quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9308: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (3): Começar o ano novo com medo de levar uma porrada

1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais um excerto do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à edição do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).


Com seis meses de Guiné, ele estava no princípio do ano de 1973 ainda em chão manjaco, no Canchungo (Teixeira Pinto), no CAOP1, servindo sob as ordens do Cor Cav Pára Rafael Durão (que ele nunca identifica, a não ser pela incial do apelido, D.).  Recorde-se que o AGA era Alf Mil, com a especialidade de Secretariado, Serviço de Pessoal:

" [Sou] chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos" (...).

Com 25 anos, culto e viajado, paisano no meio de militares puros e duros, ainda mal ambientado à Guiné e ao trabalho que lhe é exigido no CAOP1, o AGA é confrontado com o risco (real) de "apanhar uma porrada", ao abrigo do RDM, ser despromovido e perder o direito de licença às tão desejadas férias na Metrópole (o que, diga-se de passagem, não virá a acontecer, sendo o AGA um felizardo com direito a 3 períodos de férias no "Puto", durante a sua comissão, que vai de Junho de 1972 a Abril de 1974)...

No entanto, as coisas tinham aparentemente começado bem quando ele chega, de armas e bagagens, em rendição individual,  a Teixeira Pinto, em 26 de Junho de 1972:

(...) "Tive uma simpática recepção, um coronel pára-quedista, comandante do CAOP 1, meu chefe e o dono da guerra aqui, mais dois majores, Barroco e P., o capitão Borges e o alferes Carvalho que venho substituir" (...).

Em 12 de Julho de 1972, o AGA descreve o seu trabalho (burocrático) no CAOP1:

(...) "Não vivo num paraíso tropical, tão pouco numa colónia de férias para brancos em África. Mas é verdade que faço uma guerra pacífica, sobretudo com papéis. Tenho dois subordinados, o furriel Peres que, tal como eu, veio para a Guiné já com 21 meses de tropa em Portugal e o 1º. cabo Pereira, escriturário que escreve à máquina, arquiva a papelada e vai buscar umas laranjadas ou cervejas ao bar.

"Eu abro a correspondência que leio e organizo, dou ao Peres para ele registar no livro de entradas, depois vou levá-la ao gabinete do major P. que tem o pomposo título de Chefe do Estado-Maior, o major entrega ao coronel D., o comandante do CAOP 1 e vai a despacho com ele. O coronel assina e anota os papéis, devolve ao major, este entrega-mos a mim, seguem para o furriel que faz a descarga no livro de entradas e por fim vai tudo para os arquivos, trabalho do cabo Pereira. Temos três secções no CAOP, Operações, Informações e ainda a chefia do Estado-Maior.

"A correnteza da correspondência, com idas e vindas, pode demorar pouco mais de uma hora ou pode prolongar-se por dias se uma peça graúda do sistema estiver ausente, por exemplo o meu coronel que se desloca frequentemente a Bissau onde tem a mulher e onde participa em muitos dos planos de operações para a nossa zona de intervenção. Este coronel pára-quedista vem da arma de Cavalaria, a mesma do general Spínola de quem é confidente e amigo.

"O furriel e o cabo encarregam-se dos passaportes, das guias de marcha, etc. Compete-me a mim redigir um ou outro ofício. Faço o rascunho, vai ao cabo para ser batido à máquina, revejo o texto, segue para o major e o coronel. O major P. já notou que eu escrevo bem, uma prosa limpinha até nos ofícios militares". (...).

Diz-nos igualmente o que é o CAOP1 e para que é que serve:

(...)"O CAOP engloba quase quarenta homens. Somos os 'operacionais da retaguarda'. Aqui se fazem os briefings sobre as operações, se trata do apoio logístico, temos as transmissões e os condutores auto com os unimogs, as viaturas que transportam as tropas operacionais para o terreno. Sob as nossas ordens encontram-se a 35ª. Companhia de Comandos e os pára-quedistas, estamos acima do Batalhão de Infantaria 3863 aqui estacionado, com uma CCS (Companhia de Comando e Serviços) e mais alguma tropa. Estamos ainda acima das companhias distribuídas pela zona geográfica que nos pertence, entre os rios Mansoa e Cacheu, e para leste temos mais uns trinta a quarenta quilómetros de território. O resto da Guiné  não tem a ver connosco". (...)
Em 30 de Julho de 1972, fala do seu coronel, como homem e como militar, nestes termos:

(...) "Do coronel D. [, Durão,], áspero, cem por cento militar, muito duro de nome e de trato, não tenho razão de queixa. Usa um bigodinho, a cabeça quase rapada com uma pequena poupa à frente. Não gostei de saber que, enervando-se e em situações extremas, dá murros nos soldados." (...).

