domingo, 18 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo

1. Segundo capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:


O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (2)

DE BISSAU PARA MANSAMBO

Lá voltei de novo ao aeroporto de Bissalanca, só que desta vez a viagem era mais curta, apenas até Bafatá. O avião que nos levou era um velho Dakota com bancos de madeira como se fosse uma carroça, à chegada estavam viaturas militares que nos levaram até Bambadinca, onde se encontrava a CCS do meu batalhão, o "3873", depois mais uma mudança de viatura, desta vez até Mansambo, onde já se encontrava a minha companhia, a "3493".

À chegada, para além da nossa Companhia estava a que íamos render. Se a confusão era grande, para mim era ainda maior, pois não conhecia lá ninguém, ao contrário dos meus futuros camaradas que estavam juntos há já alguns meses. A única coisa boa que me aconteceu nesse dia, foi receber a correspondência que entretanto me tinha sido enviada para o SPM, Serviço Postal Militar, que já na metrópole nos tinha sido distribuído.

Mansambo City

Foto: © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados

Estivemos alguns dias com os “velhinhos” para preparar a rendição, ao fim dos quais chegou a vez de assumirmos os cargos que até ali tinham sido deles. Para mim não foi nada fácil, ver aqueles que partiam, e pensar no tempo que ainda faltava para que nos acontecesse o mesmo, se é que viria a acontecer…

Os primeiros dias foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho" a transportar água para o aquartelamento. Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha Especialidade de Condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia, eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

Estávamos ainda há poucos meses em Mansambo, fomos fazer segurança a um dos “maiores” que naquele dia ia passar pelo sector leste, a nossa missão foi andar por umas tabancas, para nós desconhecidas, algures entre Bafatá e Nova Lamego. Chegámos já noite à tabanca onde fomos dormir… se no inicio muitas eram as coisas difíceis de suportar, a sede para a maioria de nós era a maior. Quando saíamos do aquartelamento, o cantil ia sempre cheio, mas não era necessário muito tempo para que ficasse vazio. 

Ao chegarmos ao sitio onde passamos a noite já ninguém tinha água, nem sabíamos onde a podíamos encontrar, valeu-nos o chefe da tabanca, que conseguiu um alguidar grande cheio de água onde quem quisesse tinha que beber lá dentro, parecíamos uma manada de animais com a cabeça dentro do alguidar, mas mesmo assim foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido naquele momento.

Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de Fevereiro de 1972 a fins de Março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o Furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

Fizemos alguns segundos de silêncio, e logo ouvimos mais três saídas, estávamos dentro do buraco mas este era demasiado grande, e como tal menos protegidos, saímos em direcção ao abrigo do nosso morteiro 81, que ficava ali próximo, que logo respondeu ao fogo inimigo. Eu fui o ultimo a sair do sitio onde nos encontrávamos, pelo tempo passado depois de termos ouvido a primeira saída, tive um pressentimento que não teria tempo de chegar ao abrigo, voltei para traz e deitei-me dentro do buraco de onde estávamos a tirar a terra, talvez tenha sido essa decisão que me permite estar agora aqui a escrever; uma das primeiras granada a rebentar, foi precisamente no local que nós tínhamos de passar, e eu era o ultimo, provavelmente não teria tempo para alcançar o abrigo, o espaldão do morteiro. Acabado o bombardeamento, ficou apenas o susto, pois não provocou quaisquer danos, a não ser os psicológicos. Quando as coisas acalmaram e fomos ver o local dos rebentamento de algumas granadas que caíram dentro do arame, ficamos assustados com os cortes feitos no chão pelos estilhaços.

No dia seguinte na rádio do PAIGC divulgaram a noticia da flagelação, informando que para além de vários danos provocados nos terem terem destruído um abrigo… Depois desse ataque não mais nos foram visitar, a não ser colocar as terríveis minas… os atiradores faziam saídas apeadas, patrulhamentos, quase todos os dias, nós os condutores, só saíamos quando o serviço de condutor assim o exigia. Para além do nosso serviço de Especialidade, no aquartelamento fazíamos também reforços durante a noite. Até ao fim de Março de 1973, foi assim a minha vida.

Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Serifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Serifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Serifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta.

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. primeiro poste de 15 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

8 comentários:

Anónimo disse...

Caro António,

Se me permites...

