sexta-feira, 3 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8368: Notas de leitura (244): Guynea, de Arlinda Mártires (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2011:

Queridos amigos,
Desta vez a descoberta ocorreu num alfarrabista à entrada da Rua das Portas de Santo Antão, nos baixos do Palácio da Independência.
Ia para a biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, fazer umas leituras do antropólogo António Carreira.
É o que se chama, lido esta Guynea, uma agradada surpresa. E é de perguntar como é que é possível nenhum de nós saber que existia uma poetisa luso-guineense chamada Arlinda Mártires.
Um abraço do
Mário


Guynea, a poética do deslumbramento do quotidiano

Beja Santos

“Guynea”, de Arlinda Mártires, é um pequeno volume de poesia de um coração grande, muito grande, a transbordar deslumbramento pelas gentes e terras da Guiné.

Arlinda da Conceição dos Mártires Nunes foi Leitora na Escola Normal Superior Tchico Té, em Bissau, entre 1993 e 1998, teve participação activa no GREC - Grupo de Expressão Cultural e em Tcholona – Revista de Artes e Letras.

A poetisa homenageia o que há de mais singelo que o seu olhar afaga (olha até ao fim do horizonte), vive encantada com os valores e as particularidades do universo guinéu, sobre eles discursa alegremente, entusiasticamente. Não hesito em dizer que este punhado de poemas é um caso sério na linguística luso-guineense (“Guynea”, por Arlinda Mártires, UNEAS-União dos Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe,2004).

Comove-se a Arlinda Mártires com as acácias rubras, os odores agridoces dos cajueiros, canta hossanas ao ventinho rasteiro da estação seca, exalta Rubane, ilha de águas de gentes serenas. Dir-se-á que é uma poesia de simplicidade deliberada, pois contém-se o vocabulário, enxuga-se a métrica, adoça-se a lírica à altura do enfeitiçamento tropical. Vamos aos exemplos:


estação seca

Janeiro
sopra ventinho rasteiro
levanta a terra vermelha
entra na boca, na orelha,
entranha-se no pulmão.
De tudo faz sua cama
do chão até ao poilão
passa por casas e leitos
leva vírus e maleita
de uma vez se deita
depois do primeiro trovão.


estação das chuvas

Cai a chuva
em catadupa
lava matas e casas
(a outras leva)
Lava corpo, não a boca.
Escorrem rios
pelo telhado.
Pela estrada
lagoas de água vermelha,
morna, parada,
berço de coaxar de rãs,
cólera, malária,
morte.


É como se a poetisa também saboreasse a proximidade/intimidade nestes registos de aguarelas expressionistas e sonoridades em torno das estações. Mas os locais também a tocam. Veja-se


Cacheu

Em Cacheu
jaz o Império.
Mira ainda o rio
a Fortaleza
que as cabras guardam
sem pastor.
Trocaram o mar pela terra,
por onde foram deitados,
navegadores, vice-reis e
governadores.
Permanecem os canhões,
cofre de memória
e de aves marinhas,
contra os quais
só a ferrugem marcha.


Temos as pessoas, o contexto em que se movem, a profissão e até a condição feminina. O que fascina é a contenção, mão há rodriguinhos e o fraseado multi-étnico soa autêntico, translúcido, um ocidental que se delicia com as carícias do sol do Equador. Outros exemplos:


menino de criação

Meio-dia
na tabanca
sol vertical
palha e barro.
Deserto
o caminho arde rubro.
O silêncio mora
na sombra do poilão.
Correm nus no bantabá
os meninos de criação
mãos sujas de terra e de chabéu
pedem ao branco a caneta, o chapéu
e chove o riso e a alegria.
Por tão pouco se ganha o dia


bidera

Sentada está a bidera
sob a mangueira florida
está formosa e divertida.

Pão a espreitar na bacia
no chão de terra vermelha
brinco a luzir na orelha
gargalhar de melancia
corpo em pano d’alegria
vida a rir da própria vida
está formosa e divertida.

Crianças nuas de roda
outra na mama chupada
aiôôô… có-cóóó… risada
gengiva azul desde a boda
dentes de alvura toda:
pon ka na bai, amiga?
Está formosa e divertida.


Chamemos-lhes, à falta de melhor termo, de apontamentos líricos sobre o quotidiano, rendições sublimes à multiculturalidade. Sim, sublimes, na particular circunstância de corresponderem, na íntegra ao que o coração colhe e a lírica empresta música, tudo despojado na ocupação da palavra pela paisagem dos sentimentos cooperantes pelo gosto das gentes, em devoção pela natureza, pelo resgate do território. É de perguntar como é que se editam 500 exemplares de tantíssima beleza e originalidade numa linguagem do luso-guineense. E são mais dois poemas, em jeito de despedida:


costureiro

Toc-toc-toc
Toc-toc-toc
baloiça o pedal
basin, seda,
linho, legoss.
Toc-toc-toc
Toc-toc-toc
mastiga a agulha
boubou, folhos,
rendas, taille-bas.
Toc-toc-toc
Toc-toc-toc
cavalgam os dias
turquesa, esmeralda,
rosa
pretu nok


feito pedra

Ocorre-me aos lábios
um corpo ébano
flancos de potro selvagem
entre colinas de mármore.


Não se esqueçam, se houver alguém que esteja a preparar uma antologia de poesia luso-guineense que não cometa a indelicadeza (injustiça) de omitir esta “Guynea”.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P8353: Notas de leitura (243): Província da Guiné, 1972, publicado por Agência-Geral do Ultramar (Mário Beja Santos)

1 comentário:

arlinda martires disse...

Caro Beja Santos,

Sou Arlinda Mártires e deparei-me, por acaso, com as suas palavras sobre o meu "Guynea". O meu coração quase rebenta de comoção, gratidão, ternura... Sou alentejana e vivi 5 intensos anos na Guiné. Posso considerar-me luso-guineense por amor às gentes.
Um grande BEM HAJA! Tão contente por ter apreciado a minha escrita!
Arlinda