Mais à frente, voltará a falar da dureza do Cor Pára Durão, numa cena que lhe deixa "marcas":

(...) "Canchungo, 2 de Setembro de 1972: Ao fim da tarde, na coluna de Bissau chegou um Unimog com quarenta telhas e umas pranchas de madeira para as obras que estamos a fazer no edifício do CAOP. Chovia imenso e era preciso gente para descarregar a viatura. Passava das seis, já não tinha pessoal no meu serviço. Fui ao bar dos praças e pedi três voluntários para ajudarem na descarga. Ninguém se ofereceu. Nomeei três soldados. Os três, repimpados no bar a comer sandes e a beber cerveja, recusaram-se e disseram-me, por palavras mais delicadas do que estas, que se estavam cagando para mim e para o material a descarregar. Ora o coronel dera-me ordens para eu tratar de arrumar os materiais vindos de Bissau. Ele, tal como o major que está de férias em Portugal, fiscaliza sempre o meu trabalho, era uma tarefa que tinha de ser feita naquela altura. Arranjei outros três soldados que se prontificaram a ajudar e a esvaziar o Unimog. Continuava a chover copiosamente e ficámos todos encharcados.

"Os outros três, à distância, gozavam o espectáculo. Eu respeito os soldados, também exijo que me respeitem. Não aguentei, fui ter com o coronel e disse-lhe: 'Meu coronel, os soldados Ramalhete, Silva e o Victor recusaram-se a obedecer ao pedido que lhes fiz para descarregarem a telha e a madeira do Unimog que veio de Bissau.' O coronel mandou imediatamente chamá-los, os rapazes ficaram em sentido e, à minha frente, a cada um deles deu uma daqueles socos impressionantes de que já tinha ouvido falar. Os rapazes cambalearam e foram mandados embora.

"Ficámos sós, o coronel e eu. Berrou comigo, acusou-me de ser mole demais por isso havia sido preciso chegar àquela situação. Eu devia ter tido pulso, fazer-me obedecer na altura própria. Como militar ele tinha razão, aliás como militar é muito raro o coronel não ter razão, só não tinha razão para me chamar 'imbecil'. Foi o murro que levei, mais suave do que os que pespegou nos soldados. Mas também doeu." (...).


AGA fala sempre do "meu coronel" com um misto de respeito e de admiração, louva-lhe a coragem, a determinação e o sangue-frio nas situações difíciais, e descreve o seu paternalismo autoritário nas relações com os seus subordinados. Oriundo da arma de cavalaria, é paraquedista, tem a mulher em Bissau, não tem filhos e é amigo e confidente de Spínola... No entanto, AGA pensa que está "debaixo de olho" do chefe... No início do ano de 1973, ele escreve no seu diário que tem receio de "apanhar uma porrrada"... Aliás, o diário é fértil em pequenas histórias passadas com o Cor Pára Durão que, a seu tempo, poderão de novo aparecer aqui no blogue. O AGA esteve com o Cor Durão em Canchungo e Mansoa, até Junho de 1973. Em Cufar, passará a estar à frente do CAOP1 o Cor Joaquim Curado Leitão, um hoem que é descrito pelo AGA como "calmo, educado e periquito",  ...(LG).



(...) Canchungo, 5 de Janeiro de 1973

Quando a avioneta ou os helicópteros chegam de Bissau, não é preciso comunicarem por rádio que vão aterrar. Nós ouvimo-los no ar, pegamos nos jipes, vamos para a pista e quando aterram estamos à espera deles.

Hoje ouvi a DO, fui para a pista com o major P., a avioneta sobrevoava Canchungo, mas nunca mais descia, dava voltas e mais voltas por cima do campo de aviação, até que por fim aterrou. Estranhámos bastante. O piloto vinha a suar, era “periquito”, baixava pela primeira vez em Teixeira Pinto, estivera uns minutos largos a estudar a pista. Chama-se [João] Baltazar [da Silva, abatido por um Strela em 8 de Abril de 1973], é um furriel piloto aviador com um ar castiço, inconfundível, alto, magro, os cabelos muito ruços e encaracolados. Pediu desculpa ao meu major pela demora na aterragem.

Canchungo, 8 de Janeiro de 1973

O general Spínola e o general Costa Gomes estão na sala ao lado, com o coronel, o tenente-coronel (do Batalhão) e os majores todos. Vieram arejar as cabeças ou poluir os ares? Que congeminam estes crânios iluminados pelos clarões da guerra?

Canchungo, 11 de Janeiro de 1973

Problemas, as relações humanas difíceis, recalcamentos, fingimentos. No lidar quotidiano com os meus chefes tudo depende de mim.

Dói. Faço um esforço de gigante para conseguir não levar uma “porrada”, ou seja, não ser castigado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar. O coronel espera a minha próxima grande asneira para, zás, me punir disciplinarmente. O que equivaleria a ser despromovido, de oficial para sargento, a mudar de unidade – o que talvez não fosse mau, seria colocado em Bissau, quase de certeza - a passar a comissão para vinte e quatro meses e a deixar de ter férias. Até Junho de 1974 não iria mais a Portugal. Inimaginável eu levar uma "porrada".

