sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 21 de Dezembro de 2011:

Viva Carlos,
Envio ao teu critério a minha breve opinião sobre a interessante biografia de Bobo Keita, que li por gentileza do Virgínio Briote.

Para ti e para o Tabancal envio um abraço com votos de Boas-Festas.
JD


Li no Blogue a extensa recensão sobre a biografia de Bobo Keita, um comandante do PAIGC, que resultou do conjunto de conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor da edição. Aquela amostragem no Luís Graça e Camaradas da Guiné, estendeu-se por três episódios e, talvez fruto da extensão, não terá sensibilizado os leitores para a excelente exposição feita sobre aquele partido, tendo em conta que deriva das lembranças de quem viveu o período colonial e, por via disso, juntou-se ao movimento emancipalista, participou na organização e em acções de guerra, tendo atingido um lugar de destaque na estrutura e, portanto, revela variados momentos e acontecimentos que contribuem para uma melhor avaliação histórica.

Sensibilizou-me a correcção dos discursos em relação à potência colonial, sem preconceito, sem ódio nem azedume, até com uma ingénua simplicidade, como quando se refere à ausência de direitos de uma grande parte da população - os gentios - que, no seu caso, por não ter nome de aculturado, não podia ter bilhete de identidade e, em consequência, não podia frequentar a escola. Disse-o sem rancor ou qualquer animosidade, embora aqueles gentios, sob aquele regime, estivessem sujeitos a perpétua subalternidade e impossibilitados de serem parte em actos administrativos. Não eram escravos, mas eram ostracizados. O regime viria a corrigir a situação mais tarde, para todo o território ultramarino, provavelmente em consequência da evolução social e política, mas também para dar resposta ao crescimento do bem estar e ao estabelecimento de novas formas comerciais.

Valeu-lhe uma missão católica e o bom padre que lhe deu o nome de Henrique dos Santos Keita, para que tivesse tido oportunidade para frequentar a escola, que iniciou aos nove anos. As conversas revelam que o jovem não só estudava, como se iniciava na aprendizagem e ajuda à profissão de alfaiate que o pai exercia. E porque o pai era muçulmano, dificultava-lhe a vida aos domingos para que o Bobo não tivesse oportunidade de frequentar a igreja, preocupação de que sairia aliviado, quando expôs a questão ao mesmo padre que o dispensou das missas e lhe permitiu concluir os estudos primários em condições de alguma normalidade. Hoje, adultos, devemos levar em consideração a influência destes acontecimentos na formação moral e ética de um jovem, que correu contra a exclusão na sua própria terra.

Outra nota muito subtil sobre a formação do carácter e o determinismo pessoal, aconteceu quando o Bobo já era ídolo na cidade de Bissau. De facto, enquanto estudava e ajudava o pai, também praticava futebol e desenvolveu habilidades que o levaram ao Benfica local (apesar de ser o Sporting o clube do coração). Aos dezassete anos, para representar a selecção da Guiné, deram-lhe nova identificação com a idade de dezoito, e passou a deslocar-se para participações em torneios africanos. Aos jogadores era destinada uma pequena verba, talvez para despesas de representação ou pequenos gastos pessoais, com a qual os dirigentes se locupletavam. Reclamavam os futebolistas, mas não havia nada a fazer. Até que num torneio, no Gana, em 1959, que celebrou a independência da antiga colónia britânica com a designação de Costa do Ouro, o presidente Nkrumah exaltou a libertação dos povos oprimidos. Mais tarde, sobre uma deslocação à Nigéria, refere: "no balneário e no hotel, começámos a reflectir nas nossas condições de existência em relação aos outros futebolistas com que nos cruzávamos nesse torneio internacional de Lagos". "Começámos então a manifestar a nossa insatisfação , a acantonar-nos numa certa reserva em relação aos dirigentes da selecção". E o cachet, nicles! Numa deslocação seguinte à Gâmbia os jogadores ameaçaram não participar se não lhes dessem o dinheiro. Em consequência dessa actitude colectiva foram chamados à PIDE que os intimidou, uma prática da "justiça" dominante.

Nesta senda, Bobo e alguns companheiros de futebol decidem abalar para Conakri onde se modelava a oposição. Não foi um guerrilheiro romântico que saiu de Bissau, mas um jovem conhecedor das duas faces da vida que, apesar de se estar a afirmar como futebolista, continuava a sentir as dificuldades da ascendência humilde, em termos que lhe feriam a dignidade. Nem por isso, no entanto, deixa escapar qualquer expressão de ódio ou desprezo em relação aos portugueses. E é também sem qualquer traço de soberba, insulto ou desdém, antes, consciencioso e com sentido das responsabilidades, que Bobo vai fazer o seu exercício de memórias sobre a guerra pela independência.

Sobre o congresso de Cassacá confirma as razões da convocatória e a aplicação da lei marcial. Parece-nos brutalidade (e foi), mas quantos de nós ainda hoje não manifestamos vontade de pendurar em postes públicos ou nos pelourinhos os corruptos de Portugal? Faz-nos descrições interessantes sobre a vida no mato, e nas chamadas zonas libertadas (aquelas onde os portugueses bombardeavam e só passavam em percursos operacionais), bem como os relatos de vários episódios de graça e de guerra, e histórias de intrigas no seio do partido, ou de contactos com os portugueses, quase todas caldeadas de informações complementares e esclarecedoras.

