domingo, 25 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9655: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (21): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte III)



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Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > Máquinas da TECNIL operando na construção da estrada Bambadinca-Xime. Numa delas (foto de cima), lê-se: "Deus Te Guie BX 1970"...Na última foto, forças da CCS do BART 2917 montando segurança aos trabalhos de construção da estrada.


Fotos: © Benjamim Durães (2010) / Legendas: L.G. Todos os direitos reservados




1. Mensagem de António Rosinha, com data de 6 do corrente, enviando-nos a III (e última) parte de um texto sobre a ascensão e queda da TECNIL, empresa de obras públicas portuguesa que operou na Guiné-Bissau, antes e depois da independência:


De: António Rosinha


Data: 6 de Março de 2012 20:57


Assunto: Como desparece em Bissau a empresa TECNIL e é substituida pela Soares da Costa


Um dos últimos trabalhos de que fui incumbido pelos meus patrões da TECNIL, foi uma «ordem» de Luís Cabral.

Este homem era muito dinâmico em questão de investimento em obras públicas e angariação dos respectivos financiamentos. E denotava gosto por tal actividade e tinha muitos engenheiros nacionais e cooperantes a mexer em tudo.


Luís Cabral pretendia reformular uma residência bastante moderna que foi propriedade de um antigo cólon que eu não conheci, para sua residência, penso eu. Essa residência ficava a traz do gabinete do primeiro ministro, e tinha uma portaria que era preciso adaptar, na cabeça de Luís Cabral, para receber o Volvo presidencial, bem junto à porta da residência.


Só que havia um pedaço de jardim e duas colunas à entrada da residência que era preciso derrubar construir noutra disposição, e isso Luís Cabral não queria.

E, agora vou falar em nomes de gente muito simpática e não quero de maneira nenhuma fazer «politiquice» nem com as pessoas nem com a atitude das mesmas nem do momento.

O ministro das Obras Públicas era Tino Lima Gomes que era arquitecto e ainda chegou a dar uma vista de olhos na portaria mas sem qualquer solução.

Mas a esposa dele,  a camarada Milanka, de nacionalidade jugoslava, arquitecta nas Obras Públicas é que foi encarregue de descalçar a bota, e eu no campo executar o impossível. Só que a camarada Milanka não tinha coragem de dizer ao presidente que era impossível executar como ele queria, e eu descarreguei o meu fardo para o meu patrão Ramiro Sobral que se encontrava em Bissau. Onde ia mês sim,  mês não.

E o velho de 75 anos, e muitos anos de África, habituado a resolver casos bicudos, analisou e solucionou:
- Senhora Dona Millanka, (toda a gente dizia camarada Milanka), sabe porque ando nesta vida com esta saúde aos 75 anos? Porque à porta da minha casa em Viseu tem 3 degraus. E subir e descer esses 3 degraus dão-me imensa saúde. Convença o senhor presidente que com 3 degraus resolve o problema e dá-lhe imensa saúde para daqui a muitos anos continuar com o meu dinamismo.

Passados uns instantes já só comigo no automóvel, Ramiro Sobral como que a falar para os próprios botões, previa:
- Com degraus ou sem degraus não vais envelhecer aqui, não.


Talvez uns 15 dias depois, dá-se o golpe a 14 de Novembro de 80 que derruba Luís Cabral.


Visto hoje a 32 anos de distância, sem dúvida que Luís Cabral que fazia muita falta à Guiné, para mim era uma pessoa muito honesta, mas esqueceu-se da política, do povo e dos «inimigos» que arranjou na Guiné, e foi esquecido e isolado pelos «amigos» da Caboverde, e o meu patrão já via isso tudo.

Os guineenses do partido e os congéneres caboverdeanos já tinham abandonado o «trilho» de Luís Cabral há muito tempo, e quando apareceu o precipício não estava lá ninguém para lhe dar a mão e quando chegou lá abaixo era o vazio. Quem estava em Bissau relembrou-se muito do que aconteceu a Amílcar, e ouvia-se muito " só agora é que somos independentes".

Claro que Ramiro Sobral, digo agora a esta distância, já estava também a ver o fim dele próprio naquela terra. E com o fim de Luís Cabral piorava tudo, como se viu até hoje.

Só que com Luís Cabral, havia as chamadas "engenharias financeiras" e os dinheiros iam aparecendo ou com atraso ou parcialmente. Com a fuga de quem sabia essas contabilidades, aí foi mesmo o fim de tudo.

