quinta-feira, 12 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9735: O Cancioneiro de Gandembel (6): Do Hino de Ganbembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte VI) (Idálio Reis)
















Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da dura vida quotidiano dos  homens-toupeira, que tiveram de construir de raíz e defender, num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois  aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana. Total de ataques e flagelações: 372. Fotos do notável álbum de Idálio Reis, editadas por L.G.

Fotos: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



1. Pedido de esclarecimento, enviado a 10 do corrente,  ao Idálio Reis, a propósito de mais algumas passagens de Os Gandembéis:


Idálio: Espero que tenhas tido umas boas (e santas) páscoas. Mando-te mais um poste, relativo ao canto II de Os Gandembeis... Decifra-me as estrofes V e VI... O 'magriço' (o capitão Moura ?) que vai para Bissau, tentar "mexer os seus cordelinhos" (referência á deusa 'Cunha')... É sibilino, para os de fora da tua companhia... Um abração... Luis


2. Resposta do Idálio, com data de 11 do corrente:


Meu caro Luís

Porque teria de estar hoje em Coimbra, cheguei ontem de umas pequenas férias, deambulando por sítios do acaso, em rotas isentas de portagens.

E logo atentei no correio virtual. O Blogue dá a conhecer a morte do teu pai. Ainda que sentisses que a definitiva separação se aproximava, há sempre um sentimento de perda, um pesar profundo.

Quanto ao Cancioneiro, lá o vais divulgando, e os nossos poetas têm gostado.


O Canto II continua a narrar a odisseia de Gandembel, e lembra o 4 de Agosto, o trágico dia do Changue-Iaia.


O [hoje] tenente-general Jorge (Barroso) de Moura, para quem crê que a Cunha o favorece... Este militar era um homem inteligente, não o podemos negar. Foi um dos melhores alunos do seu curso da Academia, que o distinguia dos restantes pares. E,  para além de uma óbvia amizade que tinha com o Almeida Bruno, sempre encontrou,  nos estados-maiores de Schulz e de Spínola, alguém que tivesse sido seu professor.

Quanto ao Maia, já te referi quem era. Com poucos meses de comissão, dos alferes da origem da Companhia, restámos ambos. E sempre nos considerámos, e jamais tivemos uma qualquer quezília, mínima que seja.  Mas considero que o forte Capitão soube bem aproveitar-se do subalterno mais antigo, e este até por vezes se sentia envaidecido.


Há um facto curioso, sobre o qual nunca me referi, porque totalmente urdido e parabenizado pelos militares ditos de eleição, e que tem a ver com os condecorados da guerra colonial. Do que sei, na minha Companhia só houve uma cruz de guerra da 3ª ou 4ª classe, que foi atribuída ao Maia. Mas este assunto é tabu, sobre o qual não gosto de me pronunciar, porque no geral fere susceptibilidades.

A estrofe V, com o magriço a entrar rapidamente no helicóptero... É verdade que Barroso de Moura teve um problema na mão, pois inclusivamente viria a se operado no Hospital de Bissau, já a Companhia tinha abandonado Bissau. Agora o que originou tal traumatismo, não sei. E aqui a voz da caserna até pode ser maliciosa [...].


De todo o modo, as consequências do acidente em trabalho, foram morosas na sua cura, pelo que até creio que o homem poderia necessitar de mezinhas especiais, e que...tornar a Bissau lhe convinha.

                                                                  
V
Mas o magriço, que já então lhe convinha
Tornar a Bissau, acostumado,
Que tempo concertado e ventos tinha,
Para ir buscar o descanso desejado.
Recebendo o piloto que lhe vinha
Foi dele alegremente agasalhado;
Rapidamente no helicóptero entrou
E, sadicamente, c´o a mão ligada acenou.

VI
Jorge de Moura, o forte Capitão
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e altivo coração,
A quem a Cunha sempre favorece,
Para aqui se deter não vê razão,
Que sequiosa a terra lhe parece
Por diante passar determinava
E assim lhe sucedeu como cuidava.


Mais 3 notas:  (i) o furriel Abel Simões, morto no Changue-Iaia, era natural do concelho de Montemor-o-Velho, e não Novo; 

(ii) o posicionamento de Gandembel, era ali bem próximo ao pontão do rio Balanazinho, não mais de 50 metros; 


(iiii) o aparecimento de um gandembelense, o ex-furriel Júlio Madaleno, que ali apareceu para render o Magalhães Alves, gravemente ferido a 15 de Maio na pesquisa de água no Balana. 