A semana passada estava eu a almoçar sossegado na messe e entra o major P., furibundo, a berrar comigo. Havia-me esquecido de entregar duas garrafas de azeite ao pessoal da coluna que seguia para Bassarel. As garrafas destinavam-se a um protegido, um informador do CAOP e na verdade nunca mais me lembrara de dar sequência a esta importantíssima oferta. O major tinha razão, mas era desnecessário aquele barulhão todo. Reconheci o erro, disse que ia tratar do assunto. Quando ele voltou costas, fiz um daqueles meus sorrisos cínicos, irritantes, entre a tristeza e o gozo. Azar meu foi o coronel estar em cima da cena. Não havia reparado mas ele almoçava na mesa ao lado, quase de frente para mim. Viu o meu sorriso, meio de desdém, meio de estupidez, levantou-se, veio ter comigo com aquela fúria reprimida, muito sua, e disse: “Abreu, você tenha cuidado, muito cuidado!”

Soube ontem pelo capitão Pancada – ele é miliciano e faz a charneira informativa, de amizade e trabalho entre os oficiais de carreira e nós, pobres alferes – que o sucedido foi comentado na sala dos bigs e que o coronel afirmou esperar a primeira oportunidade para me dar uma “porrada exemplar”.

Tenho de salvar a pele, ser cauteloso, não posso cometer mais erros. Eu detesto vocábulos com conteúdo semelhante a “eficácia, dedicação, subserviência”. Sou chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos. Às vezes tenho medo de mim, sou distraído, esqueço tarefas, deixo escapar palavras que não funcionam no mesmo comprimento de onda do vocabulário dos meus chefes. Fundamentalmente, sou ainda um civil fardado de alferes do exército, o que desagrada a estes homens que escolheram ser militares toda a vida, por opção e profissão.

Este tipo de problemas não cai apenas sobre mim. O tenente-coronel Correia, comandante do Batalhão 3863, também já ameaçou os alferes Gamelas e Teixeira. Encontram-se, tal como eu, na eminência de uma “porrada.” (...)

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Nota do editor

Último poste da série > 29 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9287: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (2): As duas passagens de ano: Canchungo, 1972/73, e Cufar, 1973/74

4 comentários:

Anónimo disse...

Ah.. ganda paisano travestido de militar.

Sinceridade
Humildade
Gajo porreiro
Ganda sortudo
Poeta,só que a tropa muito menos a guerra não era um poema
Merecias a "porrada"
digo eu
afinal o D., não era assim tão duro.

Um grande alfa bravo

C.Martins

antonio graça de abreu disse...

Uma explicação:

No meu "Diário da Guiné", com o apronto e escrita definitiva em finais de 2006, aparecem três oficiais do Quadro Permanente que identifiquei apenas pelas iniciais, o coronel D., coronel pára-quedista Rafael Ferreira Durão, o major P.,o então major de artilharia João António de Gusmão Pimentel da Fonseca e o major N., já em Cufar, o então major de artilharia Nelson de Matos.
Os nomes não aparecem por extenso porque nos meus textos faço um ou outro comentário menos simpático sobre estes oficiais superiores que poderiam desagradar aos meus companheiros do CAOP 1, e em 2006, ao publicar o livro, eu não queria magoar ninguém. U exemplo: em 2006 o ten.general Rafael Ferreira Durão estava ainda vivo, mas doente, e eu afirmo (é verdade!) que ele batia a murro nos soldados.
Os outros dois majores, Pimentel e Matos, hoje coronéis na reforma com 81 e 80 anos estão vivos, moram em Benfica e em Alvalade (Lisboa)são ainda companheiros de longas conversas sobre a Guiné e a guerra. Dão-me a honra de ser meus amigos.
Se um dia o "Diário da Guiné" (o meu, não confundir, como costuma acontecer nas livrarias, com dois livros com o mesmo título da autoria do Mário Beja Santos) tiver uma 2ª. edição, todos os nomes aparecerão por extenso.

Abraço,

António Graça de Abreu

Manuel Peredo disse...

Confirmo que o coronel Durão batia nos soldados.Eu próprio assisti no gabinete dele em Teixeira Pinto,a uma cena de pugilato.A vítima faz parte deste blogue,mas não revelarei o nome.

Anónimo disse...

Camarigos
É bem verdade tudo quanto o nosso poeta e ilustre sínico (atenção, não confundir com grafia iniciada por c) diz sobre o então Cmdt do CAOP 1.
Modos, rudeza, temeridade (que eu até julgava ser maluquice) e uso frequente de boxe(!). Mas quando o fazia fechado no gabinete, creio que apenas com os Páras, também "levava".
Era uma forma de não usar o RDM, que poderia ter consequências negativas no futuro do pessoal.
Quanto ao Maj Pimentel, já pouco convivi com ele, mas era muito diferente do anterior, Maj CEM Luís Alberto Santiago Inocentes, de muito fino trato.

Grande AB
J.Picado