segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
As memórias do JERO lêem-se com sofreguidão, são sugestivas, ternas e guardam todo o revestimento daquela solidariedade que conhecemos.
A literatura memorial é um dos mais sérios contributos que se pode proporcionar à historiografia. Esta confronta-se por vezes com relatórios miríficos e múltiplas opiniões sem contraditório. A história de uma Companhia como JERO escreveu, em que se cruzam os testemunhos e onde forçosamente se calam episódios menos felizes, pode ser encarada como um documento fidedigno para a organização desse interminável puzzle que é a captação do maior número possível de vozes que cobrem de sentido a evolução da guerra, aquela que vivemos.

Um abraço do
Mário


O inesquecível capitão de Binta, Alípio Tomé Pinto

Beja Santos

O livro chama-se “Golpes de Mão’s, memórias de guerra”, o seu autor é José Eduardo Reis de Oliveira* e a edição é de autor. Por acaso, tudo está repertoriado, o Tenente-General Tomé Pinto é conhecido pelo “capitão do quadrado”, epíteto que ganhou na Guiné, José Eduardo Reis de Oliveira tem sido uma presença constante do blogue (é o escritor JERO) e este seu livro de memórias tem justificadamente merecido uma troca de comunicação saudosa na nossa sala de conversa.

A leitura foi-me facilitada pelo Belmiro Tavares, também nosso confrade, fomos, na companhia do Mário Fitas, ao programa do Manuel Luís Goucha falar sobre alcunhas, no parlatório que precedeu a entrevista falou-se de Binta e da CCAÇ 675, mordido de curiosidade, atirei-me ao relato de JERO. Foi plenamente compensado. Vale a pena, se me permitem a vaidade, desfiar um punhado de reflexões sobre a dimensão desta literatura memorial.

Primeiro, o imperativo de nela se respirar sinceridade. Quando um dia houver condições para se colocarem todas estas peças da literatura memorial num pano gigantesco que permita um olhar historiográfico, o investigador que se afoite a entender a evolução da guerra, tem aqui alguma chave e muita fechadura. Atenda-se a esta CCAÇ 675 desembarca em Junho de 1964 em Bissau, vão todos a bordo do navio “Alexandre Silva” até Binta. Trata-se de uma Companhia independente a quem é dada uma quadrícula de 400Km2 entre o rio Cacheu e até à fronteira com o rio Senegal. Fica na dependência do BCAV 490, sediado em Farim, comandado por Fernando Cavaleiro. Tomé Pinto é um oficial heterodoxo: não gosta das picadas, acredita nas virtualidades da deslocação em quadrado, mais do que dar ordens, acompanha todos os efectivos em todas as deslocações. E ficamos a saber que à volta de Binta, em meados de 1964, os guerrilheiros se deslocam com um relativo à-vontade, além de não serem poucos percebe-se que não muito longe dali passa um dos corredores que leva até ao santuário mítico do Morés, e também não longe dali está a mata de Sambuiá, que já mete respeito. A primeira operação é a Lenquetó, onde não há memória de terem ido tropas portuguesas. Importa esclarecer que esta região de Lenquetó dista 12 quilómetros de Binta. A Operação é um sucesso: vários guerrilheiros abatidos, a tabanca reduzida a cinzas, capturou-se população (cerca de 40 pessoas), dá-se resposta segura à reacção dos guerrilheiros, evacuaram-se alguns feridos, a Companhia saiu moralizada. À volta de Binta as vias de comunicação estão paralisadas, o inimigo espalhou abatis em grandes quantidades e em trechos vitais, há que limpar as estradas, garantir a confiança das populações, estas andam foragidas, ou aderiram ao PAIGC ou correram espavoridas para o Senegal. É interessante perceber como as populações controladas pelo PAIGC circulam tão perto de Binta. JERO escreve: “O Pelotão encarregado de levantar as abatis fazia o seu trabalho, enquanto outro Pelotão montava segurança. Foram precisas sete horas para percorrer os 12 quilómetros que nos separavam de Cufeu. Quando atravessámos as pontes da bolanha foi vista à distância um pequeno grupo inimigo. Foi de pronto perseguido. Pôs-se em fuga respondendo ao nosso fogo apenas com tiros de pistolas isolados. À frente do Ujeque, e de novo a grande distância, foi visto um outro grupo, que deu um tiro de pistola e fugiu. Já ao anoitecer, depois de 11 horas de esforços inauditos, chegámos a Guidage, levantando 30 abatis”.

