segunda-feira, 11 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8081: Notas de leitura (227): A Guiné-Bissau e os sabores da lusofonia (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Mais tarde ou mais cedo haveria que exaltar a primorosa gastronomia guineense que inexplicavelmente ignoramos.
Há dezenas de restaurantes de comida cabo-verdiana, nem um só de comida guineense, falo pela região de Lisboa. Para comer canja de ostra tenho que fazer encomendas de particulares. Numa época em que se fala de novas oportunidades, no microcrédito e se incentivam pequenas empresas, é difícil compreender como os portugueses oriundos da Guiné e os imigrantes não abrem espaços de convívio à mesa, seriam certamente um sucesso.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau e os sabores da lusofonia

Beja Santos

Em 2009, os CTT através do Clube Coleccionador dos Correios editaram “Sabores da Lusofonia… Com Selos”, com autoria de David Lopes Ramos. É uma edição que prima pelo elevado apuro gráfico, trata-se de uma sugestiva incursão pela gastronomia do mundo que fala português em torno das memórias dos sabores. 

Oferece ao leitor a oportunidade de viajar pelas rotas da pimenta, conhecer as revoluções à mesa advindas pela chegada da batata, do milho, dos feijões, do açúcar, do café e do chocolate. Depois o autor põe-nos a viajar pela lusofonia: o gindungo de Angola, a feijoada brasileira, a cachupa de Cabo Verde, a galinha à cafreal de Moçambique, o Calulu de São Tomé e Príncipe, a paleta exótica de sabores goeses, o cozinhar dentro de nós de bambus em Timor e, claro está a mancarra no prato na Guiné-Bissau. Vejamos, em síntese, o que David Lopes Ramos nos propõe dentro dos manjares guineenses. Começa por escrever o seguinte:

“Na Cozinha e Doçaria do Ultramar Português, da Agência-Geral do Ultramar (1969) o receituário da Guiné é o mais escasso de todos. Apenas 5 receitas: um caldo de peixe ou mefefede, com tainhas secas, arroz e condimentos, entre eles malagueta e piripiri; um caldo de mancarra, com galinha, mancarra, óleo de mancarra e outros condimentos; chabéu de galinha que, além da ave que coze com óleo de mancarra, cebola, água temperada com malagueta e sal, a que depois se junta o molho de chabéu, mais sumo de limão, solé (líquido ácido semelhante ao vinagre) e piripiri; bringe, um estufado de pato que é servido com arroz, camarões cozidos ou fritos e limpão (espécie de mexilhão), e bolinhas de mancarra, que é um doce, feito com o amendoim espagado até ficar em pasta, a que se junta açúcar pilé”.

Trata-se de uma visão redutora, é inconcebível não se mencionar, entre outros, pratos fabulosos como a canja de ostra, para mim um dos pratos mais fabulosos da culinária africana. A cachupa de milho é uma variante da cachupa cabo-verdiana e é muito apetitosa. Mas é verdade que os pratos mencionados na dita publicação de 1969 acentuam aquilo que nós conhecemos e que torna a gastronomia guineense inconfundível: os sabores ácidos, os picantes e a fina combinação de produtos naturais e de condimentos típicos. Da rusticidade e da escassez de recursos, os sabores guinéus dão respostas engenhosas mediante o uso de chabéu e o óleo de palma; havendo cerca de 30 etnias e uma cozinha crioula, pode usar-se banha de porco, cabra, carneiro, mariscos, substituir o arroz pelo milho preto, pôr mais ou menos milho bassil, fundo, inhame, batata-doce (a batata de consumo é conhecida na Guiné por batata inglesa).

As populações do interior, carentes de legumes, deitam mão ao que podem cultivar ou comprar a baixo custo: baguiche, candja, djagatu, que acompanham o arroz e mafé. Quem percorre o mercado de Bandim, o mais completo de toda a Guiné-Bissau, pode encontrar o apetitoso djorontche (camarão seco moído, ou mesmo o netetu (sementes de alfarroba secas e trituradas). As populações das zonas costeiras (caso dos bijagós, balantas, felupes e manjacos) têm um elevado consumo de frutos do mar e de peixe, apreciam imenso o caranguejo, as ostras, o combé, o lingron, o gandim ou karmussa. Quando regressei da Guiné, em Dezembro último, trouxe “escalada”, há quem lhe chame o bacalhau da Guiné, fede que se farta, vem embrulhado em vários sacos de plástico e dentro de uma caixa de cartão hermeticamente selada. Mas há mais cheiros intensos e outros paladares típicos como o kasseké, o djorontche, obtidos por métodos artesanais de conservação dos pescados e dos mariscos.

