segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9232: O meu Natal no mato (36): Conversas com um homem de Deus (Artur Augusto Silva, Quebo, 1962)


Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos. (Bissau, 2006; edição de autor).



1. Há seis anos atrás, em finais de 2005, o Pepito (nickname do Eng Agr Carlos Schwarz da Silva, que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento, hoje com 20 anos de existência) entrou  para a nossa "tertúlia" (agora conhecida como "Tabanca Grande", a comunidade virtual dos "camaradas e amigos da Guiné"). Vim a conhecê-lo pessoalmente em Lisboa,  em fevereiro de 2006. Mas antes disso, em meados de dezembro de 2005, ele tivera a gentileza de me enviar um conto, inédito, da autoria do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), a que chamou "um conto de Natal", acompanhado da seguinte mensagem:


Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.



Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schulz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele) e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços

pepito



2.  Publicámos este conto, escrito em 1962, na I Série do nosso blogue, em poste de 16 de Dezembro de 2005 (*), ainda antes portanto de sair, em fevereiro de 2006, o livro O Cativeiro dos Bichos (onde vem inserido o conto de Natal), em edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz). Porque grande parte dos atuais leitores do nosso blogue não o conhece, voltamos a publicá-lo, agora na II Série, e com pequenas revisões.  Na antologia de contos de Artur Augusto Silva (ao todo, 25), este ficou com o título, possivelmente original, "Noite luarenta de Dezembro"...


Recorde-se, por outro lado, que o autor, jurista de formação, era também especialista em direito consuetudinário, tendo publicado vários livros sobre os "costumes e usos jurídicos" dos fulas (1958), dos felupes (1960) e dos mandingas (1969).  A amizade com o Cherno Rachide e a sua família já vi vinha de muito longe, e tem sido mantida e cultivada pelo Pepito (que é amigo do actual Califa de Quebo-Forreá, o Cherno Aliu Djaló).


3. Noite luarenta de Dezembro (**)
por Artur Augusto Silva [, foto à direita]


Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.


Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.


O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar. Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».


Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens.

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão - retorquiu o tubabo - então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o Tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos. Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga. Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?


Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens. Mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus. Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares… Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

[Artur Augusto Silva, 1962]


In: SILVA, Artur Augusto - O cativeiro dos bichos. Bissau: 2006. pp. 187-189. [
Ed. lit Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schwarz; prefácio de Henrique Schwarz; impressão e acabamento, Novagráfica, Bissau, Fevereiro de 2006]
__________


Notas do editor:


(*) Vd. I Série > 16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

(**) Ultimo poste da série > 16 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

4 comentários:

Luís Graça disse...

"Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos"...

Palavras de um santo homem de Deus, proferidas em 1962, em Quebo, perante um "tubabo" [ braco,] que alí se refugiou em noite de Natal, quiçá em busca de paz, e quando já soavam os tambores da guerra... Palavras profundas e sábias de um homem que foi um importante dirigente espiritual muçulmano não na Guiné como na África Ocidental, e que todos queriam ter como "aliado", do Gen Spínola ao Amílcar Cabral...

Palavras que deixo no nosso "sapatinho de Natal de 2011"... LG

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Sem dúvida uma lição de grande sabedoria!
E, curiosamente, muito aplicável ainda (e se calhar, principalmente) nos dias de hoje.
Na nossa vida social, na política, e até na vida do nosso Blogue.

Existem naquelas palavras muitas noções interessantes mas ressalto apenas duas: a primeira é aquela que o Luís já salienta no seu comentário e a outra é a ideia de que se o Homem é uma criação de Deus, mesmo aquele que descrê de Deus e crê no Homem, acaba por estar a crer no Criador.
Interessante, não é verdade?

Abraços
Hélder S.

Luís Graça disse...

Repare-se na auto-ironia do autor, ao retratar-se dos eventuais "excessos estético-ideológicos" do seu passado de jovem estudante de direito (acabou o curso em 1938, em Lisboa), e de frequentador das tertúlas literárias da capital, onde privou com Fernando Pessoa, Almada Negreiros e outros intelectuais modernistas...

(...) "O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar. Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de 'pensador profundo' " (...).

Julgo que Artur Augusto Silva estava aqui explicitamente a parafraser a célebre afirmação do poeta futurista e fascista italiano F. T. Marinetti (1876-1944), no seu "Manifesto do Futurismo" (1909), segundo a qual um automóvel rugindo e parecendo correr na música de uma metralhadora seria "mais belo do que a Victória de Samotrácia"... ["4. Noi affermiamo che la magnificenza del mondo si arricchita di una bellezza nuova: la bellezza della velocità. Un automobile da corsa col suo cofano adorno di grossi tubi simili a serpenti dall'alito esplosivo... un automobile ruggente, che sembra correre sulla mitraglia, pi bello della Vittoria di Samotracia."]

Haverá de resto alguns pontos comuns entre a poesia de Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa) e o Marinetti...

Fontes:

http://www.letras.ufmg.br/cesp/textos/(1981)alvarocampos.pdf

http://www.futurismo.altervista.org/manifesti/fondazione.htm

Cherno Baldé disse...

De resto, o ilustre pai do Eng. Pepito nos da mostras de ter procurado conhecer a dinamica profunda que animava a africa no seu tempo e de ter convivido de perto com alguns dos espiritos mais iluminados ao falar-nos de Cherno Rachid ou de Thierno Bokar de Bandiagara (Mali).

Curiosamente, todos estes grandes Homens que marcaram a sua época, de uma forma ou outra, foram também marcados pelo intransponivel dilema da ocupacao colonial, das divisoes e incompreensoes que dai resultaram.

Um grande abraco,

PS: Estou a tentar traduzir um pequeno excerto do livro de Amadou Hampaté Ba sobre os ensinamentos de Thierno Bokar que penso enviar ao Blogue para publicacao.

Cherno Baldé