sábado, 24 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas

1. Em mensagem do dia 19 de Março de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:

Outras memórias da minha guerra (15)

Promessas

Aproxima-se o fim do ano de 1966. Já é noite escura. Ela saiu da fábrica de papel e em passadas fortes vai directamente para casa. Tem 44 anos. Ficou viúva há sete, com 6 filhos, entre 1 e 15 anos. Agora, estão dois na escola primária, dois a trabalhar nas fábricas de cortiça (a Emília de 13 anos e o Francisco de 16) e dois estão na tropa. Mal entra em casa, vê que o Mário está a tirar dúvidas de tabuada à irmã mais nova.

- Vieste cedo, filho! Mandaram-te embora? – perguntou a “Ti Ana do Rusga” ao filho, que está a cumprir o serviço militar. E como ele demorou a responder-lhe, acrescentou:
- És órfão de pai, tens quase ano e meio de tropa e como o teu irmão já está em Angola há uns meses, é justo que te deixem vir para casa, ajudar os teus irmãos.
- Mãe, quantas vezes já lhe disse que vivemos numa ditadura e que a justiça deles não é igual à nossa? – respondeu o Mário.

A Ti Ana estremeceu, olhou preocupada a porta ainda aberta e lamentou-se:
- Lá estás tu, filho, com essas coisas de hereges e do comunismo na cabeça. A Sra Dona Julinha, está sempre a dizer-me que devias largar os livros e que não podes andar com os filhos do Dr. Baptista, porque esses qualquer dia vão morrer na cadeia, como o Ferreira Soares*. Sabes bem que tem de haver ricos e pobres e que se Deus Nosso Senhor nos fez pobres é porque é essa a sua vontade.
- Pois é, mãe, os ricos é que lhes metem essas coisas na cabeça e o nosso padre Inácio também ajuda. – respondeu o filho, que continuou:
- A mãe tem trabalhado sempre e nós, saímos da escola e vamos logo trabalhar. Andamos nas fábricas a fugir dos fiscais. Temos que suportar tudo por uns tostõezitos, porque quem for despedido, não é aceite pelos outros patrões. Temos vivido miseravelmente e a mãe não tem onde cair morta.

E, a seguir, interpela:
- Sabe qual foi a primeira ajuda do Salazar? Foi tirar-nos a Assistência Social e o direito ao abono de família, quando o pai morreu, precisamente na altura que mais precisávamos. Ninguém nos ajuda e ainda nos perseguem no trabalho. Há ricos que não vão para a guerra e nós, órfãos e necessitados, vamo-nos lá juntar os dois, que poderiam ajudar a família. Olhe, mãe, vim mais cedo porque vou mudar para o quartel de Gaia. E de lá seguiremos para a Guiné.

A Ti Ana começou a chorar e a lamentar-se:
- Ai, Nossa Senhora de Fátima que tens de me ajudar! Não me abandones! Cuida dos meus filhos e não os deixes ficar por lá.

E, de repente, reage a gritar:
- Oh meu Deus, que mal eu fiz para me castigares tanto? Eu não te peço para mim! Eu não rezo para ser santa! O que mais te peço é que me ajudes a criar os meus filhos! Tem dó desta desgraçada!

E, voltando-se para o filho, em tom mais sereno, continuou:
- Oh rapaz, tem temor a Deus e tem muito cuidado com o que dizes. Deus não gosta dessas heresias e pode castigar-nos. Olha que não podemos viver sem o respeito pelas autoridades e patrões e a bênção de Deus.
- Mãe, - respondeu o filho - essa gente trata-nos como escravos e ainda temos que lhes agradecer. Eu não posso aceitar isso, toda a vida. E Deus, se existisse, como exemplo supremo de bondade e com poder infinito, não deixaria haver tanta injustiça. Ele não deixaria sofrer e morrer tantos inocentes. E aproveito para lhe dizer já que não vale a pena fazer promessas a Fátima ou a outros santos, por minha causa. Eu, se escapar, não vou cumprir nada. Não acredito nesses “negócios”.

Estávamos na Quaresma de 1967. O Mário saiu de casa, a meio da manhã, sem se despedir. Passou pelo cemitério e foi contemplar a foto do pai, aposta numa placa de mármore, sempre acompanhada por lindas flores naturais. Ele não sabia se regressava. Ao recordar o pai, deixou cair algumas lágrimas de saudade e balbuciou:
- Pai, vou para a guerra. Sabia que eu era patriota mas agora não sinto vontade nenhuma de combater quem não me fez mal. Se tiver que matar é para não morrer. Prometo que tudo farei para regressar. O que mais me preocupa é a nossa família que continua destroçada. Vivemos consigo grandes privações mas após a sua morte, as coisas pioraram. Sentimos muito a sua falta.