Segundo, este “capitão do quadrado” tem a exacta noção que primeiro impõe-se militarmente e depois se capta a população. Depois de Lenquetó, segue-se um golpe de mão a Cansenha, o percurso é áspero, entre selva e bolanha, pontes danificadas, cerca-se a posição, os guerrilheiros dão resistência, o guia Pathé é abatido, o “capitão do quadrado” anima os seus homens. No regresso, esta força altamente mobilizada ainda embosca um grupo rebelde e apreende armamento. Importa reter que estamos perante uma força mobilizada por um oficial ímpar e que o inimigo revela a surpresa da inquietação, afinal os tugas não se confinam aos quartéis. Não muito tempo depois, num patrulhamento a Santancoto, o “capitão do quadrado” é ferido em combate e evacuado. JERO escreve no seu diário que o capitão continuava a dar ordens, a todos serenava, havia muitas lágrimas nos olhos. Vem um substituto, o alferes Foitinho e continua a viver-se um período operacional muito rijo, em finais de Agosto, já com a presença do comandante de Companhia, a 675 vai até ao Oio. A população mudara de atitude, já funciona a escola, resolveram-se os problemas básicos do abastecimento da população, os refugiados do Senegal aceitaram regressar para novos aldeamentos. Binta tem hortas, cria-se saneamento básico, o alferes médico não tem mãos a medir.

Terceiro, o relato de JERO deixa transparecer a força dos sentimentos humanos, na sua plenitude: a 675 arranca quase em estado de fúria numa Binta rodeada de escombros e tabancas abandonadas, até apetece perguntar o que fez a tropa anteriormente (ou não fez); o seu Comandante é a marca de água, combate, moraliza e pacifica; inevitavelmente, nem tudo são rosas, aquele inimigo ainda não possui superioridade em armamento mas aos poucos vai lançando minas, assim a 675 terá o seu dia trágico; um golpe de mão a Sambuiá foi importante mas também trágico já que nesse dia um Pelotão de Morteiros que vinha colaborar na Operação perdeu 8 homens num acidente no rio Cacheu; a força está coesa mas começa a disseminar-se, tem que enviar um Pelotão para Guidage, depois vem a saturação, o “capitão do quadrado” parte para tirar o curso do Estado-maior, as chatices não param, o pessoal não pára de rabujar, as relações com o novo Batalhão não foram as melhores. Mas o balanço, na hora da partida, é positivo, o relacionamento com a população tornou-se muito bom. O restante material abarca encontros e convívios, depoimentos, material fotográfico muito sugestivo.

JERO escreveu um diário e estou ansioso por lê-lo, são raros os diários que acompanham uma comissão, do princípio ao fim. E quanto a este “Golpes de Mão’s”, a obra excede a história de uma Companhia, a sua leitura ilumina francamente aquele norte da Guiné que se dizia estar pacificado, por esta altura. Põe em questão o equilíbrio entre fazer a guerra e garantir às populações bem-estar, conforto, esperança, naquele pandemónio de tudo ser imprevisto e a brutalidade de nunca ter limites. Insisto que esta literatura memorial vai pesar na investigação histórica. O que neste caso se escreve é, acima de tudo, a homenagem de militares a um devotado capitão. Literatura onde se omitem episódios melindrosos mas onde a combatividade e a ligação às populações merece a atenção pela singularidade dos resultados.

E uma última reflexão, estas memórias de JERO são de 2009 e abonam que até estar vivo o último combatente ainda há muito a dizer sobre a guerra da Guiné.
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Notas de CV:

(*)José Eduardo Oliveira (JERO) foi Fur Mil Enfermeiro na CCAÇ 675 que esteve em Binta nos anos de 1964 a 1966

Vd. último poste da série de 23 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8812: Notas de leitura (276): Ultrajes na Guerra Colonial, de Leonel Olhero (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Manuel Reis disse...

Amigo Mário:

Mais um belo trabalho de recensão e divulgação de um livro de um camarada nosso,amigo, e que faz parte da nossa enorme família que é o Blog.
Desconhecia a existência do livro. Parabéns ao JERO, cujo livro pretendo adquirir já no próximo dia 28, data do nosso convívio, caso seja possível.
Um abraço para o Mário e para o JERO.

Anónimo disse...

Li o livro e gostei muito. Já dei os parabéns ao ZERO, mas nunca é demais repeti-los.
Parabéns por me ter proporcionado uma boa leitura sobre a Guiné.
Abraço
Filomena

Manuel Joaquim disse...

Parabéns ao Beja Santos por esta recensão.
GOLPES DE MÃO's é um belo livro de memórias de guerra. Eu, que já o li e reli, aconselho vivamente a sua leitura.

Parabéns ao Zé Eduardo pela qualidade desta sua obra. Tive o grande prazer de conhecer o JERO em outubro de 1965 quando,desde Bissau e rio Cacheu acima, fui abastecer o "resort" de Binta da CCaç. 675 e onde fui muito bem recebido.

Abraço aos dois

antonio graça de abreu disse...

Nem todas as recensões do Mário Beja Santos são más. O Mário, tal como eu, também tem qualidades.
A propósito de diários de guerra, para quando uma recensão ao meu Diário da Guiné, de 2007? Será porque existem mais dois Diários da Guiné, exactamente o mesmo título, coisa que em literatura se chama plágio, da autoria do Mário Beja Santos, de 2008 e 2009?
Ou simplesmente porque o Mário tem todo o direito, e razão, para não gostar de mim?

Parabéns e um abraço forte ao JERO que espero dar ao vivo, amanhã em Monte Real.

António Graça de Abreu