quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7713: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (55): Na Kontra Ka Kontra: 19.º episódio




1. Décimo nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


19º EPISÓDIO

- Nosso Furriel, o que estou a pensar fazer, o senhor não pode fazer por mim, e como deve imaginar não é ir à orla da mata.

O Furriel afastou-se e o Alferes pensando alto:

- Onde eu vou arranjar uma vaca? Tenho que falar com o João.

Depois de uns momentos a ordenar as ideias, levantou-se e foi procurá-lo para os lados da sua morança, perto do mangueiro, no centro da tabanca. Quando o viu chamou-o à parte e disparou:

- João onde posso arranjar uma vaca?

- Uma vaca? Para que é que o Alferes precisa de uma vaca? Com um cabrito, a sua tropa governa-se dois ou três dias.

- João, João, já se esqueceu da nossa conversa sobre casamentos em que me disse que com uma vaca e uns cabritos se podia “comprar” uma bajuda?

- Ah, então é isso? Desculpe. E pelo que me parece, trata-se da bajuda Asmau. Estou certo? Sempre se quer casar com ela? Quer que o ajude a falar com o chefe Adramane?

- Não, obrigado, eu próprio falarei. O meu único problema, como já disse, é onde vou arranjar uma vaca para dar ao pai da Asmau se ele vier a concordar com o casamento.

- É muito simples Alferes… Quando se fala numa vaca é a mesma coisa que falar no “patacão” que uma vaca vale. O pessoal por aqui dá aos pais das bajudas vacas e cabritos porque é o que tem. Se tivessem dinheiro escusavam de pensar no gado. O Alferes combina com Adramane quanto ele quer e paga-lhe tudo em dinheiro. Além do mais, para ele, que não tem vacas, seria uma grande preocupação ter que tratar só de uma.

Vacas que não são do Adramane.

- Compreendi tudo João. Diga-me só mais uma coisa: Por aqui quanto custa uma vaca, para poder pagar em dinheiro ao Adramane?

- Por mil “pesos” já é bem paga. Quanto aos cabritos uns cinquenta “pesos”.

- Obrigado, João, até logo. Se vier a precisar da sua ajuda, procuro-o.

- Alferes, não se vá já embora pois ainda lhe quero dizer mais umas coisas que é capaz de não saber: Quando for fazer o pedido da bajuda ao Adramane, como eles são muçulmanos não lhe pode levar, como é costume, uma bebida alcoólica como prenda, mas neste caso deve levar uma porção de cola.

- E onde vou arranjar, de hoje para amanhã, a cola?

- Se quiser esperar dois ou três dias, o pessoal como tem que ir a Galomaro, ao comerciante “Regala” fazer algumas compras, podem trazer-lhe a cola mas se não quiser esperar, como eu penso, posso emprestar-lhe alguma e depois dá-ma.

- Agradeço isso. Agora vou mesmo embora. Até logo.

Afasta-se e vai novamente sentar-se na mesa das refeições, de onde se avistavam quase todas as moranças. Via portanto quase tudo o que se passava na tabanca. Alguns dos seus homens, juntamente com milícias, transportavam terra para cima dos abrigos. Outro grupo, que estaria de folga, jogava às cartas na sombra de uma morança, tendo um “pilão” virado ao contrário, como mesa. As mulheres iam e vinham da fonte transportando água. Reparou nos poucos miúdos e bajudinhas que havia na tabanca. Enquanto brincavam iam chupando o miolo das “kabaseras” fruto dos embondeiros, de difícil acesso por se situarem muito alto nas árvores. O vendaval da noite anterior fê-los cair, tendo os miúdos aproveitado essa dádiva da natureza.

Uma Kabasera inteira, outra aberta vendo-se o miolo e
também as sementes depois de chupadas.

Embora longe, a dada altura não teve dúvidas que, num dos extremos da tabanca, a Asmau tinha saído da sua morança e por um carreiro se dirigia provavelmente para a fonte. Era uma oportunidade que tinha para estar com ela, pelo menos para a acompanhar até à fonte. Não se mexe. Continua sentado, seguindo-a com o olhar, apreciando as suas formas perfeitas que a distinguia das demais. Em determinada altura nota que ela olha na sua direcção e então, aí sim, aproveita para lhe acenar com o braço, tendo sido correspondido. Naquele momento foi quanto bastou ao nosso Alferes. Sente-se nas nuvens. Tinha sido correspondido.

Não podia dispersar as ideias. Tinha que pensar na estratégia a usar quando fosse falar com o pai dela. Tudo dependia disso, por mais que ele gostasse da Asmau e ela do Alferes. Tudo estaria nas mãos do Chefe Adramane. Estranhos costumes, que tinham que ser respeitados.

Ao fim de algum tempo chegou a uma conclusão: Pura e simplesmente não havia estratégia, ou melhor, o que havia a fazer não era mais do que rapidamente ir falar com o Adramane, perguntar-lhe se podia casar com a filha e quanto queria de “dote”, saindo da incerteza que o andava a consumir.

Num ímpeto, levanta-se e olhando na direcção da morança do Chefe de Tabanca, como que estabelece o azimute para rapidamente lá chegar. Não chega a dar meia dúzia de passos. Para, estático, qual cão da pradaria pressentindo o perigo.

Com algumas ordens dadas em alta voz aos seus camaradas que estavam mais perto, inflecte o sentido da marcha que tinha iniciado e dirige-se a correr para a sua morança. Iria buscar a G3 e colocar o cinturão onde tinha sempre colocados quatro carregadores de munições e três granadas?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7707: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (54): Na Kontra Ka Kontra: 18.º episódio

1 comentário:

Fernando Gouveia disse...

Glossário do 19º episódio:

CÃO DA PRADARIA: animais que vivem em tocas e que quando pressentem perigo põem-se de pé perscrutando tudo em redor.
PATACÃO: Dinheiro
PESO: Designação local do Escudo guineense.
PILÃO: Grande almofariz de madeira.
KABASERA: Fruto do embondeiro.


Um abraço a todos e até ao próximo.

Fernando Gouveia