segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9039: Notas de leitura (302): Terra Ardente - Narrativas da Guiné, de Norberto Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Que inesperada surpresa! Que reportagem sem igual, Norberto Lopes [1900-1989] legou à literatura de dois povos um documento de elevado cunho jornalístico, prova e comprova que o jornalismo pode coexistir com a melhor literatura, ambas têm a ganhar no consórcio. Norberto Lopes regressa à Guiné para participar nas comemorações do V centenário do seu descobrimento e deixou-nos um documento que justifica a sua reedição ou, pelo menos, a inclusão de muitas das suas páginas numa antologia de grandes textos sobre a Guiné.
Um abraço do Mário


Terra ardente, narrativas da Guiné:
Uma notabilíssima reportagem de Norberto Lopes, em 1947

Beja Santos

Norberto Lopes é um dos nomes mais consagrados do jornalismo português do século XX. Repórter, escritor de literatura infanto-juvenil, biógrafo de Teixeira Gomes, visitou a Guiné, como jornalista por ocasião das celebrações do 5.º centenário do seu descobrimento. Do que viu e sentiu publicou uma série de artigos e depois enfeixou-os sob o título de Terra Ardente. É uma prosa afogueada, sem fazer tagatés aos poderes do dia mas sem esconder a profunda admiração pelo trabalho do seu amigo Comandante Sarmento Rodrigues.

Começa por dizer no arranque da obra:

“A Guiné ficou a ter para mim a sedução, o encanto, a indizível saudade de um primeiro amor”.

Inicia a sua viagem a partir da Gâmbia, atravessa o Casamansa e logo anota:

“Esta floresta tropical de Casamansa, como a da Guiné, é o paraíso dos macacos. Andam em bandos numerosos e cobrem às vezes a estrada numa grande extensão. Quando o automóvel se aproxima, desaparecem com extrema ligeireza, internando-se no mato ou dependurando-se dos galhos das árvores, em atitudes de irreverência e em posições que desafiam todas as leis do equilíbrio. Mangussos compridos e espalmados e ratos de palmeira cinzentos que são aqui conhecidos por saninhos, atravessam rapidamente a estrada e perdem-se na espessura da floresta”.

Ao parar em Ziguinchor não deixa de nos informar:

“Ziguinchor guarda ainda hoje muitas tradições portuguesas, entre as quais uma paróquia e numerosas famílias que descendem de colonos lusitanos. Os nativos mais importantes chamam-se Alvarengas, Gomes, Barretos, Vieiras, Fonsecas, etc.”.

Convém recordar que Norberto Lopes tinha da Guiné um termo de comparação, visitara-a cerca de 20 anos antes. Agora, mostra o seu entusiasmo:

Bissau progride a olhos vistos. Rasgaram-se largas avenidas, paralelas ao eixo central formado pela Avenida da República. Onde ainda há pouco era matagal e descampado vê-se hoje um belo e vasto largo ajardinado, a Praça do Império, ao fundo da qual se ergue o futuro Palácio do Governo (…) Na Avenida da República progride a construção da nova Igreja; inaugurou-se o abastecimento de água à cidade; inaugurou-se um bairro indígena de alvenaria – que muitos europeus desejariam habitar; prosseguem activamente as obras do edifício destinado a museu, biblioteca e arquivo histórico (…) A cidade começa a ter fisionomia europeia. Lojas modernas exibem nos seus escaparates artigos de luxo, produtos de beleza, as últimas novidades da Europa”.

Há momentos em que o jornalista sem contenção mostra-se lavrante da prosa, aprimora o que em princípio é o espartilho do espaço da reportagem:

“Apagam-se as fogueiras que incendeiam a noite, onde o indígena, acocorado, se preserva do frio e se entrega ao doce prazer de conversar. Cessam os ruídos nocturnos, o canto estrídulo dos galos, o piar agudo dos morcegos, as casquinadas irónicas da hiena, a melopeia lamentosa dos sapos. E outros gritos cortam a selva, à medida que o sol tinge de púrpura o horizonte e a cacimba da noite cobre de frescura o arvoredo. Brilham as laranjas nas árvores que bordam as ruas, como pomos de oiro. Na tela surpreendente da paisagem africana, os vários tons de verde começam a definir-se na mancha geral da floresta. Acorda a passarada. Ruflam asas ligeiras. Íbis de alvura imaculada poisam nas lalas e ali se conservam tempos esquecidos, apoiadas numa só pata”.

E mostra-se igualmente surpreendido com novos hábitos de consumo, as hortaliças voltaram a estar na moda:

“Próximo de Antula, ergue-se a pitoresca tabanca da Polícia, com a sua granja, onde se dão maravilhosamente todos os produtos da Europa… têm-se plantado hortas que fornecem abundante e saborosa hortaliça para os colonos. Finda a estação das chuvas, prepara-se o terreno para as culturas. Plantam-se alfaces, couves, espinafres, rabanetes, cenouras e beringela; semeiam-se ervilhas, pepinos, feijões, tomates, pimentos e melancias… as hortas da Guiné têm um aspecto de frescura que encanta”.

Mostra-se interessado por tudo, pelo carro de bois que ao tempo teve um grande acolhimento, pelos burros, pelo saneamento da cidade, pela expansão da cultura de arroz e desabafa:

“É incontestável que a Guiné está no limiar de uma era nova. Quem tenha percorrido, como eu, o interior da colónia e admirado alguns dos aspectos mais salientes do progresso realizado nos últimos tempos, não pode deixar de reconhecer que está a escrever na Guiné uma página nova e brilhante em matéria de administração colonial”.

Mas há momentos em que não esconde a tristeza, deambula melancólico por Bolama que já definha:

“Em frente da toalha azul e transparente da enseada, como Bruges debruçada sobre os seus canais silenciosos, Bolama tem o ar triste de uma capital abandonada. A transferência da capital para Bissau feriu-a de morte”.

Norberto Lopes, pelo que temos vindo aqui a citar, compraz-se com a narrativa sensorial, momentos há em que todos os sentidos perpassam a sua escrita, vejamos o que ele regista de Bafatá:

“À noite acende-se a luz eléctrica. Já corre a água nos marcos fontenários. Trilam ralos. Coaxam sapos. Chiam morcegos. Silvos agudos anunciam a proximidade do mato, porque, em qualquer povoação da Guiné em que se estejam, a selva nunca está distante e faz sempre valer os seus direitos milenários”.

A sua viajem aproxima-se do fim, vai visitar a exposição de Bissau que se realizou no Palácio do Governo, em vias de acabamento, com várias secções e dois pavilhões, percorre maravilhado as diferentes salas com testemunhos de acção civilizadora portuguesa. E não esconde a relação de conivência afectiva que estabeleceu com a Guiné, passados cerca de 20 anos que a conheceu:

“Entretanto, eu envelheci; mas ela guarda a mesma frescura na pele bronzeada e o mesmo brilho nos olhos lânguidos e profundos. A mim, nasceram-me cabelos brancos; mas ela conserva a mesma cabeleira verde de ondina que o vento, a maresia e o sol ardente gostam de beijar – e no espelho das suas águas fecundantes tratadas pelo colar de esmeralda do mangal, os marinheiros ouvem ainda, pelas noites lendas e cálidas dos trópicos, o chamamento aliciante das sereias, que cria na sua imaginação incandescida a atracção misteriosa da selva”.

Sinto muito orgulho em trazer ao blogue esta gema literária, pertença imorredoira da cultura luso-guineense.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9024: Notas de leitura (301): Reportagens de propaganda sobre a Guiné no tempo de Marcello Caetano (Mário Beja Santos)

Sem comentários: