sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7864: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Dom Quixote de Lapin

1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 24 de Fevereiro de 2011:

Caros Camaradas
Dos fracos não reza a história.
Mas todos os vencedores já perderam.
Por isso, vamos continuar.
Um abraço do Silva


Memórias boas da minha guerra (13)

Dom Quixote de Lapin

Estávamos em meados de Outubro de 1965.

Domingo de manhã na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Fim de semana para toda a gente menos para os de longe e para os castigados.

Nesse curso, havia apenas três gajos da zona do Porto: O Egas (o da corda) de Gondomar, o Fonseca de Rio Tinto e eu, de Fiães. Enquanto que os outros nortenhos seguiram para gozar o fim-de-semana, eu, com três castigos no “placard”, fiquei, mais uma vez, meio abandonado a moer a minha revolta.

Junto ao Pavilhão Polidesportivo faziam-se equipas para alguns passatempos e eu, talvez porque aparentava alguma antipatia, ou, então, por ser um “estrangeiro de lá de cima”, fiquei sentado a contemplar os dotes desportivos daqueles craques, onde eu não merecia lugar em qualquer das equipas. Mas, afinal, não estava sozinho, porque me apercebi logo que o algarvio, a quem chamávamos Dom Quixote de Lapin, também havia sido preterido. Ora, o Rodrigo, tinha trazido do Algarve alguns vizinhos que já o conheciam por esse apelido “de Lapin”. Era esquelético, alto e de cara afiada. Tinha uma boca pequena de onde se salientavam os tais dois dentes grandes, cujo aspecto lhe teria dado justamente o tal apelido de Lapin. Tinha os cabelos aloirados e especados em várias direcções, resistentes a qualquer tipo de penteado. A farda sobrava-lhe tanto que os respectivos colarinhos lhe davam para meter dois pescoços. Pois, o Dom Quixote de Lapin tornou-se facilmente numa figura extremamente conhecida. Todavia, os nossos camaradas não lhe viram qualidades para o desporto, o que era absolutamente natural, ou então, recearam que ele, tão frágil, se pudesse magoar.

Vista parcial de Santarém.
Foto retirada do site da Câmara Municipal, com a devida vénia

Ao ver-me meio sisudo e pouco alegre, abeirou-se para me reconfortar. Foi metendo conversa e, de repente, apareceu-me de luvas de boxe calçadas e com outro par para mim.

- Oh pá, vamo-nos entreter com isto. Vais ver que é porreiro – incentivava ele.

- Pois pode ser, mas eu não quero saber nada disso e para mais é um desporto que não gosto e em que perdem sempre os dois – respondi-lhe.

Ele pôs as luvas sobre os meus joelhos e começou a fazer gestos de pugilista, na minha direcção, enquanto insistia para eu experimentar. Além de não gostar daquela modalidade, também não queria ter a responsabilidade de lhe partir os ossos, pois acreditava nas capacidades físicas do meu corpinho de atleta. Ele, não me convencia. Tanto insistiu que eu, por curiosidade, enfiei as luvas. Daí, até lhe responder, com os meus gestos, foi um repente.

Começou a tocar-me na “fronha” e eu, querendo responder-lhe, não lhe acertava uma. Até que tomei a atitude de reagir com mais agressividade. Levei um “penso” que me estatelei logo no chão. Meio atordoado e muito melindrado com a situação, levanto-me e tento fazer-lhe o mesmo. Então é que ele me acertou em cheio. Devo ter levado um tempito para reanimar. Mal me apercebi da humilhação que estava a levar, enraivecido, corro para ele, procurando atingi-lo de qualquer maneira e em qualquer parte do corpo. O Dom Quixote gritava para eu ter calma, que éramos amigos, etc etc. Como um cavalheiro (ou não fosse ele um sósia do tal Fidalgo de La Mancha), pediu-me desculpa por se ter excedido e não me ter informado que era atleta de Boxe e que se aproveitara da oportunidade por sentir muita necessidade de treinar. E foi adiantando que eu, da forma como reagia, não tinha quaisquer hipóteses de sucesso nessa modalidade desportiva.

À noite, quando chegaram os meus amigos, foram procurar-me aos balneários, onde eu, com água fresca, ainda tentava emagrecer as minhas maltratadas feições.

- Hi, cun’ cara...go! Oh Egas, olha o que fizeram ao nosso vizinho Silva – gritou o Rio Tinto. - Ele está com as “bentas” inchadas. Coseram-lhe a “tromba” – continuava ele.

O Egas, um gondomarense de gema, abeirou-se e logo, valentemente, perguntou:

– Quantos eram, quantos eram? E aumentando o tom de voz: - Até os comemos! Ele, que não podia com uma gata pelo rabo (estava à espera de Junta Médica para ser recusado por “incapaz”), já estava a preparar a devida resposta aos agressores, quando eu afirmei:

- Foi só um!

- O quê, que não ouvi bem? – interpelava o Rio Tinto.

Lá respondi: – Foi o Dom Quixote de Lapin!

Gargalhada geral.

- Como? – voltou o Rio Tinto - Aquele transparente, que não aguenta uma revoada de vento?

– Sim – respondi-lhe - Sim, esse pau-de-virar-tripas, que é praticante de Boxe e que eu, feito Tarzan Taborda, tentei assapar-lhe o pelo!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7766: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Uma madrinha de guerra

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