É um atentado ao palato ignorar os sabores guineenses, desde os camarões juvenis, passando pelas raízes, tubérculos, folhas e frutos silvestres que têm gostos admiráveis e que são complementos nutricionais que permitem que a população da Guiné, uma das mais pobres do mundo, consiga deter padrões alimentares surpreendentemente saudáveis. Convém não esquecer as carnes de caça que todos os militares recordam: a gazela, a cabra de mato, a farfana, o porco-espinho e o porco do mato. E o autor conclui: “Os guineenses, na sua alimentação, para celebrar e festejar momentos importantes da sua vida e da sua história, recorrem com engenho e arte à rica biodiversidade de que ainda dispõem, fruto de uma natureza farta e generosa que tem todo o interesse em preservar e transmitir como legado como as gerações futuras”. (*)


Ninte Kamachol, escultura de madeira e latão dos Nalus, peça do Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, reproduzida com a devida vénia


Homem bijagó, reproduzido do livro “Sabores da Lusofonia… com selos”, com a devida vénia
____________

Nota de CV:

7 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8057: Notas de leitura (226): João Teixeira Pinto, A Ocupação Militar da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

(*) O nosso camarada Hugo Moura Ferreira já aqui em tempos (, em 22 de Junho de 2006,)  apresentou algumas receitas de pratos tradicionais guineenses, justamente retiradas do livro Cozinha e doçaria do Ultramar Português (Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1969)... A saber:

(i) Caldo de Mancarra;
(ii) Chabéu de Galinha;
(iii) Bringe;
(iv) Bolinhas de Mancarra;
(v) Caldo de Peixe ou Mafefede

5 comentários:

Luís Graça disse...

1. Obrigado, Mário, por mais esta sugestão de leitura... Fico impressionado com o teu conhecimento da gastronomia guineense...

E só neste parágrafo verifico quão grande é a minha santa ignorância acerca dos "pitéus" da nossa querida Guiné... Cito o teu poste:

"As populações do interior, carentes de legumes, deitam mão ao que podem cultivar ou comprar a baixo custo: baguiche, candja, djagatu, que acompanham o arroz e mafé. Quem percorre o mercado de Bandim, o mais completo de toda a Guiné-Bissau, pode encontrar o apetitoso djorontche (camarão seco moído, ou mesmo o netetu (sementes de alfarroba secas e trituradas). As populações das zonas costeiras (caso dos bijagós, balantas, felupes e manjacos) têm um elevado consumo de frutos do mar e de peixe, apreciam imenso o caranguejo, as ostras, o combé, o lingron, o gandim ou karmussa. Quando regressei da Guiné, em Dezembro último, trouxe “escalada”, há quem lhe chame o bacalhau da Guiné, fede que se farta, vem embrulhado em vários sacos de plástico e dentro de uma caixa de cartão hermeticamente selada. Mas há mais cheiros intensos e outros paladares típicos como o kasseké, o djorontche, obtidos por métodos artesanais de conservação dos pescados e dos mariscos" (...)

2. E já que falas do Museu Nacional de Etnologia (que é dirigido pelo meu amigo e antropólogo Joaquim Pais de Brito), chama-me dizer-te quanto lamento ser tão pouco conhecido dos portugueses, em geral, e dos nossos camaradas, em particular... É um espaço fabuloso, que merece uma visita, ao domingo de manhã, que é de borla...

"Criado em 1965, o Museu Nacional de Etnologia acolhe, de acordo com o seu âmbito universalista, colecções de variados países. De entre elas destacam-se as que resultaram de sucessivas campanhas de recolha efectuadas em Portugal, contemplando a alfaia agrícola e demais instrumentos de trabalho e séries de objectos ligados à vida rural portuguesa. Do seu vasto acervo destacam-se ainda as colecções africanas, representativas de povos e culturas de Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Mali, Costa do Marfim, Gana, Nigéria e Camarões; e importantes colecções representativas dos Índios da Amazónia, Indonésia, Timor e Macau".

http://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/

Antº Rosinha disse...

A falta de adaptação à alimentação africana, tanto como os misseis strella, foi um dos pontos mais fracos do exército colonial em África.

Mas aí a culpa não vinha de Moscovo nem de Cuba...nem da coragem dos nossos militares.

Quanta fome e enjôo de "macarrão" quando um simples cozinheiro resolvia o problema.

Mas os básicos não iam a oficiais!

Anónimo disse...

Não é referido o "pitche-patche", uma "sopa espessa" de ostras, onde as ditas aparecem dentro de uma "massa forte", com legumes, arroz(?), milho esmagado(?), e ???, tudo muito bem condimentado, bem ao gosto africano.
Comi o "pitche-pathe" em Bolama durante e os dias de descanso depois de Gandembel.
Perguntei ao cozinheiro onde tinha aprendido a cozinhar o prato e a resposta foi: - Na Bissau.
- Onde? Resposta: Na casa di pobre.(E mais não quis dizer).

Mário:
Será a "canja de ostras" que é referida no texto? Se se pretende que seja, é demasiado espessa para ser chamada "canja".
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Caro Beja Santos,
Li o artigo e os comentários.
Como o meu folho é um bom cozinheiro e moro numa zona de boas ostras, pedia-te, se te for possível, para obteres uma receita dessa sopa de ostras, para o meu filho tentar reconstitui-la e verificarmos o resultado. Mesmo uma receita incompleta serve. Se conseguires marcar um almoço onde saibam fazer este prato, melhor ainda. Se formos acompanhados de apreciadores, excelente. Pensa nisso.
Um abraço,
Raul Albino.

Antº Rosinha disse...

Constou-me que a Dona Berta foi evacuada para Portugal.

Para conhecimento de antigos colon ou cooperantes ou militares tugas que foram hospedes da Pensão Central.

Votos de saúde para ela.