tive que "lavar o cérebro" ao Malan.

O filho da Maria era o meu adversário de óri. De vez em quando aparecia, para me ensinar a jogar. Trazia a caixa com os 12 buracos e as 48 sementes e depois sentávamo-nos frente e frente, ele no chão, com ar grave de quem sabe, e eu num banco baixo, a ver se desta vez é que ganhava um joguito. O "Balantazinho", embora não o fosse, mexia as sementes de palmeira com grande rapidez ao longo dos buracos e eu, por mais que me esforçasse, ficava sempre em segundo lugar. No Porto, este é primeiro dos últimos, o que não é nada mau. No final do derby bebia a taça – um Sumol de laranja – e ia-se embora abraçado à caixa do jogo, talvez a pensar que o capitão nunca mais aprendia a jogar uma coisa tão simples como aquele jogo tão antigo.

Um dia recebemos informações de que Tóda Nafemba e o Biota Tanhala andavam pelas redondezas e preparado-se para fazer das suas. A notícia (A-1, como é de calcular) dizia que um deles era natural do Xime. Convoquei o Malan e perguntei-lhe se sabia quem era. Respondeu-me que sim e acrescentou:
- Esse gajo cá presta e tem cu pequenino de Malan.

Intrigado quis saber porquê. Fiquei então a saber que o Malan tinha sido campeão de uma espécie de sumo, mas pratica do com algo parecido com umas cuecas-fio-dental, em cabedal grosso. Ambos os contendores se agarravam pela cintura e procuravam, aplicando rasteiras, derrubar o adversário. Nos bons velhos tempos do Malan tinham competido e o agora guerrilheiro sempre fora levado de vencida. Mesmo sem o equipamento adequado, o impedido da messe, o atirador Costa, desafiou-o para um combate ali e naquele momento. O Costa, empregado de mesa do Solmar, em Lisboa, era um malandreco da cidade e julgou que podia "dar baile" ao velhote, mas como "quem sabe não esquece" desistiu à segunda queda.

Nas conversas que tive com ele, o Malan pareceu-me verdadeiramente infantil. Não estava sequer capaz de entender o mundo para além do que via e sentia. Para ele a vida não ia além da sua tabanca e da natureza que a rodeava, do trabalho na terra ou no rio e, agora, porque era preciso, nem ele sabia bem porquê, fazia a guerra. Não creio que odiasse O Inimigo ou que tivesse qualquer assomo de patriotismo, na sua acepção mais corrente, naquele tempo. Julgo que lhe tinham dito que os Turras eram maus e que ele tinha que guiar a tropa contra eles. Além disso, sempre ganhava dinheiro o que terá sido uma promoção social a que se foi habituando. A sua vida repartia-se quase exclusivamente pela sua actividade como guia-picador e os trabalhos que lhe asseguravam a subsistência.

"Este gajo é puro!", dizia o alferes Gomes depois de mais uma conversa metafísica entre ambos. Falavam de Deus (ou dos Irãs), da Natureza e dos hábitos dos Mandingas. A argumentação do Malan era pobre, mas não havia quem o demovesse das suas convicções acerca da sua fé ou da estrutura social e valores éticos dos Mandingas, que ele aceitava, sem hesitar. Enfim, seria aquilo a que poderíamos chamar a encarnação do "Bom Selvagem". Já perguntei por ele à malta que lá foi matar saudades. Ninguém sabe qual foi o seu destino, após a independência, o que não é nada bom sinal... Velho, renitente e tendo colaborado muito com os colonialistas, não lhe auguro um bom destino...

O outro guia era o Mancaman. Claramente mais novo que o Malan, era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições. Esfingicamente fechado era-me difícil saber o que pensava.

Pouco depois de eu ter chegado, começou a pretextar motivos para não guiar a companhia. Nunca entendi aquele volte face que coincidiu com a minha chegada. Presumo que terá pensado que eu imprimiria outra orientação à actividade operacional. Parecia estar farto de guerra e, por isso, procurava sair dela ou, no mínimo, reduzir a sua participação, a pouco e pouco. Creio que descria já de uma "esmagadora vitória das NT" e, sentenciado a viver naquela terra, não vislumbrava uma saída para o impasse em que se encontrava. Claro que o dinheiro que ganhava era-lhe fundamental para a sua sobrevivência, mas comprometia-o com algo de que queria afastar-se. Qualquer que fosse a sua opção teria custos. Posto perante a evidência de que tinha de continuar a participar nas acções da companhia, cedeu, com relutância e reatou a sua colaboração.

Confesso que desconfiei dele.

