sábado, 11 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8401: Ser solidário (108): Na Guiné-Bissau, fora do umbigo do mundo (Joana Teixeira)

1. Mensagem, do dia 2 de Junho de 2011, de Joana Teixeira, filha do nosso camarada José Teixeira, que foi professora em S. Tomé e Príncipe durante quatro anos, e que recentemente visitou a Guiné-Bissau com o seu pai e o seu irmão Tiago Teixeira, médico, tanto quanto sabemos, clínico no Hospital Pedro Hispano em Matosinhos:

Exmos Srs.
Sou filha do Zé Teixeira.

Tenho vivido de perto o trabalho que ele tem desenvolvido a favor das populações da Guiné-Bissau e na viagem que fez recentemente à Guiné, eu e meu irmão quisemos acompanhá-lo. Na sequência desta inesquecível viagem escrevi um pequeno texto que envio na esperança de possa ser publicado. É uma opinião pessoal de alguém que há uns anos atrás deixou “o umbigo do mundo“ e foi voluntariamente fazer um trabalho de solidariedade em S. Tomé.

Junto algumas fotografias para colocaram as entenderem

Os meus agradecimentos
Joana Teixeira


O meu pai - homem feliz

Eu e o meu mano

FORA DO UMBIGO DO MUNDO

Joana Teixeira

Não sou caloira em África, posso afirmar, pois já lá vivi quatro fantásticos anos como voluntária e professora. O meu poiso foi um dos seus mais pequenos países, mas nem por isso menos representativo. As saudades desses tempos nas belas ilhas verdes de S. Tomé e Príncipe são mais que muitas, avassaladoras. Posso afirmar também que conheço bem esse minúsculo país e as suas gentes, aromas, sabores e ritmos. Ser turista, numa breve estadia, passeando por onde nos querem levar, esconde quase sempre a realidade, muitas vezes cruel, do país que visitamos. Viver lá, origina um conhecimento completamente diferente, terão de concordar.

Por isso, desde que regressei, compreendo melhor a realidade africana, lá e cá, e também os relatos de outros que também por lá passaram. Como por exemplo, do meu pai, antigo combatente na Guiné, cujas memórias recheadas de ternura pelos seus habitantes e pelos momentos vividos, ainda que num contexto horrível, povoaram a minha infância e me despertaram os sentidos para esse continente imenso, tão diferente, no melhor e no pior dos sentidos. Até que eu própria lá fui parar…

Antes da estadia na ilha do café e do cacau, veio-me parar às mãos um curioso livro com relatos de um jornalista polaco que por África viajara e fizera inúmeras reportagens. “Ébano” de Ryszard Kapuscinski, falecido em 2007. De forma geral, fala de uma África que não conheço: das independências, dos regimes militaristas, dos golpes de estado sucessivos, mas sobretudo, fala das suas gentes, costumes e histórias de vida, numa estranha forma de jornalismo para época (anos 50 a 70) e bastante admirada hoje, pois RK fez algo de inédito: evitou os hotéis, apanhou as doenças, comeu as comidas, viajou pelas estradas, enfim, misturou-se, tanto quanto o consegue fazer um pálido europeu na paisagem morena, como ele mesmo ironiza.

E porque refiro aqui o livro? Porque quis fazer como o autor fez, quando lá vivi, excepto a parte das doenças e porque o reli, avidamente, depois do meu regresso à pátria e a minha leitura foi outra, completamente distinta, confirmando o que este autor da minha preferência escreveu há tantos anos “é um continente demasiado grande para poder ser descrito. É um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico". Não há uma África, impossível generalizar.

Confirmou também, e é com tristeza que o escrevo, que a África de RK pouco ou nada difere da África de hoje, em termos de qualidade de vida e oportunidades de futuro para os seus habitantes, mas isso fica para outros escritos.

Regresso à minha linha de pensamento…

Esta re-leitura de “Ébano” confirmou uma vaga suspeita minha: que as descrições e interpretações que fazemos de África, feitas daqui de cima, do conforto da Europa são redundantes e profundamente erradas (assim como de qualquer outro continente, atrevo-me a dizer). Porque nos consideramos o umbigo do mundo, tudo o resto é marginal, estranho, esquisito, exótico, “incivilizado”… e porque estamos cansados deste nosso velho continente, África virou moda.

