sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9349: Notas de leitura (322): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Recomendo vivamente a leitura de “Malhas que os Impérios Tecem”, um projecto em que está envolvida a Prof.ª Manuela Ribeiro Sanches, que obrigatoriamente revolve a memória da guerra colonial e abre espaço para que os leitores interessados e sobretudo as gerações mais novas possam reflectir sobre um passado colonial que tem um fundo histórico de pensamento anticolonial agitado, complexo, com resistências transnacionais, um fermento que levou à constituição do Terceiro Mundo e à deslocalização da Europa e do Ocidente. É uma soberba viagem antológica e uma viagem que está longe por se dar concluída, nem todo o pensamento está recolhido e no caso português e das suas antigas colónias até se pode correr o risco de não recolher alguns depoimentos essenciais.

Um abraço do
Mário


Malhas que os impérios tecem:
Como reflectir hoje sobre os libelos anticoloniais do século XX


Beja Santos

“Malhas que os Impérios Tecem – textos anticoloniais, contextos pós-coloniais”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches (Edições 70, 2011) é uma investigação suculenta e arrojada que abre um amplo leque de interrogações aos múltiplos olhares anticoloniais que conduziram a reivindicações à autodeterminação e à independência das antigas colónias europeias.

Se a Europa mudou de rumo no termo da II Guerra Mundial, foi a descolonização o acontecimento mais complexo nas novas relações internacionais: influiu na Guerra Fria, foi determinante para um novo valor das matérias-primas, significou para os EUA uma enorme capacidade de relacionamento com novos Estados e determinou a sua poderosa e incontestável ubiquidade diplomática, financeira, comercial e tecnológica, arrastando as antigas potências colonizadoras para uma revisão no tratamento dos problemas económicos, das esferas de influência e na ajuda humanitária.

O pensamento anticolonial é um dado assente nos EUA, logo no início do século XX. Incorre perigos de simplificação redutora quem pretenda analisar o pensamento anticolonial a partir de meados do século XX, este livro organizado por Manuela Ribeiro Sanches tem um inegável mérito de, com o recurso a textos antológicos do maior relevo, mostrar como a descolonização teve uma preparação anterior aos ideais libertadores propugnados pela diplomacia norte-americana quando acabou o conflito mundial, em 1945.

Os fundadores do pensamento anticolonial mobilizaram-se à volta da questão do negro primeiro nos EUA e mais tarde nas Caraíbas. Tomaram consciência da diferença racial, da discriminação e da hierarquização fundada na pele. Estes pensadores foram à procura das raízes da negritude em África e construíram um projecto que está na base do pan-africanismo. É por isso que a antologia tem início com um texto de W. E. B. Du Bois publicado em 1903 em que este autor reivindique uma dignidade perdida a par da denúncia da falta de direitos políticos e cívicos. Esta será a tónica dos libelos anticoloniais durante décadas enquanto o Harlem se tornou num santuário do protesto afro-americano. Na esteira de Du Bois, outro autor influente, Alain Locke, nos anos 20, veio a escrever: “O Harlem atraiu o Africano, o Caribenho, o Americano negro; reuniu o negro do Norte e do Sul, o homem da cidade e da aldeia; o camponês, o estudante, o homem de negócios, o profissional, o artista, o poeta, o músico, o aventureiro e o operário, o pregador e o criminoso, o oportunista e o pária social… há que admitir que, até agora, os negros americanos foram mais uma designação racial do que uma realidade factual, mais um sentimento do que uma experiência”. E culmina toda esta reflexão com uma frase que iria ser motivo de escândalo: “A perseguição está a tornar o Negro internacional, tal como sucedeu com o judeu”.

