segunda-feira, 7 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9861: Cartas do meu avô (2): Segunda Carta: Em Catió (Parte I) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)



Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 619 (1964/66) >  Grupo de oficiais à mesa, no famoso bar Tombali, em Catió. Há dois palmeirins, da CCAÇ 728: o alf mil J.L. Mendes Gomes, o 2º a contar da direita, de óciulos escuros; e o alf mil Gonçalves, o 1º a contar da esquerda. Os restantes pertenciam à CCS do BCAÇ 619, então sedeado em Catió, com destaque para o major  Luís [António Moura] Casanova Ferreira [, hoje coronel reformado,] de bivaque na cabeça e camuflado, ao fundo (era o homem grande da logística do batalhão e foi um dos mentores e atores do 25 de Abril).  Da direita para a esquerda, são ainda visíveis o alferes de transmissões do batalhão - o Teixeira; a seguir ao J.L.Mendes Gomes, o alferes, do Pel Art,  de apelido Maia);  e por fim, o alferes Pires Marques, de cavalaria (Pel Rec). Foto do álbum do nosso camarigo J.L. Mendes Gomes.

Foto (e legenda): © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do  nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió)  e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.


SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE I)

Lichtenrade, Berlim,  14 de Março de 2012- 16h e 22m 


1- A Despedida do Cachil e a Entrada em Catió

Os nove meses que decorreram no Cachil deram para sedimentar tudo. A ambientação ao clima de guerra estava culminada. Ao cabo de várias substituições de comandante, - porque o primeiro, tão valente se aparentava, desertara escandalosamente, logo no nosso baptismo de fogo - tínhamos dado a volta ao quartel.

Tornámo-lo habitável. Até uma pista de aviação se conseguiu montar umas dezenas de metros ao lado da paliçada leste. Dava para recebermos os abastecimentos mais prementes através da Dornier. Legumes frescos, alfaces….Vindos das hortas de Bissau.

Ninguém que não tenha passado por uma situação destas poderá imaginar o valor que estes vulgares consumíveis assumem numa comunidade como é uma companhia isolada e entregue a si própria. Poder debicar umas escassas folhas de alface ou de couves frescas ponha o quartel em verdadeiro transe…e alvoroço.

Receber o correio trazido directamente pela avioneta estreitava e atenuava infinitamente o sofrimento que se sente quando a vida e o mundo se resumem a um universo de cento e oitenta homens perdidos numa ilhota cercada de rios e bolanhas. 

Renovaram-se casernas, uma para cada pelotão; outra para os oficiais, outra para os sargentos; ergueu-se um bar com tamboretes à volta para os momentos de ócio, idêntico aos de um quartel a sério; a cozinha completamente reformulada, assente num espaço cimentado; aulas de escolaridade, etc.


O tempo decorria serenamente. As noites não. Eram de permanente suspense… e pesadelo. Seriam a pior altura para se sofrer um ataque. Fosse pelo que fosse, isso não chegou a acontecer.

Foram nove meses sossegados os do Cachil. Por isso, foi um momento muito difícil, aquele em que se soube que a companhia iria ser deslocada para Catió. Ficaria a ser a companhia de segurança ao comando do batalhão e de intervenção em todas as operações a desencadear no sul.

Eram muito negras as perspectivas daí para a frente. Como o foi a hora de largar o quartel e entregá-lo à outra que veio render-nos. Pela calada da noite, aproveitando a maré-cheia, fomos levados numa grande LDM, escoltadas ao longe, pelo temível poderio de fogo pesado de uma curveta da Marinha. Talvez a "Orion".

Ao cabo dumas boas horas de escuridão, a navegar aos ziguezagues pelo labirinto hidrográfico do sul da Guiné, ladeados por vastas bolanhas livres ou temíveis florestas densas, a escorrerem sobre as águas, chegámos a Catió.





2- Entrada em Catió

Catió era um pólo administrativo com certo relevo comercial, vinha dos tempos coloniais. Tinha um Administrador de carreira; uma igreja, um mercado, um posto de assistência médica, uns correios e várias casas comerciais. Exploradas por libaneses, sirianos ou emigrantes do continente.

À volta, havia um arco de aldeias populosas de nativos, fulas e mandigas, que nos eram fiéis e favoráveis.  Chefiadas sábiamente, por dois homens grandes cuja palavra ou ordem eram verdadeira lei.