Todavia, pensando melhor, comecei a compreender a sua indecisão e até angústia. Ele deveria estar a ver para o futuro. É que, depois de Junho de 1972, as populações e os militares do recrutamento local, ou mesmo simples apoiantes da acção do Exército viviam, diariamente e há vários anos, o desgaste da guerra e, numa observação simples, podiam aperceber-se de que os campos estavam cada vez mais extremados e que a guerrilha, se não estava a ganhar a guerra, também não dava sinais de regredir, havendo até sítios onde já há alguns anos não era possível ir sem que isso implicasse uma operação militar de custos mais ou menos elevados e mais-valias duvidosas. É que, ir a um dado local só por ir não faria sentido. Permancer lá, teria custos consideráveis. Restava a última hipótese que era normalmente a mais corrente: ir, destruir o que houvesse e matar quem se revelasse, uma vez que a "população sob duplo controlo" era cada vez mais um mito.

Que é que um cidadão Guineense poderia fazer, nesta situação? Não tenho dúvidas de que os mais atentos começavam a interrogar-se acerca do modo como tudo aquilo iria terminar. Creio que alguns começavam a prever que o fim seria certamente dramático. É dificílimo ter de optar em tempo de guerra ou grave convulsão. Porém, a vida real obriga a que essa opção seja uma escolha imediata e com reflexo na acção diária. A História cobra sempre dividendos aos vencidos de um fenómeno social e o cansaço da guerra, aliado à falta de êxitos claros da parte que apoiavam, dava-lhes a indicação de que maus tempos aí vinham. Só não sabiam quando.

A tabanca do Xime estava situada numa posição excêntrica que permitia que fosse abordada sem que o pessoal vigilante da companhia fosse alertado. Em noites de Lua-nova era mesmo difícil detectar movimentos para além do arame farpado. Daí até ao Poindom não havia ninguém. Depois, não sei. Estimo que as populações sob controlo do inimigo se dispersariam até à curva do Corubal. Não tenho elementos para dizer se e onde o inimigo residia naquela área.

Parecia que ali havia uma Terra de Ninguém. O PAIGC controlava as populações e o terreno para Sul do Poindom. Para Norte e até à linha definida pelas três tabancas (Amedalai, Taibatá e Demba-Taco), o domínio parecia ser nosso. Quase de certeza que o Mancaman não trabalhava para o PAIGC, mas tudo indica que sentiria uma certa pressão para reduzir a sua colaboração connosco e, se bem observado por alguém infiltrado na tabanca, poderia dar indícios utilíssimos, mesmo involuntariamente.

É o retrato que tenho esboçado destes dois homens que, em última análise, reagiam como podiam a uma situação social e política que martirizava a sua terra. Um nem sequer questionava a escolha que tinha feito e, como é habitual, terá sido trucidado pelos acontecimentos. O outro via-se entre dois fogos, sem possibilidade de optar, mas imaginando que se aproximavam tempos aos quais, no mínimo, teremos de chamar difíceis. Hoje podemos culpá-los de terem feito escolhas más. Será a opinião dos teóricos detentores da solução depois da poeira do cataclismo ter assentado. Hoje explicam como se deveria ter feito, mas é como se resolvessem um problema cuja solução lhes foi fornecida pelo desenrolar da História.

[ Revisão / Fixação de texto / bold / título: L.G.]
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 13 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

(**) Com a devida vénia... Fonte: Poste de 7 de Abril de 2009 > Casa Hipólito, em Torres Vedras, do blogue Batalhão de Artilharia 1914, Tite, Guiné-Bissau

(***) Vd. tambem 2 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3263: Álbum fotográfico do Renato Monteiro (3): Xime, o sítio do meu degredo

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz

 (...) Nunca galgou a graduado de 2.ª linha; negou-se, certa vez, a ir numa operação para além de Ponta Varela; odeia os militares portugueses que maltrataram prisioneiros «turras» para obter declarações; condena com grande revolta as chacinas praticadas pelas tropas prtuguesas nos primeiros anos da guerra; e sempre que os oficiais de artilharia fazem fogo para o acampamento do Poidon (****), que ele deu a entender estar muito fraco e já não ser o que foi em tempos atrás, ele olha-os com uns olhos de fúria, o que poderia sugerir a presença de membros da tabanca ou mesmo de pessoas de família naquela área.


(...) Para mim, Mancaman é, acima de tudo, um homem que, como confessou, «não gosta da guerra» e «a sua lei (muçulmana) não quer guerra»; um homem que viveu, pessoalmente, o drama da guerra entre Portugal e Guiné; um homem que sentiu na alma o sofrimento, a morte e a destruição de que foram alvo os seus irmãos guineenses por quererem a independência; um homem marcado por uma tristeza impressionante quando fala destes assuntos.(...)