sábado, 5 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2011:

Queridos amigos,
É bem agradável entrar numa livraria e encontrar um romancista português que se embrenha no terrível conflito político-militar 1998-1999 e escreve um belo romance. Luís Naves nasceu em 1961, é repórter e escreve sem a nostalgia do combatente. Devemos ter orgulho nesta escrita e neste multiculturalismo.
Uma saudação muito especial a este Luís Naves, um novo tipo de camaradagem da e com a Guiné.

Um abraço do
Mário


Jardim Botânico (1):
Um belo romance português sobre o conflito guineense de 1998-1999


Beja Santos

Por vezes, o repórter afeiçoa-se aos lugares onde, por dever e inerência da velocidade dos despachos, passa meteoricamente; acontecimentos há que forçam a um olhar mais demorado, a expectativa acicata a curiosidade, reproduz as perguntas, estimula a imaginação. E, mais tarde, numa vazante imprevista, o jornalista começa a preencher com paciência a tela vazia. Temos romance, o que visto e ouvido é o barro trabalhado da fantasia que arrebatou o captador de notícias.

Luís Naves é jornalista e fez reportagens na Guiné-Bissau, Paquistão e Coreia do Norte. “Jardim Botânico” é um romance que tem como palco a Guiné-Bissau durante o conflito que estalou em Junho de 1998. Ainda hoje a Guiné-Bissau não se recompôs deste cataclismo. Mas naqueles dias, as populações puseram-se em fuga, acirraram-se ódios, em espiral sucederam-se os dramas. Para quem tudo aquilo observava, aquelas catástrofes humanas podiam despertar o tal barro da fantasia. Luís Naves tomou nota dessa gente à deriva, registou todo esse tempo de incerteza, a começar por uma capital cercada onde um ditador fantasmático foi forçado a admitir que o seu poder absoluto fora absolutamente contestado. “Jardim Botânico” é um belo romance, merece ser apreciado, ficciona superiormente um tempo de dilúvio que ainda hoje mantém um povo traumatizado (“Jardim Botânico”, por Luís Naves, Quetzal Editores, 2011).

Há qualquer coisa de realismo mágico no arranque da obra: “Uma misteriosa forma de medo ocupa a mente daqueles que viveram situações assustadoras. O medo, por ser contagioso, pega-se de um homem a outro ainda mais depressa do que as banais constipações. Pode ser por contágio instantâneo ou propagar-se como doença silenciosa, com a lentidão que usam os micróbios. O medo é sempre extravagante, como os chapéus de senhora, os vestidos de noite e a vegetação subtropical. Quer dizer, tem aparência firme, mas na realidade consiste num impulso que se decide num instante”. O que para o caso interessa é que no dia 9 de Junho de 1998 quando um cortejo de carros oficiais se dirigia para o aeroporto começou um tiroteio. Houve mortos e começaram as retaliações. O medo tomou conta daquela gente, da apatia ou da disfarçada indiferença, passou-se para o pânico e daí as colunas de civis em fuga, como se lê no romance: “Tudo o que tinha rodas avançou rumo ao interior (jipes, camiões, toca-tocas, bicicletas e carrinhos de bebé). Mas o grosso da coluna marchava. Havia mulheres de trouxa à cabeça e crianças agarradas à saias; um formigueiro em marcha, com fanatismo de insecto: os do meio sem saberem porque seguem aquele caminho, os da frente nunca se sentindo os da frente; pois que cada um vai atrás do outro, esse outro de ainda outro, e assim sucessivamente, numa correnteza. Viam-se pernas finas e pés descalços, braços empunhando objectos inúteis, um rádio, a ruína de um motor, ripas de madeira, colchões, pedaços soltos, a cadeira viajando no topo do monte de roupa, como se fosse um trono. E foram vistos velhos de mãos vazias caminhando em sentido oposto; veteranos da guerra colonial, que se dirigiam para os quartéis em torno do aeroporto. Foi assim que os rebeldes engrossaram as forças. Crescia a maré da fuga, vinha o refluxo do passado. É no meio do pesadelo que se ouvem os silvos, os estrondos, a multiplicidade dos disparos. Edifícios a desfazerem-se, desmembrados pelas nuvens das explosões, refugiados a chorar, num espectáculo dantesco muitas pessoas conseguiram embarcar no Ponta de Sagres, que partiu rumo a Dakar. Começara o conflito político-militar. O barco atraca, é altura do romancista apresentar personagens: Daniel está no cais, é ali que repara numa ruiva com aspecto de solidão abandonada, ela é a médica russa, o seu nome Ana. Ela está indocumentada, tem um passaporte soviético caducado. Estão os dois à deriva, ambos decidem voltar à Guiné, conseguem formar um grupo, marcham em direcção ao desconhecido. Mais personagens estão apresentados. Por exemplo, o doutor Fonseca: “Era um mulato gordo, com os dentes desalinhados e um sorriso simpático. Trabalhara como secretário do Estado e era ligado ao presidente. Dois anos antes, tinha sido afastado do poder mas mantivera-se no partido e ainda morava numa das boas casas do centro da cidade. Agora, tentava montar um negócio de importações, mas fora surpreendido pelo golpe militar quando estava quase a convencer um sócio senegalês a investir numa empresa mista”. Há outras figuras como Nelo, a mais famosa voz da rádio em Bissau, uma sua prima que leva um ramo de flores, de nome Maria Adilia, vai participar no enterro da filha. Viajam num sept-places, foi difícil negociar o preço para levar aquela gente até à Guiné. Seguem-se as peripécias da viagem numa terra esvaziada, aqueles corpos humanos, suados, vão colados uns aos outros. Cabe aqui uma descrição da crueza de todo aquele território, daqueles estados de alma, daquela natureza dominada por um calor anestesiante: “Entraram de novo em campos infindos, sem movimento; na terra esvaziada, havia por vezes manchas de capim seco; um rasgão de nuvem branca como se fosse um risco numa folha azul, o ar rodopiava e surgia uma miragem, ao fundo, zona tremente que se mistura com o horizonte, dando a impressão de uma lagoa distante. Durante quilómetros, a estrada serpenteava por bizarras colinas amarelas, terra de areia, mais plana e sem árvores. Depois, muito devagar, chegaram a uma paisagem denominada por grandes pedras partidas, rocha visível, como se o esqueleto do mundo tivesse emergido das profundezas da carne. Pararam. O silêncio. Não havia ninguém nas bordas da estrada. À volta, arbustos ligeiros, rastos. E sobre o resto pairava o reflexo das ondas de pó, entre branco e transparente, que a luz pesada do sol incendiado transformava em véu asfixiante”.

Mais peripécias, desta feita negociações com guardas senegaleses que afirmam que o motorista não pagou o seguro. Já saíram de Koldá, estão perto da fronteira. É nisto que aparece Ferreira Gomes, o sócio de Daniel. A viagem prossegue, chegam a Bafatá.

Como diz o autor, “Esta é a história de 4 pessoas no meio da catástrofe humana”. Era preciso que alguém escrevesse sobre aquela guerra e todos aqueles dramas que, bem vistas as coisas, foram uma curta notícia durante alguns dias em certas agências noticiosas. É uma história onde o medo pesa. E, talvez a coisa mais importante, há que saudar o jornalista e o repórter português que enfrenta com grande galhardia este desmedido jardim botânico que é a Guiné.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7899: Notas de leitura (212): Angola 61 - Guerra Colonial - Causas e Consequências, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus (Mário Beja Santos)

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