As lágrimas redobravam, acusando, agora, a manifesta incapacidade e a revolta que sentia, pensando na má sorte que o perseguia. Um turbilhão de questões saltava na sua cabeça:
- Pai, porque quis tantos filhos? Porque acreditou nas promessas do Salazar? Não vê a situação em que ficámos?

As respostas eram evidentes e o Mário parecia estar a ouvi-las:
- Oh rapaz, os filhos são a bênção de Deus. A tua mãe dizia que era pecado evitá-los. Temos que ser tementes a Deus. Mas, não gostas dos teus irmãos? Não os abandones, especialmente os mais novos. - Olha que eu não gostava do Salazar. Morri cedo devido à fome e miséria que passei, em miúdo. Sabes bem disso.

Na Guiné, o Mário esteve muitas vezes debaixo de fogo. E, tal como os outros militares, passava horas e horas em silêncio durante a progressão na mata. Ali, apesar dos momentos intermináveis de tensão, tudo que era afectivamente mais próximo, ocupava-lhe desordenadamente o cérebro. E a questão principal ressaltava a cada momento: será que voltarei a vê-los?

Outras vezes, eram as noites mal dormidas, por tanto pensar ou por tanto e tão grande pesadelo.
Morreram-lhe vários militares amigos e companheiros. Um deles, nos seus próprios braços. Porém, por ele, ninguém sabia o que por lá se passava.
No aquartelamento, sempre se preocupava em escrever para casa e para os amigos, enviando fotografias, preferencialmente à civil, e contando sempre que estava a passar umas ricas férias.


Quando se aproximou o 13 de Maio de 1969, já os dois filhos mais velhos da Ti Ana haviam chegado sãos e salvos. Agora era preciso pagar as promessas. A Ti Ana vivia dias felizes, de bem com Deus e com todos os santos, a quem prometera sacrifícios até ao fim da sua vida. De sua casa partiram em conjunto mais de 20 pessoas, com destino a Fátima, a pé. Entre elas, seguiam vários jovens vestidos de camuflado como o faziam lá na guerra, nas Operações Militares. Um deles, estava numa cadeira de rodas. O Mário, que cumpria a sua promessa pela negativa, abeirou-se do rapaz e perguntou:
- Também vais até Fátima?

Ele respondeu:
- Sim, com ajuda da malta e da N.ª S.ª de Fátima que, graças a ela, aqui estou salvo, lá chegarei. E tu, não vais?
- Eu, não. Não fiz promessas e tive sorte. Pelo contrário, tive amigos que lá ficaram e tinham prometido ir a Fátima, Arcozelo, Peneda e Sameiro.
- Pois, tiveste sorte, é porque alguém pediu muito por ti. – respondeu o rapaz

Vinte e cinco anos depois, a Ti Ana, já com uns 70 e tal anos, deixou de poder cumprir a promessa, indo a pé. Confessou a sua impossibilidade ao padre das Missões, onde passou a colaborar, e “renegociou” as suas Promessas: passaria a organizar 2 excursões anuais, em autocarro, mobilizando mais de meia centena de seguidores de N.ª S.ª de Fátima.

Com a mãe a aproximar-se dos 90 anos, o Mário resolveu dar-lhe a alegria de ir a Fátima numa dessas excursões, que era, agora, ajudada na organização, pela filha mais nova. Ele gostou imenso daquele ambiente popular e alegre e prometeu ir lá mais vezes.

Quando, estavam em Fátima, o Armindo interpelou a Ti Ana, na frente do Mário:
- Como é que conseguiu que este herege viesse a Fátima?
- Olha, menino, quanto mais velha, mais feliz me sinto. Hoje estou a cumprir a minha promessa mais difícil. Há mais de 40 anos que a estava a dever à N.ª S.ª de Fátima!

Silva da Cart 1689

(*) Sobre o Dr. Carlos Ferreira Soares vd. Blogues:
Histórias da Minha Terra e Sobre o Risco

- Foto do Santuário de Fátima retirada da página Farol de Luz, com a devida vénia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9567: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): O Tininho da feira

1 comentário:

Luis Faria disse...

Ferreira da Silva

Curiosa e muitas vezes verdadeira esta tua estória, que reflecte bem a força da faceta religiosa do nosso Povo à altura,em especial das Mães que viam os seus filhos partir para a guerra.
É uma bonita pincelada do que era uma forte Fé enraízada no Portugal mais profundo.
Um abraço
Luis Faria