No apropriado estudo prévio à antologia, Manuel Ribeiro Sanches traça o percurso destas itinerâncias, as viagens destes afroamericanos até à Europa e a influência que acabaram por exercer em duas figuras da maior importância para a organização da negritude, já nas vésperas da descolonização: Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire. Estes dois homens vão cruzar os seus destinos em Paris, no início dos anos 30. Evoluirão de modo distinto: Senghor para uma noção de crioulidade, em estreita ligação com a francofonia e recusando a via marxista; Césaire começará por aderir ao internacionalismo comunista de que se irá distanciar. Estava já encetado o processo da formação de elites africanas nas respectivas colónias. É por essa altura que intelectuais como caribenho George Lamming viajam até África, estabelecem diferenças e afinidades entre o mundo de onde vêm do local que observam, outros ficarão desiludidos com as novas nações independentes e no caso do Haiti entende-se que a sua independência foi um produto directo da revolução francesa.

É em plena encruzilhada e teia de afinidades entre negritude e pan-africanismo que vão emergir três pensadores oriundos de colónias portuguesas e seguramente os três nomes de maior projecção no pensamento anticolonial: Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral. A antologia privilegia o modo como eles rejeitaram o estatuto de assimilados ou coniventes com os formatos coloniais enquadradores dos civilizados/assimilados em oposição aos indígenas. Mário Pinto Andrade, no prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana, que só viria a ser publicada em Portugal em 1975, escreve sem deixar margem para equívocos: “A poesia africana de escrita portuguesa e crioula, sob o condicionamento da dominação colonialista, articula-se intimamente ao movimento de libertação nacional. Ela ritma o longo combate: negar a negação e realizar a emergência histórica dos povos. Actores sociais no acto cultural por excelência, a luta armada, formularam então um novo discurso poético. Nos dois momentos, os poetas universalizaram os signos da luta pela independência nacional”.

Estamos pois no novo contexto, os movimentos anticoloniais desabrocham, mas as questões da cultura e da identidade inquietam os pensadores favoráveis às lutas de inquietação. E os avisos e as comparações com o passado recente vieram à tona. Em meados do século, Georges Balandier escreveu um texto seminal sobre a situação colonial no pós-guerra, à semelhança da queda dos impérios ocorrida na I Guerra Mundial, os colonizados descobriam a sua história, as suas elites, educadas nas metrópoles coloniais, lançavam o grito de protesto e foram obtendo independência, com variados graus de vinculação com a potência colonizadora. Daí a necessidade de voltar aos locais da cultura nacional, condição indispensável para expurgar ou condicionar a cultura dos colonos.

Em meados dos anos 50, a questão colonial e o processo da descolonização relevam como um dos problemas de civilização com pedido de urgência. É um tempo de grandes documentos e de grandes intervenções, como as de Sartre, Simone de Beauvoir e Camus, Richard Wright e Frantz Fanon. No pensamento anticolonial começa a denunciar-se os artifícios da potência colonial para manter as suas prerrogativas junto da antiga colónia (neocolonialismo) ou o uso das estruturas sociais para cavar divisões na sociedade colonizada. Kwame Nkruhmah escreve: “O maior perigo que África enfrenta é o neocolonialismo, cujo principal instrumento é a balcanização. Este termo define de modo particularmente correcto a fragmentação da África em Estados pequenos e fracos; foi inventado para designar a política das grandes potências que dividiram a parte europeia do antigo Império Turco e criaram na península balcânica vários Estados dependentes e rivais entre si”. Eduardo Mondlane desmonta o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, observando que os administradores coloniais com a dimensão de António Enes ou Mouzinho de Albuquerque não se preocuparam em esconder a base de desigualdade e racismo contida nos seus pontos de vista sobre a questão colonial. Mondlane, à semelhança de Amílcar Cabral, denuncia o conceito de civilizado, de assimilado e de indígena e como tal categorização exacerbou conflitos étnicos com base em desigualdades raciais.

“Malhas que os Impérios Tecem” ajudam a compreender que o que se passou em África, em 1961, foi muito mais que o acirramento das superpotências que se aproveitaram dos sonhos de independência, há uma longa história anticolonial que aqui se revela e esclarece que aquelas lutas de independência tinham o tempo longo a seu favor.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9334: Notas de leitura (321): Prática e Utensilagem Agrícolas na Guiné, por F. Rogado Quitino (Mário Beja Santos)

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