segunda-feira, 26 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9664: Notas de leitura (345): O Boletim Geral do Ultramar (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Aqui vos deixo notícia dos últimos números do Boletim Geral do Ultramar, ao que parece desapareceu sem deixar herdeiro. A publicação congénere que se veio a impor foi a revista “Ultramar” que se apresentava como “Revista da comunidade portuguesa e da actualidade ultramarina internacional”, editada pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, com mais conteúdo ideológico e sem aquela carga propagandística do Boletim, sempre pronto para reproduzir na integra os discursos oficiosos dos mais altos magistrados da Nação, prolífico na informação e sempre cuidadoso para não falar das atividades militares, já que não havia guerra, somente ações de policiamento.

Um abraço do
Mário


A guerra da Guiné no Boletim Geral do Ultramar (4)

Beja Santos

O Boletim Geral do Ultramar desapareceu da circulação em 1970. Nesse ano teve dois números, o primeiro correspondente praticamente ao semestre e o segundo apresentado como número especial e inteiramente dedicado à visita de Américo Thomaz a S. Tomé e Príncipe, que interrompeu por motivo do falecimento de Salazar. Temos, pois, para análise conteúdos referentes a 1968, 1969 e 1970.

No número de Maio de 1968 aparece no Boletim um artigo intitulado “Circuitos económicos exteriores do Ultramar, Guiné”, assinado por António F. Mendes Jorge. Há a reter, quando se compulsam as estatísticas das exportações entre 1961 e 1965 que neste período as exportações de amendoim, couros e peles caíram cerca de 50 %, duplicaram as exportações de bagaços e oleaginosas e as madeiras caíram para 21 % em 1965 comparativamente a 1961. No mesmo número do Boletim veio o discurso do ministro do Ultramar na posse do Brigadeiro Spínola, prosa breve e inócua. No número de julho/agosto continua a publicação do trabalho sobre os circuitos económicos exteriores do Ultramar. Ficamos a saber que a metrópole é o grande abastecedor do mercado guineense, contribui com 70 % dos totais importados pela província; houve grande subida das importações, passando de 292 mil contos, em 1961, para 570 mil em 1965, para o que contribuíram nomeadamente a insuficiência da produção local em arroz, registou-se um maior consumo de artigos de vestuário, óleos comestíveis e diversos bens alimentares. O saldo negativo da balança comercial teve um agravamento impressionante nesse período, mais do que quadruplicou.

No número de Agosto dá-se a saber que foi empossado o novo secretário-geral da Província, Tenente-Coronel Pedro Cardoso. O ministro do Ultramar recebeu os cabos da polícia administrativa de Bissorã Marcelino Malam Sanhá e Ansumane Biai, distinguidos com prémio Governador da Guiné. Ainda nesse mês recebeu o alferes de segunda linha Samba Canté, regedor (!) de Bedanda e o chefe de tabanca de Sinonte, em S. Domingos, também galardoados com o prémio Governador da Guiné.

Chegámos a 1969. Em 20 de Março, foi confirmado oficialmente em Lisboa que o Presidente do Conselho visitará a Guiné, Angola e Moçambique na segunda quinzena de abril. Marcello Caetano chega à Guiné em 14 de Abril. Na sessão do Conselho Legislativo, Caetano toma a palavra: “Data de 1935 o meu primeiro contato com a Guiné. E ficou-me dessa rápida visita uma imperecível recordação de beleza e da dignidade da gente (…) Nos primeiros tempos da minha gerência do Ministério do Ultramar pude ter o prazer de criar, em 1945, a Missão de Estudo e Combate da Doença do Sono, mais tarde transformada na utilíssima Missão de Combate às Endemias”. E dirá mais adiante: “As penas, as privações, os sofrimentos, os ferimentos e as mortes dos soldados portugueses não podem ser em vão. A terra adubada pelo sangue há de florescer. Da nossa vontade, da vontade de nós todos, portugueses de todas as etnias para quem a Guiné constitui parcela da Pátria, depende que o milagre se produza”.

