sábado, 12 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Importa reconhecer a experiência de Mário Matos e Lemos no domínio cultural e o seu profundo conhecimento do meio, na Guiné-Bissau é indissociável a leitura do sociocultural com o sociopolítico. Profundamente atento à lógica de funcionamento do PAIGC parece, no entanto, que ele não confere importância à real assunção do poder militar a partir dos anos 80.
Foi um poder que se autonomizou e que hoje é o maior perigo para a democracia guineense.

Um abraço do
Mário


O conflito político-militar de 1998-1999, segundo Mário Matos e Lemos

Beja Santos

Jornalista, colaborador televisivo, conselheiro de imprensa em Roma e Moscovo, conselheiro cultural e director do Centro Cultural Português de Bissau entre 1985 e 1998, Mário Matos e Lemos, como se escreveu anteriormente, dedicou um livro à política cultural portuguesa em África, analisando única e exclusivamente a Guiné-Bissau (edição de autor, 1999). Acontece que no termo desta obra Mário Matos e Lemos procura dar uma explicação para os acontecimentos em torno do golpe militar de Junho de 1998.

Conhecedor das realidades políticas, observador qualificado das realidades da Guiné-Bissau, o que escreve é digno de ponderação e deve ficar exarado como análise da melhor bibliografia desses acontecimentos.
Começa por referir, em pano de fundo, o descontentamento da população e particularmente dos antigos combatentes, cada menos mais marginalizados e triturados pela carestia de vida. Dentro desse esforço de análise, comenta que a história do PAIGC é também um encadeado de lutas internas, com a desmesura de rivalidades, étnicas, pessoais, acrescendo a psicose do “inimigo interno”, que se expressou nos fuzilamentos em massa. Segundo o autor, o problema das chefias balantas já era notório no I Congresso do PAIGC, em Cassacá (1964) e daí se pode compreender as intentonas e a paranóia da perseguição que conduziram ao “caso do 17 de Outubro de 1985”, com a prisão e depois a execução de altos dirigentes. Este último golpe teria conduzido à união da chefia militar enquanto na sociedade civil se assistia a um processo de liberalização política e à reafirmação de valores ancestrais, como o caso da recuperação dos chefes tradicionais.

Nas eleições legislativas de 1994, o PAIGC teve menos votos que a oposição mas graças ao método de Hondt teve mais deputados; nas eleições presidenciais, Nino Vieira precisou de ir à segunda volta derrotou por escassa maioria Kumba Ialá. A turbulência dos acontecimentos acentuou as divergências dentro do próprio PAIGC, formaram-se duas alas antagónicas capitaneadas por Manuel Saturnino da Costa e Malã Bacai Sanhá, irão ser tempos em que, graças ao aparecimento da imprensa livre, a população irá tendo conhecimento de histórias espectaculares de corrupção, registar-se-ão manifestações violentas de estudantes liceais, com a derrisão do poder Saturnino Costa será demitido, isto enquanto se agravaram os confrontos entre os dissidentes do Casamansa e as tropas regulares do Senegal. Nem o Governo de Carlos Correia conseguiu aplacar a fúria dos antigos combatentes que passaram a reivindicar a moralização do país e insinuaram publicamente que podiam vir para rua para protestar contra a nova classe política que se locupletava com os dinheiros públicos para os seus negócios privados. Assim se chegou à demissão de Ansumane Mané, acusado de estar envolvido no tráfico de armas para o Casamansa, acontecimentos que foram tornados públicos depois da realização do VI Congresso do PAIGC em que as facções estiveram claramente em confronto.

Em Junho de 1998, o brigadeiro Ansumane Mané, fortalecido pelos apoios que recebera por parte dos combatentes, iniciou a revolta que parecia, segundo a opinião dos comentadores, ser-lhe totalmente desfavorável. Apelando à ajuda internacional, Nino Vieira veio dividir os guineenses e introduzir nova perturbação grave no tabuleiro político da África Ocidental, já turvado pelas relações deterioradas entre a Gâmbia e o Senegal, pela interferência dos líbios, pelos desejos hegemónicos do Senegal enquanto os rebeldes do Casamansa apareciam nitidamente em apoio da Junta Militar, isto para já não falar numa Guiné-Conacri que temia consequências internas do descontentamento em Bissau.

Esta análise de Mário Matos e Lemos foi escrita em Outubro de 1998 e a experiência encarregou-se de demonstrar que o mosaico político-militar da Guiné-Bissau era muito mais complexo do que a leitura que ele fez e que as previsões apresentadas não foram sustentadas pelos novos factos.

