sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7815: Notas de leitura (205): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Recomendo sem qualquer hesitação “A Última Missão”, é um depoimento de grande significado, ficará indubitavelmente na galeria da nossa literatura de guerra.
Foi por respeito ao acervo documental e à qualidade narrativa de alguns dos episódios que tomei a liberdade de repartir por três textos as memórias do coronel Calheiros. Talvez depois de lerem este livro concordem que valeu a pena realçar o que há de significado histórico e de timbre na delicadeza de sentimentos do nobre soldado que arrosta levar por diante esta última missão.

Um abraço do
Mário


Das memórias do Cantanhez até às operações de Guidage
"A Última Missão"

Beja Santos

Não é um romance, não é um compêndio de recordações avulsas de diferentes comissões militares, não é um relatório rigoroso de uma missão precisa que levou um veterano dessas guerras até uma povoação da Guiné onde, 35 anos atrás, ocorrera uma tragédia, um supremo sacrifício, embora a coluna vertebral ou o pretexto da escrita seja, em concreto, uma operação de resgate dos restos mortais de três pára-quedistas e de outros sete do Exército. É um livro onde confluem, a pretexto dessa missão, memórias, recordações de todas essas experiências, vividas durante mais de dez anos, em teatros de operações diferentes; é também um registo intimista para onde convergem as lembranças de gente que se preparou para a tropa especial num determinado contexto, um amplo palco onde se vão movimentar muitos combatentes subtraídos à vida real, gente que teve medos, comportamentos heróicos, tristezas infindas. É, pois, uma obra de muitas memórias que afluem num quase presente (Março de 2008) em que um oficial pára-quedista se integrou numa missão da Liga dos Combatentes que tinha o fito de exumar, em Guidage, dez cadáveres. Levavam um croqui do cemitério militar de Guidage e procuraram levar as pessoas certas para o sucesso da missão. É esta a imensa viagem que nos propõe este belíssimo relato onde se misturam o tempo da guerra vivida e a sua memória, a pretexto de um resgate: “A Última Missão”, de José de Moura Calheiros (Caminhos Romanos, 2010).

Na aparência, tudo começa na manhã do dia 7 de Março de 2008, no aeroporto da Portela de Sacavém, é aqui que se inicia a missão de resgate. Um oficial pára-quedista, juntamente com outros pára-quedistas, dirigem-se a Guidage, onde, em Maio de 1973, ocorreu um fortíssimo assédio do PAIGC e se perderam muitas vidas. O autor recorda as suas vivências em Angola e Moçambique, as tropas com quem combateu, a natureza desses teatros de operações, a preparação dos “páras”, entremeia essas lembranças com os preparativos dessa operação de resgate, o avião aterra em Bissalanca, novas lembranças o assaltam, a começar pela sua antiga unidade, o BCP12. Percorre a Bissau de 2008 e confronta-a com a de 1971. O antes e o depois são-nos dados pelo preto e branco do passado e a fotografia a cores do presente, igualmente a composição dos textos também demarca presente e passado. E assim se parte para Farim, local escolhido para a base de operações, a algumas dezenas de quilómetros de Guidage. A própria Farim traz novas recordações, o autor também passara por aqui noutros tempos. Começa a relacionar-se com a população e apercebe-se do drama dos ex-militares das Forças Armadas Portuguesas que continuam à espera que se reponha a justiça nas pensões que lhe são devidas. Insiste-se na precisão do relato, no intimismo das observações, na serenidade dos juízos proferidos, na vontade em interpretar o que se vê à volta. A propósito da preparação dos três pára-quedistas mortos perto de Guidage, o autor descreve o curso de pára-quedismo, a integração do pára nas diferentes unidades. Passa seguidamente para as operações de baptismo de fogo e encaminha o leitor para uma operação extraordinária em que ele participou e que foi a reocupação do Cantanhez.

