terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9304: Estórias cabralianas (70): Sambaro, o Dicionário e o Afecto (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, que também é,  além de um notável contador de estórias, um homem de afectos (com "c", não de cão mas de coração) e um activo facebook...eiro (com cerca de 2300 amigos e amigas, incluindo guineenses, como a sua antiga aluna de serviço social, a  B. B. Ferreira, nascida em Bissau em 1980, e aqui numa foto com ele, na Universidade Lusófona, em Lisboa)...

Além de professor de direito penal, agora reformado, é conhecido na praça e no blogue por ser um  escritor lusófono que diz não ao NAO (Novo Acordo Ortográfico):



Bom Ano, Amigos!

Com o AFECTO
do Jorge Cabral


2. Estórias cabralianas (70) > Sambaro, o Dicionário e o Afecto
por Jorge Cabral





Agora que tenho tempo,  tornei-me um caminheiro. Logo pela manhã abalo pela cidade. Travessas, calçadas, pátios, becos, vilas, percorro devagar essa Lisboa escondida, quase invisível.

Foi num desses passeios que encontrei Ansumane. Um negro velho e calvo, que entre a Travessa da Lua e o Beco das Estrelas, arengava em crioulo.

Dei-lhe os bons dias e ele apresentou-se:
- Ansumane Baldé, segurança.
- Segurança? Foi militar?
- Soldado de Artilharia, Número Mecanográfico 82062962, Guileje, com os Alferes…  - e desfiou uma lista de nomes.
- Eu estive na Guiné. Era o Alferes Cabral do Pel Caç Nat 63.
- Ah! O Alfero Bigodes!
- Sim,  usava um grande bigode. Mas como sabes? Estive sempre no Leste, em Fá e Missirá!
- Quando fugimos para o Senegal,  iam muitos soldados dos Pelotões Nativos. Do teu, foi o Sambaro, que já morreu. Morávamos na mesma Tabanca e muitas vezes falávamos de vocês todos. Sambaro, o homem da bazuca. Talvez quarenta anos, forte, sério, três mulheres, muitos filhos. Queria ser cabo e estudava, estudava para ir fazer o exame da 3ª classe a Bambadinca.


Quando voltei de férias ofereci-lhe um Dicionário. E que contente ficou! E leu e releu a dedicatória: “Para o Sambaro que é quase Cabo e ainda há-de chegar a Sargento. Com Afecto”.
- Alfero,  o que é Afecto? (ele lia o “c”)
- Procura no Dicionário, Sambaro. Que é para isso que ele serve.


Isto passou-se em Fevereiro de 1971. O Sambaro,  além da bazuca,  passou a carregar o dicionário. Ainda me lembro de o ver no Mato Cão a folheá-lo…


Disse-me o Ansumane que os filhos e os netos do Sambaro vivem para as bandas de Sonaco. E que será feito do dicionário?


Imagino um dos netos a procurar nele a palavra afecto;
- Olha,  Sambaro  Neto, se te  disserem que agora é afeto, não acredites. Ninguém lhe pode tirar o “c” de coração.


Jorge Cabral
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)

14 comentários:

manuelmaia disse...

Caro Jorge Cabral,

Uma vez mais com uma simplicidade impressionante contas uma história fabulosa da entrega da cana para pescar em vez do peixe...
Sou também dos que se recusa a aceitar o tal de acordo...( como dirão do outro lado do Atlântico...)
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Um abraço com AFECTO.

José Marcelino Martins disse...

Caro Alfero Cabral

Estava aqui "às voltas com o Código do Trabalho" (infelismente tem sido a minha maior leitura nos últimos tempos) quando voltei ao mail, para ver as últimas antes de ir conversar com a almofada.

Como sempre, gostei!

Já somos 4 a dizer não ao NAO, e a ter afecto pelos camarigos.

Abraço fraterno

Anónimo disse...

Com todo o meu afecto vai para o meu blog.Onde o NAO não tem lugar. E ,Alfero Cabral, obrigado por mais esta preciosidade.
Abraço fraternal de Alcobaça,
JERO

Anónimo disse...

Em algum lugar no tempo
Eu te encontrarei e te assombrarei novamente
Como o vento varre a terra
Em algum lugar no tempo
Quando não restar nenhuma virtude para defender
Você cai profundamente
(Somewhere in Time -Maksim Mrvica)

Mas o que tem isto a ver com esta Estória?