Já lhe escrevi [ao Júlio Madaleno], mas não há quaisquer lembranças quanto à presença deste homem connosco. Fiz-lhe um convite para estar na confraternização da Companhia. Mas como pode ser possível que não tenha guardado a mínima recordação de um graduado que ainda esteve algum tempo em Gandembel? 


E, para mim, à falta de melhores desculpas, só encontro uma explicação. Em Gandembel, tudo rodava à volta do grupo de combate, indistintamente. A busca perseverante de se acabar com os trabalhos, não nos dava tréguas. E à noite, o bando aninhava-se, em que os graduados tinham a benesse de não fazerem os postos de sentinela fixos, porque neste aspecto da vigilância a sua função era de maior abrangência, de calcorrear os postos e despertar os mais exaustos.


E por agora é tudo. O Lema Santos, uma figura que muito admiro, também me deu a conhecer a sua satisfação por estar presente em Monte Real.


Um cordial abraço do Idálio Reis    


3. O Júlio Madaleno deixou o seguinte comentário, com data de 10 do corrente,  ao poste P9726 (*):


Velhos companheiros: Certamente não vos lembrais de mim porque fiz uma efémera passagem pela [CCAÇ] 2317 quando quis o destino que fosse substituír o fur mil Alves devido à infelicidade que o vitimou. O meu nome é Júlio Madaleno e operei o tal morteiro 120 que lá foi colocado e estava instalado na parte de trás do abrigo da Browning. Pelas frequentes consultas que faço ao blogue estou informado do livro do amigo Idálio Reis e do almoço programado para 9 de junho [, data do convívio do pessoal da CCAÇ 2317, em Paredes ],  onde vou tentar estar presente para rever antigos camaradas de armas. 

 Um grande abraço do ex-fur mil J M
juliomadaleno@gmail.com  
(No facebook identificável em foto com guitarra).

4. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema  de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso  camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, residente em Cantanhede, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317, no seu livro A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Balana / Ponte Balana, edição de autor, 2012 (il, 256 pp.).

Recorde-se o que aqui tem sido dito:  este livro  é uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné; o seu lançamento será feito no Palace Hotel, no próximo dia 21, no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.  




Canto III

I
Estas sentenças tais o velho honrado
Dizendo estava, quando abrimos
As malas e as fizemos ao sossegado
Vento, e do quartel temido nos partimos. (#)
E, como é já na guerra costume usado
A bandeira desfraldando, o céu ferimos
Dizendo: “Boa viagem”. E logo as viaturas
Fizeram as usadas roncaduras.
II
Passámos à Formosa Aldeia
Que das muitas bajudas assim se chama;
Das que nós passamos a primeira
Mais célebre por nome que por fama,
Mas nem por ser a derradeira
Se lhe avantajam quantas o Moura ama.
Ali tomámos todos um bom assento
Por tomarmos das terra mantimento.
III
Por Nhala passámos, povoada
De gente amiga, que ali vivia;
E de luz total sendo privada
Mesmo assim do turra se defendia.
Novamente nos lançámos à estrada
P’ra chegar a Buba, ainda de dia,
Onde ainda a Companhia não sabe
Se irá haver descanso ou a guerra acabe.
IV
Contar-vos longamente as perigosas
Cousas da estrada, que os homens não entendem.
Súbitas emboscadas temerosas,
Morteiradas que o capim em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de canhões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro
Ainda que tivesse a voz de ferro.
V
Casos vi em que os rudes fuzileiros
Que têm por mestra a longa experiência
Não acreditarem casos certos e verdadeiros,
Mas julgando as cousas só pela aparência.
E os Comandos, com fama de guerrilheiros,
Só por puro engenho e por ciência
Se distinguiam quando formavam,
Porque nas armas aos demais se igualavam.
VI
Daqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
Na larga mata fazendo novas vias, (##)
Só conduzidos de árduas esperanças.
Com o turra tempo andamos em porfias
Que, como tudo nele são mudanças,
Poder nele achamos tão possante
Que passar não deixava por diante.
VII
Era maior a força em demasia
Segundo para trás nos obrigava,
Da estrada que contra nós ali se abria
Pelo poder da máquina que trabalhava.
Ó malvado Nino da porfia,
Que sempre estás onde a gente estava!
Em vão os tiros esforças iradamente
Pois nós não tememos a tua gente.
VIII
Desta parte descanso algum tomamos
E do rio fresca água, mas contudo
Nenhum sinal aqui da paz achamos
No povo, com nós outros quase mudo.
Ora vejam em que tamanha guerra andamos
Sem sair nunca deste viver rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da nossa tão desejada terra Natal.
_____________

Notas de L.G.:

(#) Abandono do aquartelamento de Gandembel (e do destacamento de Ponte Balana)  em 28/1/1969 e partida para Aldeia Formosa.