E a TECNIL acaba passados mais ou menos meio ano com todos os bens, máquinas, armazéns, residência em tribunal à ordem dos Tribunais e da vontade da polícia, do ministro das Obras Públicas e dos humores dos engenheiros directores das Obras Públicas, que já nenhum era caboverdeano, os novos ninguém tinha compromisso em respeitar nada.

A TECNIL tinha recentemente como director da empresa um engenheiro Máximo que havia sido capitão de engenharia pouco antes da independência. Esse engenheiro Máximo teve que sair na TAP, clandestinamente, porque já tinha a residência vigiada e seria preso em qualquer altura porque não havia dinheiro para pagar nem salários do pessoal e naquele «comunismo» não havia advogados, e corria mesmo perigo até podiam pegar por ter sido militar tuga.

Estas peripécias já me são contadas cá pois vou a tribunal de trabalho como testemunha do engenheiro Máximo para a TECNIL lhe pagar o que lhe ficou a dever.

Mais tarde há negociações entre o Governo de Nino e a Soares da Costa, que estava como sócio no Liceu com a TECNIL, e esta empresa do Porto, já com gente «actualizada» para a nova realidade da vida, recuperou e lutou por substituir a TECNIL e parece que conseguiu alguns objectivos.

Como não tinha rotina colonial a Soares da Costa recorreu a alguns dos que já tínhamos andado por lá pelas Áfricas desde Moçambique a São Tomé, engenheiros, chefes de mecânica, encarregados de obra e de laboratórios, era uma equipa de "retornados".

Atenção,  que grande parte dos engenheiro portugueses que trabalhavam e eram directores de obra dessas empresas que iam para o ultramar, a seguir às independências, eram em maioria ex-estudantes da Casa do Império que não fugiram para Paris nos anos 60.
Trabalhei com dois da terra do Pepetela que eram relacionados com dirigentes do PAIGC, o que lhe valeu algumas vantagens em concursos de obras.

Para terminar este" fim de uma empresa colonial", tenho a dizer que "paguei para ver". E o próprio velho Ramiro Sobral, bem lá no fundo,  também pagou para ver. Sempre tive curiosidade o que é que os "tais ex-estudantes da Casa do Império" iam conseguir realizar com as independências. 

Só me foi possível satisfazer a curiosidade suportando o "pesadelo TECNIL". Conheci e trabalhei com alguns que não foram para Paris e para a luta e depois conheci ou trabalhei com alguns que foram para a luta. Como alguns desses estudantes ou foram filhos de Chefes de Posto ou de velhos comerciantes ou já estava destribalizados por missionários cristãos, ou filhos de funcionários públicos, queria ver o grau de relacionamento com os povos após a independência.

Tal como se previa por quem conhecia um pouco da realidade africana em geral, qualquer chefe de posto colonial sem armas na mão, conseguia mais apoio popular e unanimidade dos diversos povos, do que Luís Cabral conseguiu. O inicial entusiasmo pela juventude e o fim da guerra era natural, assim como cá em Portugal com o 25 de Abril; assim como o entusiasmo com o derrube de Luís Cabral e um certo entusiasmo exagerado de alguns, até parecia trazer expectativa.

Só que o resultado é sempre negativo porque não é assente em bases definidas, eram apenas facções do mesmo caldeirão partidário a sobreporem-se.

A guerra que discutimos dos 13 anos da nossa guerra do Ultramar é apenas um pequeníssimo flash do péssimo que se passa em África desde 1960 devidamente apoiado pelas Nações Unidas e pela Europa democrática em particular.

E paguei para ver: a Tecnil não cumpriu comigo durante 1 ano, estive em bichas de pão com gorgulho, substitui com vantagem as batatas à mesa por inhame, vi formas de racionamento de sabão, que já não existia, e vi gente que não podia chorar em público os familiares assassinados.

E isto tudo testemunhado e apoiado pelas Nações Unidas e por toda a Europa, e assistido por mim que também ficava calado.

E como ao fim de 40 anos, está em curso um complexo processo de apagamento, ou diluição, ou esbatimento, de certas tribos nalguns países, podemos imaginar as coisas que a Europa e as Nações Unidas são capazes de promover em África, com assentimento dos seus dirigentes.

Hoje, sinto que pertenci a uma geração de portugueses que durante 13 anos Portugal teve uma opinião própria, contrária à maioria da Europa que hoje pouca opinião tem. Será que as pessoas de agora acreditam que tenha sido verdade? Opinião própria emitida em Plenas Nações Unidas, mensalmente em Nova Iorque ?