Apenas o facto de quando comecei a ler mais uma estória da antologia Cabriliana, estar a ouvir esta música. Já li, reli e tornei a ler esta preciosidade,de AFECTOS, sempre ao som da mesma. Agora vou descansar de coração cheio . Até Amanhã

A.Almeida

Joaquim Mexia Alves disse...

Só tu Jorge, para com tanta simplicidade descreveres tão bem o AFECTO!!!

Obrigado porque me aqueceste o coração.

Grande abraço

Ah e eu não sou contra o NAO, eu simplesmente ... ignoro-o!!!

Torcato Mendonca disse...

Jorge Amigo de tanta Gente, Jorge de afectos. Este acordo é uma subserviência...e íamos longe...
Vim aqui, pois mais uma vez parece estar de abalada, e li-te.
O dom de tanto dizer em tão poucas mas fortes palavras.
Que seria do afecto, dos afectos sem o c? Sim sem o "c" do coração...

Topo os minutos em tempo de pressas e em idade de as não ter...
Lembro-me tanto daquelas gentes!

Abraço T.

Alberto Branquinho disse...

Pois é, Jorge

Para além do mais, a Guiné-Bissau é um dos cinco-cinco Estados lusófonos que não ratificaram o "oportuníssimo"... Acordo. Têm mais em que pensar!
Que viva o "afeCto"!
Também não o adoPto.
Um abraço e óPtimo Novo Ano.

Anónimo disse...

Isto não é um acordo é uma imposição da maioria.

Maioria brasileira, que por sua vez é bem diferente no carioca no paulista , baiano e outros.

Talvez que com a globalização este seja o último acordo do nosso idioma, pois que até aqui os brasileiros tão dentro do seu casulo, nem sabiam que ainda recentemente Portugal tinha colónias que falavam como os portugas.

É que teem umas fronteiras tão grandes, que pensavam que para lá
não havia mais nada, excepto os EUA.

Hoje devem ter outra visão do mundo lusófono e não imponham mais nenhum acordo.

Antº Rosinha

manuel amaro disse...

Caro Jorge Cabral,

Obrigado por mais esta estória, que não é uma estória qualquer.
Por tudo, mas principalmente pelo afeCto.

Um Abraço
Votos de Bom Ano.

Anónimo disse...

Caro Dr. Jorge Cabral

Tenho lido muitas das suas Histórias mas, deixe-me que lhe diga, que acho esta linda!
Cheia de Humanismo, de Afecto!
Talvez a sua disponibilidade de agora, lhe dê tempo para olhar o passado e o presente mais profundamente.
Obrigada!

Um abraço sincero da

Felismina

Anónimo disse...

Só aqui venho para não ficar atrás dos outros. Se não tivesse lido teria perdido esta fabulosa deambulação pelas picadas do afecto e nada te teria dito.
Assim, pelo menos digo...obrigado
E digo também abraço
José Brás

Anónimo disse...

Sambaro,homem bom do Pel. Caç. Nat. 63.Um belíssimo atitador de basuca,srndo o seu municiador o soldado Maudi,nutindo por ele um repeito quase angelical.
Sambaro além de ser um respeitável soldado eta considerado pelos outros soldados um "Homem Grande", o seu mentor espiritual e conselheiro matrimonial.Falava pouco portuguêa,mas a partir da altura,que o Jorge Cabral lhe ofereceu o dicionário,começou a falar com uma certa facilidade aquele idioma.Para terminar,refiro ser um homem afável de trato fácile pertencia à minha secção.
Um BOM ANO para todos os tertulianos com AFECTO.
Para ti Jorge Cabral um abraço com AFECTO, tirado do dicionário que ofereceste ao Sambaro.
António Branquinho

Hélder Valério disse...

Caro amigo "Alfero Cabral"

Já muitos intervieram no sentido de te parabenizar por mais esta pérola.
Por isso não vou repetir o que já foi dito quanto aos "afectos" e ao facto curioso de o "c" que o famigerado NAO fez sair(calculo que o 'til' do 'A' tenha 'caído' por força da sua aplicação) ser a mesma letra da palavra "coração" que é o centro e o motor dos "afectos".

Não, senhor. Quanto a tudo isso, tem a minha concordância e o meu aplauso.

Apenas quero saudar o teu novo hábito anunciado de te levantares cedinho e deambulares por esses locais que referes. É bom, muito bom mesmo e dá para aprender bastante, se se reflectir sobre o que se vê e se ouve.

É claro que já houve uma 'alma caridosa' que me sussurrou ao ouvido que se calhar não era bem o 'levantar cedinho', mas sim o 'deitar tardinho', relembrando então 'velhos tempos'...

Abraço
Hélder S.