sábado, 19 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7963: Blogpoesia (116): Neste dia 19 de Março, homenagem a meu Pai e a todos os Pais (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa* com data de 16 de Março de 2011:

Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Lembrando mais uma efeméride, 19 de Março, (O dia do Pai), resolvi enviar uma carta que escrevi ao meu pai, que já não vejo desde 1993, porque a morte o veio buscar, e que pretendo seja, uma homenagem a todos os pais que nela se revejam.
Quantos de nós, já temos pensado, que gostaríamos de poder escrever ao nosso pai, dizendo-lhe o que nunca lhe dissemos enquanto os tivemos junto de nós?
É isso que faço aqui!

Se achar que faz sentido, Carlos... publique.
Obrigada.
Um abraço fraterno da
Felismina Costa


Pai!

Lembras-te pai, daqueles anos em que vivíamos todos no Monte-Novo-das-Flores?
Lembras-te de me acordares todos os dias dizendo:
 --São horas filha, já o sol vai alto!
 O sol… nascia dentro da nossa casa!
Literalmente, nascia dentro da nossa casa!
E rapidamente se elevava, naquele céu azul, maravilhoso, umas vezes doce, suave…
E outras queimando… abrasando, impondo a sua força, em Verões caniculares!
Lembras-te pai? Daqueles dias Primaveris em que cavavas aquela terra toda, desenhando e preparando os canteiros para as sementeiras de Verão?
O cheiro bom da terra fresca, afagada, limpa, arranjada, mostrando a sua cor morena e forte, maternal e amiga, esperando apenas a semente para a transformar num espaço luxuriante de verdura, que antecedia a flor, que gerava o fruto?
O teu corpo esguio, elegante, de braços compridos e mãos grandes, firmes e determinadas, quando pegavas na enxada para transformar em matéria leve e fofa, aquela terra pesada, dura, ou encharcada de água, que te encharcava o corpo de suor, eram as mesmas mãos que depois nos acariciavam, quando sorridente nos contavas velhas e divertidas histórias, e tu, o mesmo, que determinado dizia não, quando era preciso dizer não… mesmo sorrindo, mas sem desarmar.
Pai, quantas vezes me lembro de ti!
Do teu porte varonil e belo.
Vestias com gosto a roupa limpa e arranjada que sempre brilhou no teu corpo e que sempre refiro como um exemplo de brio, de galhardia.
Um dia, enquanto varejavas a oliveira grande, tivemos uma conversa que sempre recordo, que sempre te agradeço. Grande lição de vida! Uma das maiores lições que tu me deste. Eu devia ter, os meus catorze, quinze anos, e às vezes falo dela aos meus amigos.
Contei-a aos meus filhos e ao meu neto, que a escutaram respeitosamente, compreendendo, tal como eu compreendi, o teu conselho, o teu alerta, para as ciladas da vida. Preciso, sem arrogâncias, fazias-nos acreditar que as tuas palavras, os teus conselhos, eram a ajuda certa para prosseguir a caminhada.
Que bem que nos fez a tua experiência de vida!
Pai, recordo cada frase, cada gesto, cada sorriso, cada olhar… e tenho tantas saudades tuas!
Recordo cada dia, ali vividos!
Pai, recordo cada som daquele espaço!
Os meus irmãos brincando e ajudando no trabalho da quinta, o barulho do motor a dois tempos, que puxava a água do poço para o tanque, ao fim da tarde.
O tanque cheio de agua fresca e pura… espelhava a lua… e um sapo cantava, mal virávamos as costas, encantado e agradecido.
O cantar do cuco por detrás da "Soalheirinha", até ao findar do dia.
O cantar dos grilos e das cigarras acompanhava-nos ao longo do caminho até casa, casa, que de resto, ficava tão próxima, só uns cinquenta metros mais acima, e que, em dias luminosos e calmos de Outono, nos dava uma imagem idílica da vida campestre, com o fumo saindo da chaminé, vagaroso, cinzento, inclinando-se calmamente pelo espaço, ao fim da tarde.
O cheiro bom da erva que o calor ia cada dia transformando em feno, aspirava-se a plenos pulmões, e o cansaço do dia era agora minimizado na absorção desse perfume quente, gostoso e calmante.
Tudo se traduzia num entendimento perfeito, num conhecimento total das leis que regiam a natureza.

