domingo, 26 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 27 de Fevereiro de 2012:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Não tenho estado afastado do nosso blogue e muito menos dos amigos. Apenas menos activo.

Junto mais uma pequena história da minha passagem pela Mata dos Madeiros. Como sempre fica ao teu dispor a sua (ou não) publicação. Como as anteriores é uma história simples. Certamente que trará à memória de alguns dos nossos camaradas situações em tudo muito semelhantes.

Para ti e para os nossos camaradas um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (30)

Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

Os dias que se seguiram à nossa chegada a Teixeira Pinto foram aproveitados por nós, cada um à sua maneira, para aliviar a alta pressão psicológica a que tínhamos estado sujeitos, nos últimos meses, na Mata dos Madeiros. O descanso, as incursões pela vila e os seus locais de diversão fizeram parte desse alívio bem merecido.

Como gostava de trabalhar na secretaria da Companhia, era ali que passava muito do meu tempo. Também tive a oportunidade de assistir a uma missa dominical e a um casamento entre gente da mesma etnia Manjaca. Destas coisas fiz referência muito superficial numa carta que então escrevi à minha madrinha de guerra.

Hoje, a esta distância no tempo, o Coro da Capela formado por jovens em idade escolar, constitui a imagem que ainda retenho da missa que me foi possível atender, no dia 27 de Junho de 1971, na Vila de Teixeira Pinto. Do casamento, lembro-me que foi feito durante a noite. A noiva, natural da zona do Pelundo e acompanhada de muitos familiares, veio de urbana buscar o noivo que morava em Teixeira Pinto. No regresso juntou-se o batuque. Na verdade, é muito pouco o que recordo e sinto pena de não ter escrito mais sobre esse casamento.

Outro acontecimento de extrema relevância para nós foi a saída de algumas tropas de Teixeira Pinto, que nos permitiu deixar as tendas de campanha e ocupar as instalações muito razoáveis do quartel de Teixeira Pinto.
Foi nesse ambiente, não constituindo qualquer surpresa para nós, que fomos informados de que a nossa Zona de Intervenção continuaria a ser a Mata dos Madeiros. O facto dos nossos camaradas das Transmissões continuarem ali instalados deixava antever isso mesmo. A missão é que seria diferente, bem mais perigosa.
Até ali a protecção do acampamento era feita à distância por dois grupos de combate da CCaç 3327 e ainda de uma outra força de intervenção do CAOP1. A defesa imediata do acampamento era também assegurada pela nossa Companhia. Com a nova estratégia as forças de defesa afastada foram eliminadas e passámos apenas à defesa imediata do acampamento, cujas condições de defesa eram exíguas. As valas eram extremamente abertas e os obuses do Bachile não tinham o alcance suficiente para nos ajudar em caso de flagelação. Contávamos com o nosso Morteiro 107.

Em contrapartida, o moral dos nossos soldados era bastante alto, pois sabiam que o dia 25 de Junho seria o do adeus definitivo da CCaç 3327 à Mata dos Madeiros. Pelo menos assim pensávamos.

No dia 22 de Junho de 1971 escrevi assim à minha madrinha de guerra:

“O tempo que disponho (para escrever) é bastante escasso. Durante o dia estive a trabalhar na Secretaria da Companhia e agora a noite já vai adiantada. Amanhã, pelas 6:30 horas da manhã, vou para o mato e tenho que descansar. Irei passar 24 horas no acampamento onde estivemos. Contudo, deve ser a última vez.” 

Certamente que me referia ao meu grupo de combate.

Aspecto da Mata dos Madeiros 
Foto de José Câmara

No dia 23 de Junho de 1971, estávamos nós no acampamento quando vimos passar alguns bombardeiros em direcção a Ponta Costa, área do Cacheu. Foram lá deixar naquela zona a sua carga mortífera. As explosões eram enormes. O fumo e o pó subiam nos ares, a terra estremecia debaixo dos nossos pés e os corações tremiam perante tamanha bestialidade. Pessoalmente, pela primeira vez assistia a uma acção directa da nossa Força Aérea.

Os bombardeamentos, a meia dúzia de quilómetros do nosso acampamento, pareceram-nos normal naquela zona. Foram as repetições durante o dia que nos chamaram a atenção. Era evidente que aquilo não era mais que o pronúncio de uma grande operação militar e a CCaç 3327 iria estar de, algum modo, envolvida nela.

Estava explicada a razão do nosso posto de transmissões manter-se em actividade no acampamento, enquanto o Morteiro 107 descansava preguiçosamente no seu espaldar. Aos poucos também aprendíamos a ler os sinais dos homens e da guerra. Da experiência se fazia a velhice.

Na manhã do dia 24 de Junho, quando fomos substituídos no acampamento e regressámos a Teixeira Pinto, tínhamos a certeza de que voltaríamos a ouvir as vozes e os ruídos que aprendemos a distinguir na Mata dos Madeiros.

Só faltava mesmo saber como, onde e quando.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo José da Câmara

Li num comentário teu em outro post que foste bafejado pela sorte e pelos deuses numa questão de minas... ainda bem, meu amigo, congratulo-me com isso!
Quanto a estas tuas recordações, que vão oscilando entre a Mata dos Madeiros, o Palácio do Governador e outros locais, acabam sempre por nos dar 'outros' olhares, outras paisagens, que muito nos enriquecem.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Camarigo Zé Câmara

Já tinha saudades das tuas "memórias".
Obrigaste-me a regressar aos poucos apontamentos para saber o que faria eu por esses dias, lá no "bem-bom" do CAOP 1.

Enquanto em 23JUN "amargávas" na "Mata dos Madeiros" e sentias os bombardeamentos lá para os lados de Ponta Costa, regressando na manhã de 24, "eles", em 24 (só não posso agora precisar se na noite de 23 para 24 ou 24 para 25), foram fazer "uma colecta e roubo em Binhante (Tabanca entre o Rio Costa e a estrada TPinto-Pelundo, a cerca de 4-5km de TPinto, ver carta de TPinto), incendiando 14 moranças, fizeram grandes estragos e sevícias na POP, levando alguns como carregadores".
Era o chamado "jogo do gato e do rato"!
A 25 lá fui 2 vezes a essa Tabanca, tendo vindo levantar 4 sacos de arroz na "filial" da casa Gouveia (em nome do CAOP), para minorar os estragos.
Já não recordo se cheguei a enviar esta notícia para o Blogue juntamente com uma foto relativa a esse acontecimento em Binhante.

Como bom católico que és, assististe à missa dominical do dia 27 (sim era domingo), enquanto eu, já então descrente, nem sei onde ficaria a igreja.
Mas nesse domingo tenho uma nota que me deixa, agora a esta distância no tempo, perplexo. "Almoço na A. A."?!?!
Já não sei decifrar certos "hieróglifos" que escrevia!!!

Abraços
Jorge Picado

Luis Faria disse...

Amigo José Camara

Não sei por que razão,só agora dou com este teu título.
Está explicado porque o nosso caminho não se encontrou!Fui para T Pinto e logo de seguida entrei de férias que gozei no "Puto" ,só regressando em Julho,depois de já terdes saído de lá.
Para onde foi a tua Companhia,o teu Batalhão? Creio que uma das Companhias esteve por Bula?
Podes esclarecer-me?
Abraço
Luis faria