sábado, 4 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8372: Os nossos camaradas guineenses (33): O Zé Carlos regressou ao seu mundo, à sua tabanca, à sua morança... (Luís Graça)...




Lisboa, 2 de Junho de 2011 > A Gina, o António Marques e o Zé Carlos Suleimane Baldé... A última foto a contar do fim é um detalhe  da fachada do antigo Banco Nacional Ultramarino, criado em 1864 para ser o banco emissor dos territórios ultramarinos  durante mais de um século... Na foto, vê-se o antigo brasão de armas da Guiné... O edifício, na Rua Augusta, Lisboa, alberga hoje o MUDE - Museu da Moda e do Design...

Fotos: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados



1. O José Carlos Suleimane Baldé (ex-1º Cabo da CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1969/74) regressou ontem,  ao fim da noite, a Bissau, depois umas férias de 15 dias, em Portugal, que ele não conhecia e com o qual às vezes sonhava... 

Com 61 anos, o nosso camarada considera-se velho e cansado...  Trabalha no duro (os tempos são outros, mesmo para os orgulhosos fulas cuja filosofia de vida era, no passado, fazer a guerra e rezar, as duas únicas ocupações dignas de um homem)... Tem de trabalhar no duro para poder sustentar duas mulheres e uma numerosa prole. 

A realização deste sonho (conhecer Portugal) só foi possível graças à determinação de um casal (o Jaime Pereira, seu antigo comandante, no período de 1971/72,  e a Odete Cardoso) que lhe deram hospedagem e carinho. Mais: graças aos bons contactos que a Odete tem com o Ministério dos Negócios Estrangeiros (ela foi em tempo vice-presidente do ICP - Instituto da Cooperação Portuguesa, trabalhando actualmente no Tribunal de Contas), foi possível vencer as pequenas e grandes dificuldades não só burocráticas como logísticas e telecomunicacionais, que se entrepuseram na realização deste projecto...  

A Odete, que é só conheci há uns meses, é uma força da natureza.  Também o Jaime (que é gestor numa empresa privada) deu parte do seu precioso tempo para tornar inesquecível esta estadia do Zé Carlos em Portugal... Mas não posso deixar de mencionar outros apoios, de resto já aqui referidos como o casal Sobral (José e Ermelinda, ambos médicos, de Coimbra), o J. L. Vacas de Carvalho, o Victor Alves (ex-Fur Mil SAM da CCAÇ 12, também da mesma época, 1971/72) e o casal Marques (Gina e António). Sem esquecer os camaradas, anónimos, da CCAÇ 12, que também se quotizaram para pagar a viagem de ida e volta. É um gesto bonito que merece ficar aqui registado.

Estive anteontem, 5ª feira com o Zé Carlos e o casal Marques. Foram visitar o estádio do Benfica (o Zé Carlos fez questão de ir... à "catedral") e seguiram depois para Peniche e Óbidos (O Zé Carlos é um apaixonado pela história de Portugal, e aliás um dos livros que lhe ofereci foi a crónica do Gomes Eanes de Azurara, escrita em 1453, sobre o descobrimento e a conquista da Guiné, para além de um selecção de postes do nosso blogue e ainda uma cópia da história da CCAÇ 12).

Num outro dia, o Marques tinha-o levado a Fátima e às grupas de Mira D'Aire. Julgo que também foi ao Oceanário, aos Jerónimos e ao CCB com o J. L. Vacas de Carvalho.  Passeou igualmente com o Jaime e a Odete. Visitou familiares e patrícios (que se costumam juntar todos os dias no Largo de São Domingos). Tive pena de não poder ter estado mais tempo com o Zé Carlos e de não poder ter partilhado, com ele, algumas destas emoções.