Feliz, eu cantava as cantigas em voga, que entoavam no espaço livre.
Por vezes também te ouvia cantar, cantigas dos teus tempos idos. Ainda me recordo do princípio de uma canção, ou fado-canção, que gostavas de trautear e começava assim:

(…Era uma tarde de Inverno
Em que o céu parecia o Inferno
Andavam os astros em guerra
E a ribeira mal continha
As grandes cheias que vinham
Lá dos vertentes da serra…)

E eu ouvia atenta esse teu trautear, que animava a doce calma do lugar, enquanto ia trabalhando a teu lado, feliz e segura.

Trabalhar a terra… é uma terapia que recomendo vivamente!

Ver transformado em fruto o esforço colectivo da família, era a alegria total, o agradecimento surgia naturalmente, valorizava-se cada folha, cada flor, cada grão, cada aroma, cada forma apresentada…

As figueiras, carregadas de figos pretos e brancos, eram uma delícia, uma recompensa depois do trabalho árduo, que abria o apetite, e nos tornava gratos.
No conforto doce da casa, as refeições, à base dos produtos totalmente biológicos que criávamos, tinham um sabor único, inconfundível.
Às vezes faltava o tempo para cozinhar mas, qualquer coisa que se fizesse era gostoso, reconfortante.
Cestos de fruta acabada de colher eram as fruteiras que decoravam a mesa ou os cantos da cozinha.
O espaço que habitávamos era magnífico na sua simplicidade, na sua naturalidade.
O sol tornava-o resplandecente!
E nós tudo fazíamos para o alindar.
Dávamos à terra as sementes e plantávamos árvores para que se cumprisse a vida, para que germinando e florindo, aquele espaço desenvolvesse as suas capacidades criadoras, que nos alegrava, que nos enriquecia, enquanto seres humildes.
As aves ofereciam-nos músicas de encantar e o espectáculo dos voos e das cores da sua plumagem, qual orquestra exibindo obras imortais, com todos os seus elementos vestidos a rigor.
No ribeiro que dividia a quinta longitudinalmente, a água corria docemente e as rãs cantavam para nós.
Esse pequeno espaço… era o meu mundo e nele encontrei muitos motivos de encanto.
A paz, o sossego, a luz, as cores, os sons, o afecto, a segurança…
Nele cresci, segura e feliz, na família construída sob a tua regência.
O presente era magnífico, como me poderia assustar o futuro?

A mãe?.. que saudades da minha mãe!
Todos os minutos da sua vida foram de trabalho e dedicação, de amor, de vontade, de brio, de coragem!
Mas a carta hoje é para ti, Pai!
Há muito que andava para te escrever.
Há muito que andava para te dizer das lembranças que marcaram a minha vida.
Das lembranças que me deixaste.
Lembranças da tua força… e também das tuas fraquezas… mas, a tua presença enchia a nossa casa, era a base, a solidez, a estrutura, a confiança.
Precisava de te dizer isto.
Sempre que eu e os meus irmãos nos juntamos, falamos de vós, com alegria e emoção, com orgulho, com gratidão!
Lembramos a nossa infância e adolescência até àquele dia em que, cumprindo as leis da vida, fomos deixando a casa paterna.
Tentamos todos seguir o vosso exemplo. Tentamos todos passar para os nossos filhos os vossos exemplos, a vossa ternura, a vossa verticalidade, a vossa capacidade de enfrentar os revezes, sem alarmismos, mas com determinação. Com coragem!
Foi muito bom ter nascido do vosso amor.
Obrigada meu pai, pela companhia, pela presença, pelo afecto, pelo esforço dispendido ao longo dos anos, muitas vezes menos bem, (porque a saúde às vezes falta), pela família que me ofereceste e por teres permanecido ao meu lado, ao longo de toda a tua vida.