Aos olhos de um europeu, África resume-se: ao anonimato das multidões esfomeadas da Etiópia, ou dos refugiados do Sudão; à crueldade dos confrontos Ruanda-Burundi; às infinitas ajudas humanitárias; à repetição sistemática de golpes de estado; à invasão sucessiva de emigrantes para norte; à corrupção escandalosa dos governantes; à proliferação de ONGs, nem sempre honestas. E mais recentemente, numa perspectiva turística: ao exotismo da paisagem e da vida selvagem; aos ritmos, aromas e sabores únicos…

Mas falta algo mais, algo que descobri em S. Tomé e confirmei agora na Guiné. Algo que as notícias não referem, tão focadas que estão nas calamidades humanitárias e nas intrigas palacianas. Algo que não se descobre como turista, claro!

Em África, cada dia é uma luta, sem saber o amanhã. Uma luta pela alimentação, pela água, pelo manter-se vivo. Tudo é precário, volátil, instável, inseguro e, contudo, a alegria é imensa, contagiante, um verdadeiro hino à vida. Cada dia vale por si mesmo. Aquelas gentes têm algo especial que não se encontra na Europa. Um gosto pela vida, pelo estar vivo, pelo conviver, pelo estar com outros… como alguém disse: por aquelas paragens, ninguém sofre de depressões ou esgotamentos nem solidão, nem mais nem menos que nossas as doenças “in”.

E quando regressamos ao nosso quotidiano (se o nosso coração não é de pedra e os nossos olhos não estiveram fechados), África veio connosco, obrigando-nos a viver cada dia com outra motivação. Essa é a principal aprendizagem que fiz na Guiné, nessa semana fabulosa: cada dia merece ser vivido e aproveitado ao máximo, porque o amanhã é sempre incerto. Ser feliz hoje, com o que tenho agora e com quem está perto de mim e não num futuro qualquer. Na Europa fazemos tantos planos para o futuro que nos esquecemos de viver o presente.

Voltarei a África?!
Não é um plano, é uma certeza… “ca su mai! Ca su mai cap”!!! Como saúdam os Felupes.
Joana Teixeira


 Crianças da Guiné

 O Tiago e as crianças

 Em convívio na Tabanca de Faro Sadjuma

Crianças da Tabanca de Amindara

 Amindara. Fomos recebidos assim

Foto para a família com o velho Régulo de Amindara

Imberem - A surpresa nocturna, ou a festa que nos reservaram

Imberem - Um encontro com os sapadores que andam a levantar as minas que ficaram no terreno em consequência da guerra colonial

Crianças de Imberem

Com o meu pai junto à enfermaria do quartel de Empada, onde ele prestou serviço.

Em Elalab em conversa com a população

A generosidade do povo de Elalab

Encontro com as populações de Alalab.

Mulheres de Ellalab


2. Comentário de CV:

Convidada a fazer parte formalmente da nossa Tabanca Grande, Joana Teixeira mandou-nos a seguinte mensagem:

Caro Sr Carlos Vinhal
Aqui vai a minha respostinha, já tardia!
Pode com certeza colocar o meu texto no vosso blogue.
Quanto à tertúlia, deixo-a para quem sentiu e continua a sentir a Guiné com esse sentimento único de quem lá deixou o coração, no melhor dos sentidos!

(A "minha Guiné" chama-se S. Tomé e Príncipe, onde fui voluntária e muito muito feliz também.)

Aproveito para vos felicitar pelo excelente trabalho de divulgação desses tempos da Guerra Colonial, que todos, sobretudo os que nasceram depois, devemos conhecer, assim como pelo efeito de "Terapia" decorrente em muitos dos ex-combatentes, a começar pelo meu PAI, a quem vejo radiante com as novas/velhas amizades e com todos os projectos/actividades consequentes da renovada ligação à sua saudosa Guiné.

