sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9407: Notas de leitura (327): Bordo de Ataque - Memórias de Uma Caderneta de Voo e um Contributo para a História, de José Krus Abecasis - II Volume (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Queridos amigos,
É de todos sabido como são raros os testemunhos dos oficiais da Força Aérea, no curso da guerra. Krus Abecasis, para minha surpresa, tem páginas de grande devoção à sua missão, combateu de dia e de noite, não ilude o grande número de tensões que viveu com outros camaradas, incluindo as forças paraquedistas. É incrível como estas centenas de páginas não aparecerem na bibliografia geral, ele que combateu nas três frentes. Quiçá por razões ideológicas, a narrativa perde por vezes a fluidez com enxertados, na cronologia, da situação internacional, faz perder o ritmo e implica a releitura. Há aqui páginas que constarão, estou seguro, nas antologias sobre a guerra, quando chegar a hora de alguém as publicar.

Um abraço do
Mário


Bordo de ataque: memórias de um oficial general da Força Aérea (2)*

Beja Santos

O Major-General José Krus Abecasis, recentemente falecido, publicou em meados dos anos 80 as suas memórias, cerca de 900 páginas em dois volumes, de um indesmentível interesse (Bordo de ataque, memórias de uma caderneta de voo e um contributo para a história, Coimbra Editora, 1985). Krus Abecasis teve funções relevantes como Comandante da Zona Aérea de Cabo-Verde e Guiné, foi piloto em operações decisivas, bateu-se pela melhoria do equipamento e pelas operações coordenadas. Não esconde a sua amargura e deceção face às outras armas, nomeadamente o Exército.

No apontamento anterior, foram referidas as suas memórias quanto a uma operação de bombardeamento da Ilha do Como, depois de se ter apurado que as forças do PAIGC estavam a criar uma situação preocupante às guarnições de Cachil, Cacine e Cameconde. A operação, a nível da Força Aérea, terá sido um sucesso, faltou-lhe a componente ocupação, que nunca veio a ocorrer. Depois de uma operação de bombardeamento ao Cantanhez, para destruir as peças antiaéreas, cumpria aos paraquedistas confirmarem os resultados. Foi o Capitão Tinoco de Faria quem comandou essa operação. Este capitão tinha-se revelado um chefe de invulgar envergadura, na operação “Relâmpago” coube-lhe o salvamento de um helicóptero acidentado na área de Jabadá, que ele executou com brilho. Foi ele que veio confirmar a operação resgate através da operação “Mercúrio”. Tinoco de Faria iria ser morto em combate na operação “Grifo” que comandou no corredor de Guileje. Krus Abecasis reconstitui todos esses lances dramáticos em que ”apesar da perda de sangue Tinoco de Faria reagiu com ânimo e gravemente atingido no tronco, ficou incapacitado. Vergado pelo sofrimento, recebe os primeiros-socorros do enfermeiro e diz aos seus homens que não se preocupem com ele e continuem o combate. Que transmitam a sua mulher que o seu último pensamento foi para ela”. Krus Abecasis propõe para militar tão exemplar a distinção da Torre e Espada a que não foi atendido.

Refletindo sobre o teatro de operações da Guiné em meados de 1966, refere os progressos do PAIGC a Oeste, Leste e Sul. Por essa altura, a guerrilha agravou-se na área Bula-Teixeira Pinto e Teixeira Pinto-Cacheu. Chegaram aviões Fiat que, com os Alouette III imprimiram um novo ritmo de apoio e fogo nas operações. Em Agosto, a guerrilha acentuou-se no Leste, à volta de Madina do Boé e de Bel, Krus Abecasis a tripular um Dakota, comandou a operação “Ribalta” para castigar severamente as forças do PAIGC na região, o que teve bons resultados conjunturais. Voltou a situação crítica em torno do Quitafine, Cacine e Cameconde voltaram a ser muito atacadas e a resposta foi a operação “Estoque”.

Os problemas de indisciplina sucederam-se, Krus Abecasis teve graves desentendimentos com as forças paraquedistas, a este nível. Como a situação do Sul exigia cada vez mais a intervenção das forças especiais, aprontou-se uma operação tida como muito intimidatória, a operação “Samurai” com bombardeamentos e atuação dos paraquedistas, o ponto de arranque seria Cufar. O oficial general escreve um texto demolidor acerca do comportamento dos oficiais da CCAÇ 763, em Novembro de 1966. A operação terá tido os seus resultados, com destruições, inimigos abatidos e neutralização das posições inimigas. Sempre crítico e exigente, ele escreve: “Se o inimigo fora duramente atingido, não restava dúvida que o seu corpo de batalha continuava intacto. Contrariamente ao que esperávamos, recolheu-se à área central, fazendo-se acompanhar das populações, que dominava. Os nossos grupos de combate encontraram o vácuo à sua frente, com exceção do contato na Ilha da Caiar”. O caminho estava aberto para exploração do sucesso, mas não houve operações de ocupação. Krus Abecasis ainda preparou a operação “Valquíria” para voltar a atacar o Cantanhez já que o inimigo se mostrava cada vez mais agressivo na navegação no rio Cumbijã, o que deixava Bedanda numa situação crítica de abastecimento, que envolveu vinte cinco missões aéreas incluindo bombardeamentos noturnos. E volta a escrever: “Tive ocasião de admirar a coragem com que os artilheiros das peças antiaéreas nos faziam frente, mantendo-se nas suas posições e disparando continuamente, quando os envolvíamos em metralha, indiferentes ao risco que corriam. Terminada a missão, fiquei a meditar, se entre combatentes portugueses poderíamos encontrar tal valentia. Acabei por me resignar com uma disposição nostálgica: afastar estes pensamentos para não cair no desespero que a realidade quotidiana da comissão na Guiné impunha inexoravelmente. O inimigo batia-se e morria no seu posto, fazendo-nos frente com bravura invejável e desconhecida da generalidade dos militares portugueses. Qual seria o futuro desta guerra, em que tal desequilíbrio psicológico dos combatentes era chocantemente em favor do inimigo”.