Agradecida e Saudosa… sou a tua filha… Felismina.

Felismina Costa
Agualva, 1 de Março de 2011
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7844: Blogoterapia (178): Regresso ao passado (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7961: Blogpoesia (115): Aromas de Camabatela, Quando cheguei a Luanda (1) (Albino Silva)

19 comentários:

Anónimo disse...

Felismina,

Parabéns pelo lindo texto que nos apresenta no dia do Pai, em 2011.

Não há duas histórias iguais, mas ao ler a sua carta, retrocedi aos meus 14/15 anos e descobri tantas coincidências.
Até o ribeiro, que dividia a quinta, longitudinalmente.

Gostei de ler. É que eu fui filho, durante 54 anos e sou pai, há 45.

Obrigado.

Um Abraço.

Manuel Amaro.

Anónimo disse...

Cara Felíssima,

Belo texto de amor e saudade.

É maravilhosa a homenagem que faz aos seus pais quando diz:
"Foi muito bom ter nascido do vosso amor."

Eles, os nossos pais, estarão sempre presentes em nós enquanto continuarmos a marcha que nos legaram.

Obrigado.

José Câmara

Manuel Joaquim disse...

Gosto muito deste texto, Felismina: pela afetivividade que transporta, pelo maravilhoso sabor telúrico que tem, pela imagem realista de um certo meio rural já desaparecido(?) que tão bem nos apresenta e que a mim, em especial, me comove.

Afetuosos cumprimentos

Manuel Joaquim disse...

Gosto muito deste texto, Felismina: pela afetivividade que transporta, pelo maravilhoso sabor telúrico que tem, pela imagem realista de um certo meio rural já desaparecido(?) que tão bem nos apresenta e que a mim, em especial, me comove.

Afetuosos cumprimentos

Manuel Joaquim disse...

Cara Felismina

Ora bolas, repete-se o comentário e repete-se o erro "afetivividade". É claro que me referia à Linguagem afetiva , à afetividade que de si emana para se infiltrar nas belas palavras deste seu texto.

Aproveito para lhe dizer que somos vizinhos de Agualva ( moro há 42 anos junto da Escola Sec. Ferreira Dias)

Afetuosos cumprimentos

Anónimo disse...

Cara Felismina,
Trocar-lhe o nome é que não. Mil perdões!
José Câmara

antonio barbosa disse...

fELISMINA COSTA
Parabéns pelo texto com que nos presenteou neste dia 19 de Março
dia de TODOS OS PAIS, julgo que todos nos revemos no que escreveu
Um bem haja
ANTONIO BARBOSA

manuelmaia disse...

Cara Felismina,


Parabéns pelo texto.
Quando se viu já os pais partir,há concerteza um sentimento de vazio extremamente marcante, e é em datas com a universalidade desta, de aniversário natalício, ou de falecimento, que certamente essa saudade bate mais à porta.
Felizmente para mim,ainda cá tenho os dois,o meu pai com oitenta e oito e a minha mãe,curiosamente, a festejar hoje - dia do pai- o seu octogésimo quinto aniversário.
Espero poder contar com ambos muitos e bons anos.

manuelmaia

Anónimo disse...

Cara amiga Felismina

Não encontro palavras para descrever os sentimentos de amor e saudade que me assolaram ao ler este seu texto magnífico.
Eu achava que tinha tido o melhor pai do mundo, por quem todos os dias choro, que partiu há cerca de 2 anos, mas que ainda me faz rir quando me lembro do seu afinado sentido de humor.
Só posso dizer que a Felismina é a filha que qualquer pai gostaria de ter. E o senhor seu pai terá sido o pai que todos gostaríam de ter tido.
Sabemos que não é possível todos termos os pais vivos, mas o mundo seria muito melhor, se, neste dia especial, todos tivessemos a presença ou a recordação de um pai como o que a Felismina nos deu a conhecer, e que tem tantas, tantas, semelhanças com o meu querido pai.