Já não o via desde Coimbra, em 21 de Maio (*)... Desta vez, achei-o um pouco abatido, ou talvez um pouco apreensivo, na véspera de partir.  Não se mostrou tão expansivo. Acredito que isso possa ter sido provocado pela ansiedade da partida, e pela convicção de que na sua terra tem muitas poucas perspectivas de futuro. Em Portugal, os seus papéis da tropa (portuguesa) de nada lhe valeram. O Zé Carlos nunca fez descontos para a Segurança Social (incluindo subsistemas como a Caixa Geral de Aposentações). Além disso, não é cidadão português (e esse argumento é decisivo)... Julgo que esta é a maior decepção que ele leva da sua viagem a Portugal... Os cinco anos e duzentos e tal dias que esteve ao serviço do exército português  não lhe deram quaisquer benefícios... direitos... Nada! ...Bem, pelo contrário, poderia ter sido sumariamente executado nos tempos de brasa... (Valeram-lhe os "anciãos" de Bambadinca que, em pleno tribunal popular, o defenderam como um bom homem e um bom guineense)...

Dentro em breve ele vai casar a sua filha com o filho de um antigo camarada e amigo da 2ª secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, o Sori Baldé... Ele pertence a um outro mundo, para o qual volta... Ainda pensei em convidá-lo a integrar o nosso blogue... Mas percebi a tempo quão atrozmente ridícula era a minha proposta... Em Amedalai ele não tem nada, para além de um telemóvel e uns óculos que lhe deu a Odete... Para além da sua morança e de alguma terra para lavrar... Antigo professor ou monito escolar, não tem computador nem email nem internet nem sabe o que é isso... Não tem nada e tem medo da palavra "política"... Um blogue, para quê ? O que é isso ?... Que resposta lhe poderia eu dar ? Não saberia dar-lhe nenhuma... 

Confesso que fiquei deprimido por sentir que há homens que podem ter medo do medo... E que podem ainda, hoje, quarenta anos depois do fim da guerra colonial, sentir medo... E eu tenho medo de escrever mais e complicar a vida de antigos camaradas meus, que foram meus camaradas de armas... 

Até sempre, camarada Zé Carlos! Os amigos e camaradas da Guiné, reunidos em Monte Real, por ocasião do VI Encontro Nacional da Tabanca Grande, saudam-te e encorajam-te! À distância, estamos com um olho em ti, velamos por ti!...

PS - Ainda se pode ter medo... E mais do que isso, medo do medo... Na Guiné-Bissau, em muitas partes do mundo... Lembrei-me do Alexandre O'Neil e do seu Poema pouco original do medo... 
  

O medo vai ter tudo

pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no tecto
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos 
heróis
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo 
tudo
(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos
Sim
a ratos

Alexandre O'Neill - Poesias Completas (1951/1983)

 (Reproduzido daqui, com a devida vénia)
_______________

Nota do editor:



2 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo e irmão Luis Graça,

"Ainda se pode ter medo... E mais do que isso, medo do medo... Na Guiné-Bissau, em muitas partes do mundo..."

Esta tua frase é profética e retrata exactamente a realidade africana ao sul do sahara nos ultimos 100 anos que abrange partes dos sêc. XIX e XX, com particular destaque nos países que foram obrigados ou quiseram pegar em armas para lutar como foi o caso Guineense.

Durante a época colonial, com o Gen.Spinola, tivemos uma certa liberdade de expressão social e cultural mas sem independencia politica.

Com o PAIGC tivemos a independencia tão ansiada mas ficamos privados de toda a liberdade.

O Zé carlos é um sobrevivente milagroso de um periodo atroz de perseguição fisica e verbal cujos resquicios ainda acompanham a nossa vivencia. Só quem nao viu e assistiu é que não sabe a capacidade que este partido estado tinha em fazer mal aos outros e que acabou por voltar contra si mesmo.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Houve injustiças que se remediaram com outras injustiças.

Mas houve imensos Suleimanes que deviam ser portugueses e isso foi~lhe COBARDEMENTE vedado, negado ou escondido, e houve IN´s, que subrepticiamente usufruiram de oportunidades que uma ínvia diplomacia lusa os transformou em "dignos " compatriotas tugas.

Mas nós somos o que somos e não há volta a dar.

Cumprimentos