sábado, 31 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9685: Estórias do Juvenal Amado (41): Um drama causado pelo esquecimento dum carteiro

Pelotão da Ferrugem na despedida de Galomaro

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 21 de Março de 2012:

Carlos e Luís
Esta é uma pequena estória de um grande camarada.

Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL (41)

O DRAMA CAUSADO PELO ESQUECIMENTO DO CARTEIRO

O Lourenço chegou quatro meses depois de nós, mas nunca se livrou da alcunha de periquito.
Algarvio já casado e com um filho, situação que deve ter transformado a mobilização muito mais difícil. Bem disposto, amigo, raramente levava a mal um brincadeira ou mesmos uma partida e não foram poucas. Com ele descobri o sabor e o prazer de comer cogumelos sabiamente cozinhados. Recordo as dúvidas sobre a qualidade dos mesmos. Dizia ele que eram iguaizinhos, só que muito maiores.

Ele, o Caramba, o Aljustrel e eu tentamos fazer uma horta com cenouras, tomates, pimentos num canteiro atrás do abrigo. Quando estava tudo muito verde e viçoso, vieram os gafanhotos às centenas e devoraram tudo.

Não desistiu e construiu uma capoeira onde resolveu criar galinhas. No dia 1 de Dezembro de 1972 um RPG destruiu a capoeira e das galinhas não sobrou nada. Mas voltou a construi-la, teimou em criar lá galinhas e em boa hora, pois deram azo a grandes petisqueiras com cerveja a correr a rodos, por causa do piripiri que como se devem lembrar era rijo de paladar.

Também foi valente e posso afirmar, que eu e os camaradas que estavam na cantina na noite de 1 de Dezembro de 1972 quando Galomaro foi atacado ao arame, lhe ficamos a dever a vida nesse dia. Foi ele que desconfiou de um movimento estranho de um rebanho de cabras e ovelhas, que se estendia junto do campo de futebol, na direção da cantina onde jogávamos às cartas e bebíamos naquela noite. Embora com medo de alguma porrada (estávamos em zona de guerra mas não nos podíamos comportar como tal) por dar tiros, ele agarrou na G3, com duas rajadas obrigou o IN a denunciar-se e iniciar o ataque, antes de se ter colocado como pretendia. Fariam tiro ao alvo com resultados desastrosos para nós.

A devoção à esposa era tal, que não havia um dia sequer que não lhe escrevesse. Ela retribuía e quando era distribuído o correio, também recebia um monte de cartas que o enchia de alegria. Este hábito criou no entanto uma das maiores ralações do nosso camarada e por sua vez a nossa preocupação, quanto ao estado psicológico dele, quando de repente deixou de receber o tão desejado correio.

Passaram-se as semanas até que ele nos confidenciou, que não tinha notícias de casa. Inicialmente ainda brincámos com o assunto, mas o caso estava já muito sério pois, quando ele se abriu connosco já estava desesperado. Acabou por se falar com o Tenente Raposo e o periquito foi chamado ao Comandante onde contou o que se passava. Rapidamente quanto possível se resolveu o assunto e também se ficou a saber o que tinha acontecido. A esposa bem respondia às cartas cheias de preocupações do marido, mas não percebia porquê que as cartas dela não chegavam a Galomaro como era de esperar.

São por vezes desencontros que nos pregam grandes partidas do destino. O responsável foi o carteiro substituto, que não conhecendo a localização do sítio de recolha de correio, o lá deixou até o carteiro regressado deslindar tudo. O Lourenço acabou por receber de uma vez só o correio de um mês para grande alegria dele e nossa, pois estávamos muito preocupados com ele.

Na foto > Periquito, Juvenal Amado e Aljustrel

Quando fizemos o primeiro almoço da Companhia (Seia) vinte anos passados, o Lourenço disse presente e foi com enorme alegria que contamos à esposa na frente dele, como ele tinha sofrido durante o jejum de notícias dela. Ele riu-se e disse naquele jeito simples:
- Foi verdade foi.

J. Amado
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9586: Blogpoesia (182): Mulher - Esposa e Mãe (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9261: Estórias do Juvenal Amado (40): O meu compadre Aljustrel

4 comentários:

Manuel Joaquim disse...

Olá, Juvenal:

Ora aqui está uma escrita bem "saborosa", tão saborosa como o deve ter sido a vossa produção hortícola para a gafanhotada!

E aquela do RPG acertar em cheio no galinheiro é de mais! Que sorte alguns tiveram por o PAIGC ter trocado soldados por galinhas para emoldurar os seus "roncos"!

Quanto à correspondência do Lourenço, "não há fome que não dê em fartura"! Como eu gostava que este ditado popular se concretizasse neste Portugal de hoje! Mas acho que vou esperar sentado.

Um grande abraço

Anónimo disse...

Caro amigo Juvenal,

O teu excelente artigo, escrito com sabor a tragicomédia, evidencia aquilo que muitos de nós poderíamos ter feito para aliviar algumas as nossas faltas de víveres, sobretudo frescos.
Galinhas mortas à morteirada de 82 e couves ceifadas com estilhados de granadas de RPG teriam sempre um sabor muito mais especial do que …nada ter.

Se bem me recordo o nosso camarada António Conceição também foi um daqueles que resolveu ser horticultor lá nas matas da Guiné. Diga-se com resultados surpreendentes!

Tentei que isso fosse feito num dos destacamentos por onde passei. Sem o apoio necessário para iniciativas dessa natureza, tal não foi possível. A resposta era quase invariavelmente a mesma, quem venha atrás que o faça. Por esse pensamento, a nossa sopa também era invariável, arroz com spaghetti bem temperada com cebola, alho e azeite.

Na generalidade, por assim se pensar, passámos faltas que não teriam sido necessárias. E não vale a pena tentar culpar as cúpulas do Exército por não terem feito mais e melhor. Estava nas nossas mãos as soluções para alguns dos nossos problemas e preferíamos esbanja-las em jogatanas de futebol, de sueca e outras atividades parecidas.

Para nós açorianos, sobretudo os naturais das ilhas das Flores e Corvo, onde o barco só ia de quinze em quinze dias no verão e de mês a mês no inverno (quando fazia bom tempo) estar um mês sem correspondência era naturalíssimo. Mas compreendo que para um Algarvio casado um mês sem carta, com sonhos de alcova e a fralda mijada, fosse um autêntico suplício. E tudo por culpa de um carteiro a quem ainda não tinham cortado os dias de férias.

Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

Corrigindo...

Onde se lê "o nosso camarada António Conceição" deve ler-se "...Artur Conceição".

José Câmara

Luís Dias disse...

Caro Juvenal

Bela história emoldurada com o ataque ao arame que, como referes, poderia ter tido graves consequências senão fosse a atitude desse camarada em desafiar as ordens do comandante e ter disparado os tiros que espantou o "IN", obrigando-o a precipitar o ataque.
Comigo foi ao contrário, a partir de terminado momento na comissão (ai por volta dos 4/5 meses) passei a escrever nos aerogramas que enviava para os meus pais unicamente: "A Leste nada de novo" (com origem no livro sobre a 1ª Guerra Mundial, de Erich Maria Remarque, "A Oeste nada de novo") e depois deixei de escrever de todo. Um dia o capitão Pires chamou-me para me dizer, que tinha lá uma ordem do cmdt do batalhão a ordenar-me para escrever para os meus pais. Eles tinham razão para estarem preocupados e eu lá voltei a escrever, sem muito relatar, o que era o nosso dia a dia.
Um abraço.
Luís Dias (teu camarada de batalhão)