No número de maio desse ano, fica-se a saber que Spínola veio em missão de serviço e regressou a Bissau em 30 de Maio e declarou: “Limitar-me-ei a reafirmar que continuo perfeitamente na linha de ação claramente definida pelo Sr. Presidente do Conselho e a informar que se encontram em curso medidas que permitiram acelerar a reconquista da paz e a ordem nas províncias”.

Estamos agora no derradeiro ano de publicação do Boletim. O ministro do Ultramar, Silva Cunha, efetuou uma visita de trabalho à Guiné entre 10 e 19 de Março. Assinou diplomas legislativos ministeriais, como são exemplo: elevação de Bula a concelho; atribuição de escudo de armas ao município da nova cidade de Bafatá. Ficamos a saber, ao longo da reportagem, que o ministro viajou sem parança. Depois das visitas da praxe em Bissau, embarcou para Bafatá, onde, de acordo com o repórter, foi recebido em delírio. Daqui tomou lugar num helicóptero que o levou a Sare Bacar e Cambaju. No dia seguinte, também de avião, seguia para Nova Lamego. À tarde, acompanhado de Spínola, percorreu de helicóptero e de automóvel, o interior do concelho do Gabu, tendo estado em Beli e Madina do Boé (recorde-se ao leitor menos atento que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969 e Beli muito antes). No dia seguinte, visitou Guilege, Gadamael e Cacine, as ilhas de Melo e do Como, Cabedu e Catió. Aliás, no final da sua viagem dirá num agradecimento a uma manifestação popular: “Corri a Guiné desde Bissau ao Boé, desde a fronteira do Senegal até ao Sul, até às ilha de Melo e do Como. Por toda a parte encontrei a mesma fidelidade à Pátria”. À chegada a Lisboa, em 19 de Março, enfatiza na sua declaração esse mesmo aspeto: “Merece especial relevo o facto de me ter sido possível fazer longas deslocações por estrada, sem escolta militar, e de ter visitado todas as regiões da Província e as localidades mais afastadas, nas fronteiras com o Senegal e República da Guiné, demonstrando assim a falsidade da propaganda do adversário que pretende fazer crer que domina todo o território”.

Em 24 de setembro de 1970, Spínola antes de regressar à Guiné é entrevistado pela RTP e esclarece: “Caminhamos para a vitória final”.

E assim morreu a publicação da Agência-Geral do Ultramar. Importa registar que a temática ultramarina não ficou órfã, ao nível editorial. Existira nos anos 50 a Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos, que veio dar lugar à “Ultramar”, editada pelo Comissariado da Mocidade Portuguesa e que terá características culturais mais acentuadas comparativamente ao noticioso e propagandístico Boletim Geral do Ultramar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9643: Notas de leitura (344): A descolonização da África Portuguesa, por Norrie MacQueen (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Camaradas,
Da leitura, parace fácil inferir-se que a Agência Geral do Ultramar exagerava de optimismo. Tal como Silva Cunha e Spínola.
Este, talvez, ainda iludido sobre as suas capacidades e a solidariedade do Estado, a acreditar numa vitória que o projectaria para o mais alto cargo que ambicionava.
Ao ministro, enfim, competia-lhe a manipulação da informação, como forma de colmatar o que não se conseguia de facto.
Aliás, acredito que durante muito tempo, e em várias instâncias, se minimizou, não só o IN, como, também, a evolução de conceitos e apoios internacionais sobre o anti-colonialismo.
Ora, esse atavismo, em 1070, que vinha na linha de ideias e acção de Salazar, e da incapaz entourage salazarista que remanescia através da UN, pode ter contribuído decisivamente para os resultados conhecidos.
JD

Anónimo disse...

JD, não achas que esta publicação ao desaparecer em 1970, sobreviveu por inércia a partir de 1968?

Ao fim destes 30 e tal anos, custa a compreender como foi possível tudo continuar após a cadeira de Salazar "perder-o-pé".

Se se diz que Salazar viveu muito tempo medicado na cama julgando-se ainda a governar, será que Caetano e os militares não estariam tambem "medicados" para não verem que o homem tinha mesmo acabado?

É de pensar se os portugueses não somos todos uns mentirosos, ou fantasistas, que nos andamos todos a enganar permanentemente, como aconteceu de 1968 até ao 25 de Abril.

Antº Rosinha