Para terminar, digo que conheci "um velho de Viseu" que não pensava como os "velhos do Restelo".


Um abraço
António Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9561: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (20): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte II) 

9 comentários:

Anónimo disse...

Mais Velho

O pao com gorgulho, as filas (bichas)para tudo quanto estivesse a venda..metia-se na bicha primeiro, para depois se indagar, o que estaria a venda..o importante era nao regressar pra casa, com as maos a abanar... enfim, estes foram os meus ultimos anos da Guine..isto antes de partir...para bem longe !!!

Facto curioso..Milanca...a arquitecta servia-croata...Gostei na altura do nome...achei-o original..e hoje a minha terceira filha responde pelo nome de Milanca...Uma promesa da
adolescencia que cumpri !!

Curiosamente por vezes e ela a perguntar se "Milanca" seria um nome africano...da Guine...

Mantenhas

Nelson Herbert

Torcato Mendonca disse...

Meu caro Antº Rosinha

É bom, muito bom mesmo, que se saiba e fique escrito o que se passou.

Depois cada um é livre na análise.

Mando-te um abração forte e faço votos, como já tenho dito anteriormente, que escrevas essas vivências.

Ab T.

Antº Rosinha disse...

Pois é Nelson, se a vida tivesse sido outra, talvez a tua filha Milanca pudesse convidar para madrinha aquela arquitecta do Leste.

Mas como trabalhou aquela mulher naquela terra!

Embora as pessoas do leste não olhassem direito para os tugas, acabei por trabalhar com ela e mais duas patricias dela mais tarde, nas O.P. com bom relacionamento.

O marido da Milanca antigo furriel da FAP, que fugiu com uma avioneta para Conakry, da minha idade, acreditava incondicionalmente no projecto do PAIGC de Luís Cabral, mas continuou sempre com Nino.

Sabes que o Tino morreu em acidente de caça há uns anos atrás.

Nelson, como tu, vi tantos guineenses desistirem, principalmente em 1980 e depois em 1998, que vai ser difícil repôr toda essa "purga" de gente capaz.

Já leste umas declarações de Pedro Pires, o antigo "estudante da casa do império" que recentemente defendeu que para os africanos se entenderem é melhor uma boa ditadura?

Nelson, eu hoje não tenho dúvidas que Pedro Pires, Amilcar, e os angolanos como Chipenda do MPLA e Frelimo, todos os que se chamavam "estudantes da casa do império", mas alguns eram simultâneamente atletas dos Benficas etc. pensavam que aquela vida aparentemente fácil, simples, e mesmo próspera da governação colonial dos anos 60, se fosse com eles a governar, os povos iam proporcionar uma governação muito superior e mais tranquila e próspera.

Mas foi tudo na hora errada! Mas eram os ventos da história.

Um abraço

Cherno Baldé disse...

Amigo Rosinha,

Bonita esta tua prosa, gostei muito. Nao concordo em grande parte, mas tem sabedoria de mais velho. Alias, referindo-se a sabedoria e ao bom senso, os africanos tem um proverbio que diz assim: Aquilo que uma crianca consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilao, o velho ja o sabia, sentado em baixo da arvore a fumar o seu cachimbo. Isto sobre o velho "colon" de Viseu.

Ainda nem toda a poeira das independencias se assentou completamente, mas esta reflexao ja comecou a ser feita, ha alguns anos, por certos segmentos da nossa sociedade, esfarapada por purgas, guerras e razias internas. Embora nao falte quem acredite na ajuda de maozinhas "invisiveis" externas que nao sao, necessariamente, do leste.

Rosinha, eu sobrevivi, também, com as bichas de pao. A minha padaria (de Mamadu Djabi) situava-se no "Cu"Pilum de Baixo. E a revolta das populacoes, também, tinha a ver com o facto de que se viam poucos "Burmedjos", ler caboverdianos, naquelas filas de miseraveis.

A ditadura a que se referia o Pedro Pires, na minha opiniao, deve ser visto no sentido de um Estado forte que seja capaz de impor a sua visao e principios, de "im"por uma ordem economica e social.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Cherno, jamais o meu ponto de vista pode ser o teu ponto de vista.

Mas garanto-te que o meu ponto de vista e o teu ponto de vista, não é o ponto de vista de Amilcar Cabral e de Pedro Pires, de Lúcio Lar ou Pepetela.