Obrigada!

Um afectuoso abraço

Maria Teresa Parreira

José Barros disse...

Felismina,

Obrigada pelo lindo texto que escreve.
Ele é lindo, lindo....comovido não consigo dizer mais.Obrigada

Nuno poeta da FAP disse...

Como me tocou...
Fui ferido, na Guiné, e dado como morto, 3 dias antes de fazer 22 anos, e o meu pai recebeu a notícia da minha morte nesse mesmo dia.
Só me pôde ver 2 meses depois, e não consigo imaginar a sua angústia durante esse lapso de tempo.
A sua saúde deteriorou-se com o que foi obrigado a assistir na minha recuperação física e mental.
Morreu, de enfarte, no dia em que completei 26 anos.
Tudo o que sofri na guerra e nos hospitais foi uma insignificância comparado com o que ele teve que suportar.
Agradeço-lhe as suas palavras e se me permite usurpo-as para as dedicar ao meu pai.
Nuno Almeida

Anónimo disse...

Felismina,

Maravilhoso!

Simplesmente obrigado por aqui vir o nosso Alentejo profundo.

Mário Fitas

ze manel cancela disse...

MARAVILHOSO

Obrigado Felismina

Anónimo disse...

Cara Felismina
Um texto lindo, com muita sensibilidade.
Infelizmente perdi o meu pai, à 60 anos, nunca tive o previlégio de conviver com ele, e tenho muita pena.
Em contrapartida ainda tenho a minha mãe viva.
"No dia em que perdermos a nossa mãe, deixamos de ser crianças", felizmente ainda continuo a ser criança...
Obrigado pelo texto.
Abraço
Luís Borrega

José Marcelino Martins disse...

Minha querida Felismina

Pai é Pai, e nos somos sempre os seus "miúdos", até ao dia que, por razões que nós nunca queremos imaginar, " a casa fica sem tecto" com a sua partida.

Depois a "história" repetirse-á pela eternidade, como já acontece de há seculos a esta parte.

Mais um texto que nos faz pensar ...

Parabens!

Fernando Gouveia disse...

Felismina:

"O Sol nascia dentro da nossa casa"

" O fumo saindo da chaminé, vagaroso"

"O céu parecia o inferno andavam os astros em guerra"

"E as rãs cantavam para nós"

Poesia.

Como a compreendo. Também tínhamos assim uma propriedade com um ribeiro ao meio.

Um abraço.
Fernando Gouveia

antonio pimentel disse...

Obrigado Felismina,

tenho a certeza que seu Pai, todos os Pais, ficam mais felizes depois de lerem o que escreveu!

António Pimentel

Anónimo disse...

Cara Amiga Flismina.Obrigado por nos presentear com este lindo texto.Se meu pai fosse vivo completaria neste dia, a bonita idade de 102 anos.Desculpe o atrazo mas, ontem fiz uma limpeza enorme ao meu computador e de forma que só hoje de manha dei com este maravilhoso,fantástico texto Obrigado Caetano da Silva

Anónimo disse...

Meus Amigos!

Fiquei emocionada com a expressão da vossa sensibilidade.

Eu sei que a nossa forma de sentir é muito próxima, pois todos somos filhos, e, só o tempo, e muitas vezes a ausência, (muitas vezes definitiva), é que nos torna capazes de expressar os nossos sentimentos, que foram ficando à espera da oportunidade para se manifestarem.

Bem-hajam todos os que sentem a necessidade de o fazer.

A todos, o meu abraço fraterno e
solidário.

muito grata

Felismina Costa