Relativamente à morte de Cabral, Bobo conta-nos sobre a percepção do líder relativamente ao atentado, e a sua convicção (de Bobo) sobre a responsabilidade partilhada por Inocêncio Cani (que iria substituir no comando dos blindados), Mamadu Injai, Momo Turé (primo do Bobo) e Aristides Barbosa, todos concominados com a PIDE, que pretendia a captura dos líderes, e apostava na divisão étnica entre guineenses e cabo-verdianos, e revela o forte indicio de Inocêncio (o autor do primeiro tiro) ao comandar um barco em fuga para Cacine com Aristides Pereira prisioneiro e escondido a bordo. Foi apanhado em Boke, aparentemente para se reabastecer de combustível ou vingar-se de José Pereira que o denunciara de mau carácter. "Os cabo-verdianos estiveram ali nas frentes de combate durante todo o período da luta", refere Bobo desmistificando teorias elitistas no PAIGC relativamente aos guineenses. "Os que defendem esta tese, ou fazem-na de propósito para criar a divisão entre guineenses e cabo-verdianos ou então não conhecem a história da luta". Ora, neste capítulo, dá-se conta de algumas tentativas para eliminação de Cabral.

À morte de Cabral o partido reagiu e declarou a independência, enquanto recebia novos equipamentos para a prossecução da guerra. De entre esses destacaram-se os mísseis Strela. Reorganizados e reequipados, levaram a cabo a operação "Amílcar Cabral". "Lá onde não podiam pôr os pés, porque a guerrilha estava presente em força, mandavam os seus aviões que lançavam bombas semeando o pânico e a destruição para depois fazerem avançar os seus soldados ao assalto, protegidos por tanques blindados e helicópteros de combate. A correlação de forças encontrava-se desequilibrada e a favor deles. Por isso é que a nossa luta durou tanto. Mas na operação multi-direccionada (Guileje-Copá-Guidaje) o uso massivo e sem recuo de canhões de artilharia, foguetões e morteiros fizeram oscilar a balança". E acrescenta sobre a evolução na formação militar: "Com a aquisição da nova força das armas, do cálculo dos artilheiros, muitos de nós certificámo-nos ainda mais de que não eram os 'mésinhos' que determinavam as nossas vidas ou mortes. Compreendemos que uma vez que a bala mortal rompesse a pele e se incrustasse na carne não havia remédio algum que possa salvar. Vi qual era o valor das trincheiras, dos abrigos, do amontoamento de areias à volta das bases". "O primeiro reflexo do guerrilheiro que antes era pôr-se de pé e disparar a peito nu contra o inimigo, confiante no 'mésinho' pendurado à volta do pescoço ou nas coxas... passou a ser a escavação de abrigos, a formação de montes de terra para se proteger do assalto inimigo, a codificação do espaço, a disciplina quotidiana, uma maior concentração nos indícios, a melhor utilização do terreno geográfico, etc.. Éramos combatentes e não feiticeiros ou jambacuses".

Bobo também se refere ao protagonismo e aos privilégios de Nino durante o período da luta, e não lhe foi simpático.

Spínola, o "desmancha prazeres". "É verdade. ...Mas não se esqueça que à frente dele estava também um dos mais prestigiados líderes da revolução africana, Amílcar Cabral! E o braço de ferro entre eles, apesar da morte de Cabral, saldou-se na derrota de Spínola, que acabou por reconhecer que tudo o que fez na Guiné não deu resultado, não conseguiu vencer-nos". Repare-se na delicadeza de trato deste comandante relativamente ao mais famoso adversário. E tece a seguinte consideração: "Spínola estava numa perfeita contradição entre a sua visão neocolonialista de uma autodeterminação e independência da nossa terra debaixo da bandeira de Portugal e o estado avançado em que a luta do Partido se encontrava e de onde já não podíamos recuar". Poderiam os portugueses ter rebatido? Acho que sim, e hoje sabemos de algum abrandamento diplomático dos países ocidentais contra Portugal, mas os portugueses não souberam tomar em tempo devido as medidas aglutinadoras, e cansaram-se da guerra.

Parece um depoimento sério, que aborda várias questões que rivalizaram o PAIGC com Portugal, antes, durante e depois do período da "luta". Não escamoteia o confronto com outras teses conhecidas, antes contribui para novas abordagens sobre essas relações entre duas partes que se reclamavam da legitimidade para governar o povo da Guiné. Aconteceu, porém, que os portugueses desistiram, e Bobo, que comandou a frente leste depois do 25 de Abril, apressou a retirada dos portugueses daquela região, com recurso a estratégias que aproveitavam a desorganização e "desmobilização" da tropa metropolitana.
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Notas de CV:

Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:

24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho

25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

Vd. postes da recensão deste livro feita por Mário Beja Santos de:

5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)
e
9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

E esta tudo dito nesse seu texto, meu caro Jose Manuel Matos Dinis. Um olhar "humanizado" do "turra" do outro lado da trincheira.

E mais..o livro tem revelacoes ineditas... que veem dar luz a aspectos ate entao pouco claros da historia recente da Guine.

Com um simples exercicio de encaixe das pecas desse puzzle, em cacos...chega-se la !

Com "pachora" um dia destes retomo o "inedetismo" de algumas das revelacoes de Bobo Keita !!!

Bom Natal...votos extensivos a todos os " blogueiros" !!

Nelson Herbert

António Rodrigues disse...

Bobo Keita foi o primeiro dirigente do PAIGC a visitar Bajocunda após o 25 de Abril de 1974 e iniciar conversações com vista ao cessar Fogo.