Mas eu sei que tu sabes que eu não conheço os guineenses.

Eu escrevo mais para alferes e furrieis milicianos e praças, que embarcaram em Alcântara e só sabem o que eu sei.

Cherno, ao fim de mais de 10 anos de Guiné diz-me um guineense em viagem comigo que parassemos junto a uma tabanca para beber água.

E eu perguntei porque naquela tabanca e não na outra do outro lado da estrada.

Respondeu que aquela era balanta e a outra era fula.

Inúmeras viagens que tinha feito nessa estrada, Bafatá-Farim e ainda nem me tinha apercebido da diferença e respectivas características específicas.

Cherno, como vez, é mais fácil os guineenses distinguirem um sueco dum português ou espanhol, do que um europeu ou americano distinguir
um Zulu de um Manjaco.

Mas penso que o teu ponto de vista tambem não é muito coincidente com os dos teus pais e avós.

Cherno sobre as maozinhas "invisíveis" houve concerteza, só que na Guiné só se fala, não se escreve e fica-se sempre na dúvida.

Abraço

Antº Rosinha disse...

Cherno a estrada era Mansabá-Farim e não Bafatá-Farim, logicamente.

Anónimo disse...

Curiosamente a unica (e espero ser a ultima)vez que me vi confrontado com a realidade da cela de uma cadeia foi precisamente devido a "bicha" de pao...

E que nos anos 80 e numa dessas caracteristicas noites do Verao guineense,passado da meia noite, resolvi aventurar-me pelo breu da noite em direccao a unica padaria do bairro/rua-a antiga Padaria Triunfo, mais tarde Padaria Cacheu,na rua da Praca Honorio Barreto,do Cafe Universal e do Hotel Portugal)

Quem se lembra ?

E que a essa hora da noite...a bicha,retinha-se invarialmente pelo "adro" !!

Azar meu !!! Interceptado pela ronda militar nocturna, sem o cartao de estudante e o comprovativo de contribuinte,acabei de chinelas e calcoes, por passar a noite numa das celas da temivel esquadra policial, adjacente ao antigo restaurante "Pelicano"...na marginal !!!

So na manha seguinte
( esta-se logo a ver, o quanto um telefone celular, daria um jeitao), seria finalmente "resgatado" por familiares...estes, entretantos avisados pelos amigos do bairro !!!

Mantenhas

Nelson Herbert

Anónimo disse...

Porque é que alguns ex-combatentes se assumem como gente que fez o que não devia...???... e prestam homenagem à Traição do 25 de Abril...???... Eu também sou ex-combatente da Guiné, ... era 2º Tenente Fuzileiro Especial, entre 1968 e 1970, e combati, por Portugal, com muita HONRA...!!!... Fui voluntário para os Fuzileiros, pois estava, em Mafra, como Cadete, quando me foi feito o convite.
Sejam GENTE, e assumam que combateram por Portugal, e contra as crueldades que o PAIGC fez no início da Guerra, às populações civis, indefesas ... !!! ... já não se lembram ... ??? ... mas eu lembro-me, e , estava no Liceu, quando todos os alunos pretendiam seguir de imediato para o Ultramar, acabar com aquele terrorismo...!!!... Lembro-me bem,... e foi necessário que Salazar dissesse que existiam Forças Armadas, e seriam enviadas para o Ultramar, na defesa dos civis, ... e nunca a Guerra esteve perdida, ... fomos traídos por uns cobardes, que fizeram o 25 de Abril...!!!... Esta é a VERDADE.
Agora sim, respeitem o vosso antigo inimigo, pois estes já não tinham nada a ver com os anteriores TERRORISTAS.

Francisco

Anónimo disse...

É tudo muito bonito,... a independência que quiseram,... a liberdade que quiseram,... etc,... mas, no tempo da Guerra do Ultramar, não existia fome na Guiné,... e o Hospital funcionava sem falta de medicamentos...!!!... Esta é a VERDADE.
Eu também sou ex-combatente,... 2º Tenente Fuzileiro Especial, e combati com muito orgulho,... e sinto-me traído pela Revolução dos Cobardes, de 25 de Abril de 1974...!!!
Não ando para aí a dizer mal de uma Guerra que era mais que justa, e o tempo comprova-o.
Vocês já se esqueceram das barbaridades cometidas a pessoas indefesas, de autêntico TERRORISMO, que deu origem à Guerra...???
Bolas,... tudo menos cobardes...!!!

Francisco