Com amizade
Joana Teixeira

Face a esta resposta só nos resta dizer à nossa amiga Joana que tem na Tabanca uma porta sempre aberta para quando se quiser juntar a nós.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8394: Ser solidário (107): A população de Elalab tem razões para se sentir feliz (José Teixeira)

8 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Excelente reportagem.
Excelente, esclarecedor e sentido artigo/depoimento.
É reconfortante saber que não estamos sós no 'sentir' as emoções e no entendimento daquelas realidades que, como a Joana diz, não podem (não devem) tentar ser entendidas à luz dos nossos valores e critérios.
E depois, confirma-se que "África lança feitiço". Basta ler o que a Joana escreve e descreve.

Igualmente se compreende a sua 'ligação primeira a S. Tomé' e daí a 'reserva' colocada em se 'associar' à nossa "Tabanca Grande". Embora uma coisa não elimine a outra, é claro que o que o Carlos V indica é a solução para o facto de a Joana preferir 'ficar à porta' da Tabanca sem portas.

Muitos parabéns pelo artigo, pelos esclarecimentos e pelas emoções.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Joana

Gostei muito, gostei muito.
África...

Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Estimada Joana Teixeira,

Obrigado pelo maravilhoso texto produzido, de certeza com a experiência do seu amor e o do seu pai por quela terra vermelha,de negras bolanhas e matas verdejantes da Guiné.

África!

África é isso mesmo que a Joana descreveu.
Por tudo isso a facilidade como nos apaixonamos por ela.

É curioso, e não tem explicação como homens que fizeram a guerra naquela terra, a amam tanto?

Tem de haver um estudo antropológico para tudo defenir.

Ainda antes de partir para essa fase terrível da minha existência (guerra). Tive a oportunidade de ler um livro maravilhoso sobre África de FRED BLANCHOD, o original da obra intitula-se "AU PARADIS DES GRANDS FAUVES" em português é apresentado como "NO-PARAISO-DAS-GRANDES-FERAS".
Tudo isto porque a primeira página do livro tem duas fotografias:
Uma de uma menina branca e outra de um menino negro os dois com o indicador na boca. E Blanchod escreve para a menina branca sua filha a quem ele trata por "Migalhita de amor" a seguinte fraze:

(Como vês, os dedos dos pretitos servem para fazer o mesmo que os teus)

Obrigado Joana!

Continui o seu contacto maravilhoso com estes já "COTAS" amantes da Guiné.

Um sentido abraço,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Olá Joana Teixeira, saudações amigas da família Estorninho.

Seguiste as peugadas do teu pai, lugares por eu também andei e logo que possível lá voltarei.

Pelo que nos mostras e descreves, observa-se a realidade da sempre querida Guiné.

Como Técnico de Saúde Ambiental sugeria, que a enfermaria fosse considerada pela "AD" se possível como uma prioridade de recuperação e com a colaboração dos amigos.

Depois dar um mínimo de condições para o voluntariado para lhe ser dada a devida utilidade, a bem das populações locais no tratamento e ensinando-lhes o porquês das coisas.

As tuas descrições tiveram um bom sentido de oportunidade, intercalando assuntos colaterais e que todos são valorizados.

Com um Bem Haja
Arménio Estorninho

manuel amaro disse...

Joana,

Excelente trabalho.
Parabéns.
O teu pai, o Zé Teixeira, foi meu camarada em Coimbra, no verão de 1967.
Depois, fizemos a comissão na Guiné. Uma parte do percurso foi comum. Buba, Nhala e Quebo.
E eu, além da Saúde, também fiz dois anos lectivos, como professor.
Não voltei.
Provavelmente, não voltarei à Guiné.
Mas compreendo e admiro o vosso trabalho.
Continuem.
Felicidades.

Manuel Amaro

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... citando:
– «Em África, cada dia é uma luta, sem saber o amanhã. Uma luta pela alimentação, pela água, pelo manter-se vivo. Tudo é precário, volátil, instável, inseguro.»

E em Portugal, 2011, idem, ibidem...

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Carlos Vinhal disse...

Pede-se à pessoa que fez o último comentário, o favor de o repetir, identificando-se devidamente.
Carlos Vinhal