Ordeiramente, foi-se procedendo à instalação das tropas, em sobreposição com as residentes. A receptividade era total. Para a companhia que saía era o luminoso fim da tormenta. Os oficiais ficaram instalados no designado "Sete e meio"- Era a anterior casa do enfermeiro.  Os sargentos nas instalações existentes, junto à parada e à cozinha. Os 
soldados nas casernas da companhia. Tudo era mais confortável e a sério. 


Catió era a importante sede do batalhão que superintendia em todo o sul. Para além da companhia de comando e serviços, tinha três pelotões autónomos: o de transmissões, os de artilharia e cavalaria. Tinha um médico, com os respectivos enfermeiros, a enfermaria e um capelão militar.

A vida decorria à boa maneira dum qualquer quartel no continente. A toque de corneta. Os oficiais dispunham duma boa cozinha e excelente messe, onde pontificavam o comandante-mor – um tenente- coronel- e os oficiais de planeamento de operações.

A hora das refeições era, por artes do comandante, um intencional momento de convívio solene, sempre sob o seu olhar atento e, por vezes, inquisidor. A distribuição na grande mesa comprida, era feita por ordem decrescente de patentes. No topo estava ele.


O primeiro comandante tinha trato afável e era próximo de todos. O tenente coronel Matias. (**) O segundo, que o viria a substituir, era o seu oposto. Um mau carácter, autoritário e desconfiado. A bonomia do capelão e do médico, mais a inesgotável verborreia do oficial de justiça, o M. Fernandes, todos muito bem sediados no batalhão, davam para minorar o ambiente pesado que, sem eles, haveria.

Anedotas, discussões filosóficas, gracejos picantes virados, sobretudo, para o padre, havia de tudo, eram o pano de fundo. No fundo, gerava-se um ambiente agradável. Depois, havia torneios de damas, de poker e xadrês. E até, torneios de voleibol. Enfim, Tudo condimentos que serviam para amenizar as nossas agruras.


Nas horas mortas, dava para, livremente, fazer sala pelos bares públicos da vila. Em descontraída cavaqueira. Aí, era a boa cerveja e o marisco, um açafate de ostras, apanhadas horas antes - o five o’clock -ostra - o amendoim, tudo muito barato. E ainda, de vez em quando e à socapa, uns passeios de jeep pelas aldeias à conversa com os artesãos ou à procura das nossas rutilantes lavadeiras. Sempre com a velha pistola Walter à cintura. Por precaução. Servia para nos dar aquela sensação de longínqua liberdade que não tem preço.

3- Foi só o começo

Não demorou muito, depois da chegada, para sermos chamados para uma magna reunião com os altos comandos. Na sala de operações numa dependência contígua à residência do comandante. Com toda a pompa e circunstância.

Várias filas de cadeiras frente a uma mesa comprida e larga, sobre um estrado bem sobre-elevado. O tenente coronel ao meio do sub-comandante e do oficial de planeamento. Na esquina da sala, à sua direita, desde o tecto até ao chão, pendia uma enorme cortina verde.

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Dadas as solenes boas-vindas à nova companhia, à ordem do comandante, o tal oficial de planeamento procedeu ao correr das cortinas puxando-as por cordões longos de cor dourada. A sala estava medianamente iluminada. Excepto a zona frontal à nossa esquerda. Para onde se dirigia um foco de luz.

Eis que um vasto mapa, de fundo predominantemente verde surgiu aos nossos olhos.  Com rigoroso pormenor, ali estavam as estradas, caminhos, veredas, linhas de água e povoações, cobrindo todo o sul da Guiné, como se fosse um retrato aéreo, que ainda não havia.

Em evidência, muito bem assinalados em traços de tinta, de várias cores, ali estava todo o plano secreto da operação que começaria, na madrugada dessa noite. Garbosamente, em pé, de ponteiro em punho, o oficial começou a expor minuciosamente, e a indicar no mapa, como tudo se deveria desenrolar no terreno.

A facilidade e rapidez com que o ponteiro percorria os longos meandros verdes das bolanhas e florestas e, como, serenamente, nos levava até à zona do Inimigo... parecia querer embalar a nossa fantasia. Tudo fora muito bem delineado, em longas horas de sacrificada concentração, ao mais alto nível, desde a última operação.

Pela entoação vibrante do orador, a lição estava muito bem estudada. Se não houvesse fuga de informações, aquilo ia mesmo ser um grande êxito. Tinha de sê-lo.


