sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9260: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Madrinha de guerra e... amor

1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (12)

Madrinha de guerra e… amor

O Neca Quintino era sapateiro e bastante conhecido. Além de ser um artista no desempenho da sua profissão, granjeara um certo respeito pela sua honrada postura e pela solidariedade da sua viuvez precoce. Casou com a Micas do Canto, sua vizinha e bem conhecida desde os tempos de criança. Sempre se sentiram atraídos um pelo outro e, logo que puderam, assumiram uma relação, aliás abençoada por todos.

Era gente de trabalho árduo, fruto dos tempos inseguros da República e da fome que os acompanhou com a implantação do Estado Novo e os sacrifícios com a “neutralidade” de Portugal durante a II Grande Guerra. Além do amanho da casa e das hortas, do pequeno quintal, a Micas estava sempre ao lado do Neca, para o ajudar nos trabalhos de sapateiro.

A filha Deolinda, nasceu “antes do tempo”, o que acontecia muitas vezes com o primeiro filho de um casal. Portanto, naquele ano de 1944, além do casamento dos pais, festejou-se, também, o baptismo da Deolinda. O pai do Neca era serrador e o tio solteiro era pedreiro. Juntos decidiram ajudar o Neca e a Micas e iniciaram a construção de uma casa de quatro paredes. Na parte de cima, ainda colocaram, entre os tijolos vermelhos, três janelas e uma porta mas em baixo, estava tudo vedado com casqueiras de madeira.

A mulher já havia abortado por três vezes e fora avisada de que a sua vida corria perigo sempre que isso acontecia. Porém, a Micas queria um rapaz e como vira que os três fetos eram do sexo masculino, ela vivia ansiosa por conseguir o filho tão desejado.
Quis o destino que no último parto, as coisas corressem pior. Assim, a contrariar a alegria do nascimento do rapaz, caiu a tristeza do falecimento da Micas, pouco tempo depois.

Com oito anos, a Deolinda deixa a escola e vai ajudar o pai e cuidar do bebé recém nascido. Por outro lado, o Neca, apesar da falta de apoio da falecida mulher e, ainda, com algumas dívidas da casa inacabada, resolve instalar luz eléctrica em casa. Convida alguns colegas de profissão, para trabalharem com ele, ajudando-o, assim, a custear tal investimento. A Deolinda substituía a mãe em quase tudo. Sempre com o irmão ao lado, dentro de uma giga de giesta, fazia quanto o pai lhe pedia.

O Quinzinho, que herdou o nome do avô, rapidamente se tornou no miúdo mais acarinhado daquele lugar. Foi crescendo cheio de atenções e simpatias e muito amor da irmã adolescente, que sempre o tratou como se fosse seu filho, para além de seu boneco de estimação.

Quando estalou a guerra em Angola, já a Deolinda era uma mulher. Mulher de raça! Fazia o trabalho de qualquer sapateiro, cuidava da casa e ainda se esforçava na pequena horta contígua à casa.

Na cave da sua casa, em redor de duas mesas colocadas de frente para a luz, que penetrava pelas duas portas abertas (de Verão e de Inverno), trabalhavam mais de 10 pessoas. Trabalhavam à tarefa para as várias fábricas de calçado da região e davam o seu máximo de tempo e de esforço para conseguirem ganhar o sustento condignamente. O Neca trabalhava isolado lá mais atrás, junto a uma pequena mesa, onde era ajudado pela filha Deolinda e por um ou outro aprendiz que ia admitindo. Desta forma, isolava a sua filha das conversas menos convenientes dos adultos e dava o privilégio da entrada da luz, aos outros (seus “inquilinos”).

A Deolinda era inteligente e apercebia-se de quase tudo que ali se discutia, do futebol à política (surda); da religião à má-língua. Agora, já mulher, quando soltava os seus longos cabelos pretos, via-se que, apesar de não ter mais que 1 metro e 60, se tratava de uma mocetona. Era bem feita de corpo e tinha um palminho de cara muito bonita e uns lindos e expressivos olhos negros. Todavia, escondia as mãos e os joelhos, devido aos calos do trabalho.

É nesta fase dos primeiros tempos da guerra, que se vive com muita emoção, o envio das nossas tropas para defender o Portugal de além-mar.
Havia um vizinho, o Zequita, que gostava muito de ir para lá aos serões, ouvir a conversa e ler em voz alta alguns jornais ou revistas que chegassem até ali. Tinham por ele muita simpatia porque era órfão do Zé da Feira, considerado um amigo de todos, que falecera de doença hepática com trinta e poucos anos. Além disso, como eram praticamente todos analfabetos e sem tempo disponível, gostavam de ser informados, através das leituras, enquanto trabalhavam.

Como se falava muito nas Madrinhas de Guerra, a Deolinda confessou que gostaria de ter um afilhado. O pai, embora torcesse o nariz, não via motivos para censurar tal desejo da sua sacrificada filha. Porém, ela tinha um grande entrave: saíra da escola com a primeira classe e já quase nada sabia.
Um dia, ela apanhou uma revista (talvez a “Flama”) e viu lá uma foto tipo passe de um rapaz com a farda diferente. Era da Força Aérea e pedia a alguém que o contactasse durante aquela guerra. Logo que o Zequita lá chegou, ela disse-lhe, meio a brincar, que ele poderia mandar-lhe uma carta no nome dela.