Sumariando o que se passou em 1966, o autor considera que operações como “Resgate”, “Estoque”, “Samurai” e “Valquíria” tinham contribuído para travar a progressão do PAIGC, houvera muitas baixas na Ilha do Como, mas estavam cada vez mais poderosos no Quitafine. Krus Abecasis ainda tentou preparar a operação “Apocalipse” para voltar a bombardear o Quitafine, a nível da reunião do Comando-Chefe houve opiniões desfavoráveis alegando-se que a importância do objetivo não compensava as perdas previsíveis. É por essa época, desiludido e contrariado, que Krus Abecasis suspira por ver o fim da sua comissão. Em Janeiro de 1967, regressa a Lisboa. Irá ser condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma, Arnaldo Schulz redigiu um louvor onde apreciava a obra por ele realizada: “Soubera ser um disciplinador e impulsionador do emprego dos meios aéreos”, “agia pelo exemplo, voava quer de dia quer de noite, por vezes em situações de risco manifesto” prestara serviços considerados relevantes e distintíssimos. Já como comandante da Base Aérea n.º 6, no Montijo, Krus Abecasis escreve a Schulz: “… Lamento sinceramente não ter-lhe conseguido ser de maior utilidade. Espero que lhe tenha sido manifesta a minha vontade constante de estruturar uma Força Aérea com um valor combativo próprio… Talvez eu tenha originado mal-entendidos de pessoas menos informadas quanto às minhas intenções… Maior teria sido a motivação se o ambiente geral refletisse aquele valor e grandeza que ansiosamente quis descortinar, mas sempre em vão. Talvez por isso nem sempre consegui dissimular a minha discordância de generosas apreciações feitas na presença de V.Exª”.

As memórias de Krus Abecasis sobre a Guiné não ficam por aqui. Voltará a visitar a Zona Aérea de Cabo-Verde e Guiné em 1969, então comandada por Diogo Neto. O que viu chocou-o; no tempo de Schulz os assuntos eram expostos pelos Comandantes dos três ramos das Forças Armadas, agora eram jovens oficiais que dialogavam descontraidamente com Spínola, apagando o papel dos oficiais dos três ramos das Forças Armadas; agora, Spínola decidia majestaticamente com os oficiais da sua corte e as críticas aos comandantes em voz alta tornara-se um lugar-comum durante as reuniões.

São memórias assombradas de um oficial general que nunca encobre, do princípio ao fim, como se sentiu comprometido com a causa da defesa ultramarina, profere, em tom por vezes cáustico, críticas aceradas aos seus pares, não esconde nomes nem se acoite em acusações vagas e genéricas.

Não dá para entender como é que estas memórias nunca aparecem mencionadas na bibliografia geral da Guerra Colonial.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9389: Notas de leitura (325): Bordo de Ataque - Memórias de Uma Caderneta de Voo e um Contributo para a História, de José Krus Abecasis (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9400: Notas de leitura (326): Anticolonialismo e Descolonização, por Luís Filipe de Oliveira e Castro (José Manuel Matos Dinis)

1 comentário:

simoes baltazar disse...

Boa tarde
Tenho esta obra, os dois volumes, na mesinha de cabeceira no meu quarto e quando por vezes me sinto desiludido com as coisas da vida quotidiana, agarro num deles e releio episódios que já conheço para me levantar o moral. A descrição da morte em combate do Cap. Tinoco de Faria é sublime. A evacuação de feridos, algumas dezenas, durante a noite, penso que num Dakota,provocados pelo rebentamento de um morteiro atirado pelo PAIGC para o interior de um recinto onde decorria um arraial, foi uma atitude de coragem e respeito pelos seus camaradas que se encontravam gravemente feridos ou já mortos, extraordinária e de excepcional devoção à causa. Fui controlador de tráfego aéreo em Monte Real, 66/67/68 até Fevereiro de 69. Ele tinha sido comandante da Base até outubro de 1964 e sei bem do alto conceito em que era tido. Conheci-o pessoalmente num dos dias da Base 4 de outubro de 1999 e vi como era ainda respeitado pelos militares na reforma que ali se encontravam a festejar, O Roda, O Mónica, o Godinho, o Lopes, o Neves... Um senhor que soube ser um militar de excelência, respeitado e respeitador... para quem o merecia. Que descanse em paz
SIMÕES BALTAZAR ex. Fu. Mil. OCART na B.A.5 Monte Real