(##) Transferência para Buba, em 8/2/1969 onde a CCAÇ 2317  ficou, até 14/5/1969, a fazer segurança aos trabalhos de renovação da velha estrada Buba-Aldeia Formosa.

__________________


Nota do editor:


(*) Vd. último poste da série > 10 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9726: O Cancioneiro de Gandembel (5): Do Hino de Ganbembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte V) (Idálio Reis)

7 comentários:

Anónimo disse...

... na indicada remissão,
onde está...
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/04/guine-6374-p9726-o-cancioneiro-de.html2012/04/guine-6374-p9726-o-cancioneiro-de.html

deve estar...
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/04/guine-6374-p9726-o-cancioneiro-de.html
___

Anónimo disse...

As fotografias desta série, sem legenda e bem, denotam a excepcionalidade do soldado português em África.
Honra e reconhecimento lhe sejam feitos, perante alguma ulterior vicissitude.

SNogueira

manuelmaia disse...

Caro Idálio,

Continuo deliciado com o que leio.
Obrigado, Muito obrigado.
isto é poesia pura.
abraço
manuelmaia

Torcato Mendonca disse...

Manuel Maia, poeta, e tão bem cantaste, em sextilhas, a História do Povo deste rectângulo que pelo mundo se espalhou, encantaste-te com esta bela Poesia. Eu e muitos mais também. Mas é toda a envolvência, do Idálio e da 2317, de privação e desgaste que ressalta ainda mais esta poesia, este cantar de homens- soldados, militares de empréstimo, mas dignos do Povo a que pertencem.

Merecem figurar numa galeria deste Blogue.
Parece ser tempo de se ir relevando algo do muito já aqui descrito.
Abraço Manuel e, através de ti, a todos T.

Manuel Joaquim disse...

Pois é, Torcato:
Eu sou um desses muitos, também estou encantado.
Este maravilhoso "pastiche" de algumas estrofes de "Os Lusíadas" é uma obra notável, tanto na assimilação do estilo usado por Luís de Camões, como na exploração dos traços críticos e/ou caricaturais, tão importantes naquele genial poema épico.

E é deste poema (Canto V, 89) que retiro dois versos que se podem aplicar à história da Cª2317 em Gandembel, contada pelo Idálio Reis:

"A verdade que eu conto, nua e pura
Vence toda a grandíloqua escritura"

Que esta verdade vença todas as dificuldades para "romper a grandíloqua história" de modo a fazer parte da história da guerra travada na Guiné. É só mais uma verdade mas é "uma" verdade essencial para se perceber melhor o que se passou nalguns "teatros" de operações.

Um grande abraço

Anónimo disse...

Poesia notável decalcada dos "Lusíadas".
Muito provavelmente o próprio Luís de Camões não faria melhor aplicando-a ao contexto.

Sobre as fotos..estão meios "encarrapatos"...já sei..estavam no pólo norte..ummm..não.
Francamente..não sei onde poderiam andar assim vestidos ou será despidos.

Um grande alfa bravo para todos os Gandembelistas.

C.Martins

Zé Teixeira disse...

Camaradas bloguistas.
Ao ler estes belos nacos de poesia em que se canta a epopeia do soldado português em Gandembel, na encosta do Rio Balana, de onde até a passarinhada fugia. Onde as armas não se calavam dia e noite, testemunhei eu, curvo-me perante tanta arte e mestria no manejar da pena dos seus autores.
Parabéns Idálio pela iniciativa. Valeu bem a pena aquele telefonema que te fiz em 2006 a provocar-te para entrares no Blogue e contares em primeira mão toda a epopeia real dos teus homens com quem convivi no terreno, quer nas colunas que fiz a Gandembel, onde encontrei conterrâneos e amigos, quer posteriormente em Buba onde caminhamos mano a mano na segurança à construção da estrada.

Abraço fraterno e até sábado em Monte Real
Zé Teixeira