Passados poucos dias, a Deolinda não aguentava tanta emoção. Pois havia recebido uma linda carta, com a primeira foto dedicada por um bonito rapaz, e a tratá-la com elevada educação. O Zequita, apesar dos seus 15/16 anos, gostava muito de cinema e já havia lido alguns livros de enredo romântico, especialmente os de Camilo Castelo Branco, emprestados pelo vizinho Mário Malheiro. Por isso, não foi difícil “abusar” um pouco desses conhecimentos e colocar o relacionamento da Deolinda com o Pára-quedista, João Morgado, talvez um pouco acima da realidade.

A Deolinda, que nunca namorara, entusiasmou-se e agora, já não se sentia bem quando o tema de “Madrinha” era motivo de discussão ali na mesa de trabalho. Preocupava-se, então, em controlar o que o Zequita escrevia e tomou uma atitude:
- Pai, quero frequentar a Escola de Adultos. Vai ver que consigo trabalhar e ir para a escola.

O pai, apesar da falta que ela lhe fazia, ficou contente com a decisão.
Não levou muito tempo para que ela se desenvolvesse na escrita e, com a ajuda do Zequita, o relacionamento de Madrinha de Guerra estava a transformar-se numa relação amorosa.

Entretanto, o Zequita, que trabalhava na cortiça, também resolveu ir aprender contabilidade à noite, no ensino privado, e passou a dispor de pouco tempo para acompanhar as cartas da Deolinda. Este atraso veio a provocar alguma aceleração no relacionamento Madrinha/Afilhado. É que o João Morgado, o tal afilhado, vinha, através do ciúme, demonstrando cada vez mais, que se sentia apaixonado. E ela, por mais que se esforçasse, não se sentia capaz de lhe corresponder como gostaria. A barreira da escrita e um certo retraimento face ao vizinho Zéquita, eram motivos de sobra para chorar a sua sorte. É que o Zequita alinhou naquilo como uma brincadeira e parecia não aceitar o desenvolvimento que estava a levar. Especialmente, não gostava que a Deolinda se apaixonasse daquela forma por “um desconhecido”.

Ela pensou, pensou, chorou, chorou e acabou por tomar a difícil decisão. Quando apanhou o Zéquita, pediu-lhe para escrever a última carta.

Querido João
Gosto muito de ti. Mas neste momento, estou obrigada a parar com o nosso relacionamento. A culpa não é tua. Um dia, se quiseres, poderei explicar-te pessoalmente.
Até lá, desejo-te as maiores felicidades, especialmente nessa maldita guerra.
Fica com esta última foto, tirada no monte da Senhora da Saúde dos Carvalhos.
Um beijinho desta que nunca te esquecerá.
Deolinda

A partir dali, a Deolinda sofria em silêncio aquela mágoa de um amor “cancelado”. Dedicava-se cada vez mais a preparar-se para o exame da 3.ª classe e continuar a aprender aquilo que tanta falta lhe tinha feito agora.

Cerca de dois meses depois, pára um carro VW azul claro, junto da casa da Deolinda. Nenhum vizinho o conhecia. Dele saiu um jovem que se dirigiu à primeira pessoa que encontrou:
- Por favor, diga-me onde vive uma rapariga chamada Deolinda.

- Não tem nada que saber, o senhor parou lá quase à beira. É essa, a segunda casa para quem vem do lado da Feira. – respondeu a vizinha.

Bateu no pequeno portão. Surgiu o Ti Neca que, do alto da escadaria, lhe perguntou o que queria.

- Chamo-me João Morgado e quero falar com a sua filha Deolinda.
Ela que já se apercebera do que se estava a passar, surgiu-lhe junto ao portão, vinda de trás da casa.

Ele, decidido, atira-lhe:
- Vim de férias. Não aguentava estar lá na guerra e ao mesmo tempo não suportava o teu afastamento. Tens de me dizer o porquê dessa atitude.

A Deolinda, emocionada e já com as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, exclama:
- Não tenho coragem para te dizer toda a verdade.

- Seja o que for, só sairei daqui esclarecido e quando tu mandares. – respondeu ele.

- Gostei de ti logo na foto em que pedias uma Madrinha de guerra. Como tive que abandonar a escola, aos 8 anos, quando a minha mãe morreu, pedi a um rapaz vizinho que te escrevesse em meu nome. Nunca pensei que cairia nesta situação. Fui para a escola nocturna por tua causa e agora, que já me sinto capaz de te escrever, não o podia fazer porque a letra não era a mesma. Tinha que parar. Não te queria continuar a mentir. Por outro lado, tens que saber que somos muito pobres, que sou uma rapariga simples, que vivo para ajudar a criar o meu irmão e ao meu pai, fazendo de sapateira e o trabalho de casa. Como vês, não sou rapariga para ti, porque vejo que és rapaz de outras possibilidades.