Com efeito, sendo verdade que o PAIGC entrara numa luta de facções e que se desacreditara aos olhos do povo pela intensidade da corrupção e do clientelismo, não foi menos verdade que o poder militar a partir de 1980 deixou de estar disciplinado pelo poder político, era esta a doutrina de Amílcar Cabral desde a primeira hora da luta: quem decide são os políticos, toda a lógica da intervenção militar é determinada pelos interesses do Estado e não por reivindicações de classe. Por razões históricas, a partir desses anos 80 os antigos combatentes verificaram que a nova classe política não satisfazia nenhuma das suas reivindicações, os quadros técnicos decidiam indiferentes da sorte de todos aqueles que tinham andado na luta armada.

Cavara-se a separação entre os militares e a classe política, hoje claramente pronunciada. O jogo tribal continua a ser muito influente: Nino foi inicialmente um fiel da balança entre as principais etnias, conduziu a perseguição demencial aos balantas, depois, politicamente enfraquecido na opinião pública e no interior do PAIGC, procurou dinamitar o prestígio de Ansumane Mané, numa altura em que o descontentamento militar superava as razões étnicas. Não terá sido por acaso que pela primeira e única vez depois da independência o povo guineense juntou-se agressivamente para derrotar os exércitos estrangeiros. A continuação da degradação económica levou os militares a promoverem os seus próprios interesses e é hoje público e notório que são eles quem beneficiam e quem orientam, maioritariamente, o negócio da droga, neutralizando ou intimidando o governo legítimo.

Os militares em 1998 já constituíam uma coligação corporativa, já desprezavam os políticos e os partidos. É bom não esquecer que Nino Vieira conheceu a sua última vitória aliado a um partido que se sabia ter sido criado pelos narcotraficantes que se juntaram para o efeito. Mas não existe um documento credível quanto a essa aliança nefanda nem se conhece um qualquer estudo sobre os efeitos dessa coligação dos narcotraficantes com Nino, à luz dos acontecimentos dos últimos anos. O que se sabe é que as altas chefias militares ajustam contas entre si como os gangues de Chicago, intimidam notoriamente o poder político legítimo, vivem à margem da lei.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7758: Notas de leitura (201): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Beja Santos poupou-me mais um livro que tinha que ler.

Aprecio mais uns livros que outros, mas é um esforço da parte de B.S. que valoriza o blog.

Este livro relata coisas a que assisti e fala de pessoas guineenses que conheci pessoalmente.

E, quando oiço ou leio estas coisas, vejo sempre duas realidades: O PAIGC que Amilcar Cabral criou, uma descomunal utopia, e um povo que nunca se absorveu nem compreendeu tal utopia.

Cherno Baldé disse...

Caro Maisvelho Rosinha,

Ha muito tempo que a gente nao discutia, nao é verdade? Ultimamente nao tenho acompanhado com regularidade o Blogue.

Na minha opiniao, todas as utopias sao descomunais e nascem e crescem e morrem sem serem absorvidas ou compreendidas pelo povo a quem se destinam pois nao é dado a todos enveredar pela senda dos percursores.

Certamente o povo portugues absorveu e compreendeu a utopia dos Afonso Henriques e outros logo no inicio da aventura do que viria a ser "as grandes descobertas das terras dos outros".

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Amigo Cherno, para já é um prazer saber que ainda aí estás (há tanto tempo!)
Agora vou dizer-te a primeira impressão que tive quando com 18 anos cheguei a Luanda (África) em 1957.
´
Fiquei com a ideia que os luandenses de todas as cores conheciam melhor Portugal e todos os portugueses desde o Minho ao Funchal, do que eu, que nunca tinha saído da minha parvalheira.

Isto em 1957, e mais tarde em Bissau no tempo de Luis Cabral e de Nino, confirmei que os guineenses detinham a mesma prespicácia sobre o tuga, que os luandenses.

E hoje chego à conclusão que aprendi com os guineenses, brasileiros, caboverdeanos e angolanos a olhar para Portugal e portugas, tugas, caputos, cabeças de porco, etc. etc.

Nem fazes ideia de quantos amigos e colegas porreiríssimos que deixei no Brasil, Luanda, e Bissau.

E, tal como em Portugal, é difícil encontrar nessas terras políticos que respeitem o povo. E foi nessas terras que ouvi que em Portugal não nos sabemos governar, como é que queriamos governar outros?

E Amilcar tambem escreveu mais ou menos isso, e era uma das justificações dele para fazer a guerra da independência.

Mas guerra sem armas tinha sido a verdadeira utopia posta em prática, como aconteceu em Caboverde.

Ouvi isto a um angolano na RTP no 4 de Fevereiro 50º aniversário da revolução de Luanda.

O angolano que disse isso foi o escritor Agualusa.

Um abraço e não desapareças por tanto tempo.