É um capítulo do maior interesse, descreve a missão que fora atribuída ao BCP 12, o Cantanhez era considerado pelo PAIGC como território libertado, estava ali estacionado o seu 1.º Corpo de Exército, esta operação foi designada “Grande Empresa”, veio a seguir à “Muralha Quimérica” em que o BCP 12 e outras unidades tentaram impedir a visita de uma delegação da ONU. O coronel Calheiros não poupa elogios à prossecução da “Grande Empresa” e descreve-a minuciosamente. Iniciou-se em Dezembro de 1972 e tinha como finalidade assegurar em continuidade a presença das tropas portuguesas em pontos estratégicos da Península do Cantanhez. É um relato de inegável valor e que clarifica o modo como foram criados aldeamentos e aquartelamentos e estabelecida a comunicação com as populações, obrigadas a viver sob a pressão dos dois lados. No final de Março de 1973, o general Spínola reconhecia que a “Grande Empresa” estava a ter sucesso com a instalação de aquartelamentos, os patrulhamentos constantes por terra e nos rios.

Voltando aos três pára-quedistas falecidos na região de Guidage, descreve a primeira operação dos soldados Loureço e Vitoriano que tinham chegado à Guiné em Fevereiro de 1973. Temos aqui igualmente um registo do maior interesse sobre Sargentoxanque e o seu modo de viver, tal como Caboxanque, Cadique e Cafine, entre outros aquartelamentos instalados no Cantanhez. E de novo salta para Março de 2008, está-se no cumprimento da missão de resgate, tudo começa pela incógnita do local onde fora o cemitério militar de Guidage, todos se sentiam desorientados sobre a sua localização. É dentro deste quadro de peripécias que a mente do coronel Calheiros regressa a Abril de 1973, altura em que várias aeronaves são atingidas por mísseis terra-ar. A referência não é inédita, no próprio blogue toda a situação de Guidage tem vindo a ser tratada por diferentes protagonistas. Depois, o autor recorda-se das conversações de Cap Skirring, que envolveram Senghor e Spínola e que culminaram no fiasco, Marcelo Caetano determinou que cessassem aqui os contactos, nada de integrar o PAIGC na vida da Guiné e muito menos criar uma perspectiva de uma total independência a dez anos.

O autor vem de férias em Abril desse ano, apercebe-se que a opinião pública está praticamente alheia ao que se passava em todos os teatros de operações. E observa: “O único local onde na Metrópole se falava abertamente da guerra do Ultramar, naquela altura e com intensidade, era nas universidades. Constatei esse facto no ISCEF, onde tive que ir poucos dias após a minha chegada. Estive lá duas ou três vezes e em todas elas pude verificar que continuava a haver reuniões de alunos e manifestações contra a guerra no Ultramar. A propaganda contra a guerra, abundantemente exposta nas paredes, bem como o fervor das reuniões que pude observar, ainda eram maiores do que antes de ter embarcado para a Guiné. Mas se nessa ocasião tinha uma posição neutra quanto a elas, olhando-as de forma despreocupada, a minha sensibilidade a este problema havia-se alterado profundamente. Agora sentia-me bastante constrangido ao observá-las pois receava muito as suas consequências. Aliás, já a estava a sentir fortemente na Guiné, com a falta de combatividade, mas sobretudo de preparação das nossas unidades de quadrícula, enquadradas quase a cem por cento por oficiais milicianos”. E estamos chegados aos acontecimentos de Maio e ao supremo sacrifício que se viveu em Guidage. Temos pois as ossadas dos mortos. É um testemunho eloquente, o adeus a Guidage e as cerimónias da entrega dos restos mortais às famílias. É matéria para o último texto desta recensão.

“A Última Missão” é uma peça relevante da nossa literatura de guerra, ponho-a sem hesitar ao lado das memórias do Sargento Talhadas e desse Comando de quem aguardamos mais notícias (Virgínio Briote, para quando?), o Amadu Djaló.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7805: Notas de leitura (204) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (1) (Mário Beja Santos)

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