- Não, por favor, não digas isso. – interrompeu o João, que continuou:
- Também gostei logo de ti e agora, depois do que acabas de contar, sinto-me mais decidido a lutar para que venhas a ser minha mulher.
- Mas eu nunca namorei. Nem ninguém me interessou como tu. – continuou cada vez mais banhada em lágrimas.
- Que se passa, filha? – Perguntou o pai que havia ficado lá em cima.
- Diz ó rapaz para subir. Não fiquem aí a modos do povo ouvir.

Entraram os dois. Estiveram lá umas horas a conversar, para se conhecerem melhor.

À saída, ainda o Ti Neca estava sentado no cimo da escada, junto à porta aberta. O João aproveitou para lhe dizer:
- Senhor Manuel, apenas lhe quero dizer que o Senhor tem a melhor filha do mundo e eu, daria tudo para que ela viesse a ser minha mulher. Ela não tem nada a ver com as raparigas que conheço.
Sou ribatejano. Meu pai, que Deus tem, ensinou-me a tratar os problemas de frente, como se enfrentam os touros. Como trabalho muito, também não tenho tempo para meias conversas. Volto para a guerra. Penso que agora vou para o “descanso” e não vou mais para os combates. Fico feliz se a Deolinda continuar a estudar. Por mim, vai até onde quiser ir. Temos muito trabalho mas também temos empregados para ajudar.

************

Uns dois anos depois, estive com o Ti Neca, por ocasião dos Fiéis Defuntos. E perguntei-lhe:
- Que é feito da sua Deolinda?
- Está lá para a beira de Santarém. – respondeu e continuou:
- Casou com uma jóia de homem. O meu Quinzito está com ela e anda a estudar e eu, ando lá e cá. Estou aqui porque vim ao Cemitério ver a minha patroa, mas vou já para baixo. Ela está em finais de gravidez e não me sai da cabeça o que aconteceu à minha falecida Micas.

- E o trabalho, como vai? - perguntei.
- Olha, isto está a mudar. Os fabricantes de calçado querem agora toda a gente a trabalhar junto deles. O meu patrão Romualdo tem-me dado algum serviço para casa mas, isto já não é vida para mim. Por outro lado, a minha filha e o meu genro querem que eu fique lá. E eu já estou a habituar-me àquela vida no Ribatejo, ajudo no que posso e, realmente, sinto-me em família.

Há mais de 30 anos que quando passo naquela rua, reparo que a casa foi acabada e se mantém bem cuidada. Porém, sempre de portas e janelas fechadas.
Um dia, há uns 15 anos, consegui falar com uma vizinha do lado. Perguntei-lhe:
- Que é feito do Senhor Neca?
- Já faleceu há uns 4 ou 5 anos. Do filho não sei nada. Parece que foi para o estrangeiro. Esse, não cheguei a conhecer porque nunca o vi cá. Mas a Professora Deolinda e o Senhor Morgado passam por cá de vez em quando. Já têm netos!

Silva da Cart 1689

OBS:- As devidas vénias a Manuel Graça, autor da foto do desembarque de tropas em Angola em 1961
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal

Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9119: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Sexo - a quanto obrigas

6 comentários:

ze manel cancela disse...

Camarada Jose Silva,adorei o tua historia é linda,parabens.Já agora um santo Natal.

Silva da Cart 1689 disse...

Caros Camaradas
Antes do mais,quero agradecer a colaboração do Carlos Vinhal que complementou a história com umas belas e sugestivas fotografias.
Aproveito a oportunidade para desejar a todos Boas Festas.
Um abraço

Anónimo disse...

Caro José Silva,
História linda...
Que me toca profundamente. Pela jovem de 16 anos que aceitou ser minha madrinha de guerra, mais tarde esposa e companhaneira.
Boas Festas.
José Câmara

Pereira da Costa disse...

Amigo José Ferreira podes ter a certeza que tens o futuro assegurado.
Não seja da tua vida profissional, mas como romancista.
As tuas histórias veridicas ou de ficção, fixam o leirtor à leitura.
Foi esse o meu caso.
Parabéns.
Pereira da Costa

Luís Graça disse...

Portugal era muito diferente, nos anos 60, do país que conhecemos hoje... (Como era diferente, mas eu não tenho saudades!)... Era diferente, para o melhor e para o pior...

Era (e continua a ser) feito por grandes mulheres como a Deolinda...

Umas das mais belas histórias de amor em tempo de guerra que eu já li!... Ganda Zé Ferreira!... Que bela prenda de Natal!... Não sei como retribuir-te!!!

LG

Anónimo disse...

Camardas:

Cuidado com este escritor!
As suas histórias são sempre bem estruturadas, a fazer rir ou a comover, numa linguagem algo desbocada ou mais resercada, mas claramente histórias que nos aprisionam a atenção. Bem gostava de escrever assim.Ah... lembrei-me daquela história do slide de Lamego.Que grande lata!

Carvalho de Mampatá