"O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de Fevereiro de 1972 a fins de Março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné."

Mansambo era um quartel a que poderíamos dizer que estava situado no coração da Guiné, mas afirmas que nem era considerado muito mau.

O que te leva (levou) a fazer a afirmação comparada com o que se passava no resto da Guiné?

Sou teu contemporâneo no período de 1972. Poderia fazer a mesma afirmação em relação ao Destacamento onde me encontrava nesse tempo. E mesmo em toda a minha comissão referenciando todos os sítios por onde passei e foram muitos.

Se compreendi bem o teu artigo, não sofreram nenhuma emboscada nesse período em Mansambo. Já agora, poderias informar quando aconteceu a flagelação e a intensidade da mesma?

Cumprimentos,

José Câmara

Manuel Aldeias disse...

Camarada António, continuo com entusiasmo e expectativa a ler os teus relatos do tempo da Guiné.
Admiro o teu poder narrativo.
Um abç
Manuel Aldeias

Hélder Valério disse...

Caro António Ferreira

Fizeste bem em 'passar a escrito' as tuas recordações.
Deste modo, é possível transmitir os medos, as angústias, as alegrias, as tristezas, as raivas, etc., que te assaltaram e que, no fundo, não foram muito diferentes para a maioria de nós.
Dizes, e bem, que, para ti, como condutor, o maior receio eram as minas anti-carro mas, repara, acabaste de descrever que numa flagelação com morteiro foi uma boa decisão por ti tomada que pode ter feito a diferença...

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Manuel Aldeias,
Curiosidade minha.
O 1°. Sargento da minha companhia, a CCaç 3327, tinha o mesmo nome que tu. Alentejano, evacuado por doença nos primeiros meses da nossa comissão e já falecido.
Pelos nomes, alguma relação familiar?
José Câmara

António Duarte disse...

Caro António Ferreira, obrigado pelos teus escritos espero que vás em frente. O 3º soldado da nossa companhia que perdeu um pé numa mina, foi o Ribeiro do 3º pelotão.
1 abraço e fico a aguardar os próximos escritos.
António Duarte - 3º pelotão da Cart 3493 e posteriormente Ccaç 12

Cherno Baldé disse...

Caro Antonio,

A descricao que fazes da tua estadia na Guiné é muito interessante e tocou-me particularmente porque, também, fui "Jubi" e "faxina" de condutores de um aquartelamento de metropolitanos em Fajonquito (1969-74), regiao de Bafata como o foi o teu amigo Serifo.

No entanto, tenho duas observacoes a fazer do actual Poste e que, com alguma frequencia, tenho lido em varios escritos de ex-combatentes:

Primeiro, referindo-se a moeda local, falas de "Pesos". Na verdade, a moeda que circulava na época colonial, até 1974 era "escudo" e nao "Peso", que foi instituido em meados de 1975/76depois da independencia.

Em segundo lugar, falas de uma menina que alegadamente "estaria vendida" provavelmente para casamento. Esta interpretacao, muito frequente entre os metropolitanos, resulta de uma leitura muito errada dos nossos usos e costumes, enfim da pratica relacionada com os casamentos arranjados e muitas vezes celebrados sem consulta e acordo prévio dos principais interessados.

Este tema é de forro cultural e antropologico do qual poucos de nos temos a preparacao necessaria para sua correcta compreensao e interpretacao, pelo que devemos ter os cuidados necessarios no seu tratamento para nao ofender aos outros de uma forma gratuita e desnecessaria.

Um casamento, seja ele "civilizado" ou "primitivo" deve ser visto, sempre, como um contrato social entre partes cujas clausulas podem ser diferentes e porventura, mais ou menos (in)justas, mais ou menos liberais. Mas nunca é um negocio de compra e venda como, erradamente, se pode supor pelas primeiras aparencias de superficie. Se isto fosse verdadeiro, entao nao haveria lugar para os divorcios que, também, sao uma realidade palpavel e cada vez mais frequente, ao contrario do casamento cristao e "civilizado" em que os homens nao sao chamados a intervir.

Um abraco de encorajamento,

Cherno Baldé

Carlos Pinheiro disse...

Caro Cherno
Só um esclarecimento. De facto naquele tempo a moeda era o Escudo. Mas na giria, não sei porquê, só se falava de pesos.
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

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