- Se não houver mais dúvidas..., desejo-vos boa sorte, uma boa noite... Esta reunião está encerrada. – proclamou sorridente o tenente coronel.

Era este o cenário a que iríamos ter de assistir nos nossos próximos meses. Repetidamente, aí de quinze em quinze dias. Cabisbaixos, um a um, recolhíamos às nossas instalações na companhia. A seguir, seria o acerto entre os oficiais, sargentos e soldados da companhia.

À hora fixada, todos os três pelotões, estariam na forma para a vistoria final e a partida, porta de armas fora. Jamais esqueceremos os olhares compungidos do comandante, do capelão e do pessoal médico a despedir-se à porta de armas, enquanto não se deixasse de ver, por entre o nevoeiro da noite, o derradeiro soldado da companhia em fila indiana.

Tal como de alegres os mesmos olhos haveriam de brilhar, quando, à mesma porta de armas, quando nos viam a regressar.


- Então, como correu?...quantos mataram? Houve baixas? - perguntava, feliz, como que a abraçar-nos, o nosso ingénuo capelão.

Lembrar-me-ei até ao fim dos meus dias da resposta pronta e espontânea do furriel Cunha das transmissões:
- Até rezei, caralho,…senhor padre!
- Ó homem! Não diga carvalho!... Onde é que eles estão? Diga palmeira!


J. L. Mendes Gomes (***)

(Continua)


Fotos (em formato pequeno, de Catió): ©  Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 3 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9848: Cartas do meu avô (1): Primeira: No Cachil (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Como, Cachil e Catió, 1964/66)

 (**) Ten cor inf Narsélio  Fernandes Matias, comandante do BCAÇ 619: mobilizada pelo RI 1, esta unidade partiu para o TO da  Guiné em 8/1/1964 e regressou a 9/2/1966. Esteve sempre em Catió. Subunidades: CCAÇ 616  (Bissau e Empada); CCAÇ 617 (Bissau, Catió e Cachil); e CCAÇ 618 (S. Domingos e Binar). O ten cor Matias era ilhavense, segundo informação do nosso  camarada e amigo Jorge Picado.



Por sua vez, a independente CCAÇ 728, os Palmeirins de Catió, foi mobilizada pelo RI 16, partiu em 8/10/1964 e regressou a 7/8/1966.  Teve 3 comandantes: cap inf António Proença Varão,  cap cav Ramiro José Marcelino Mourato, e cap inf Amândio Oliveira da Silva.

10 comentários:

Anónimo disse...

Do quartel fortaleza do Cachil..mais uma estupidez dos "altos comandos"..quais prisioneiros desterrados numa ilha insalubre,até à placidez de Catió, que por isso havia lugar a alguns incompetentes,mas também aos "mimos" dos pequenos prazeres do quotidiano.
Assim se ia fazendo a guerra...

C.Martins

Luís Graça disse...

Luís Graça disse...
Ó Joaquim, temos que descobrir esse bendito capelão... O homem, de certo, que era do norte, pois era ?

Recordo a tua evocação de tua antologia dessa figura de capelão:

(...) "Lembrar-me-ei até ao fim dos meus dias da resposta pronta e espontânea do furriel Cunha das transmissões:
- Até rezei, caralho,…senhor padre!
- Ó homem! Não diga carvalho!... Onde é que eles estão? Diga palmeira!"...

Anónimo disse...

Ó lá Caro Luís!
O 1-º que ia desarmado a todas as operações era um gigante...
O2º era um toquinho gorducho e bolachudo, de desenhos animados...
Só sei que ambos eram salesianos...ali da igreja dos salesianos, em Campo de Ourique, Lisboa.
Um grande abraço.
Joaquim

Anónimo disse...

Caros Editores

Peço-vos para corrigirem o primeiro nome do Cmdt do BCaç 619. Não é por nada, mas como ilhavense, reconheci logo que teria de ser o Narsélio Fernandes Matias, que muito bem conheci, aliás como o outro seu irmão, também Ten Cor nessa época.
Era muito seco de carnes, como se costuma dizer, e mais para o baixo, do que para o alto.
Não sei dizer como seria como militar, mas que seria boa pessoa, sem dúvida que era.
Voltou a comandar outro BCaç, o 1932 (NOV67-AGO69), no Sector 02, com sede em Farim.
Abraços
Jorge Picado

José Botelho Colaço disse...

Somos mesmo uma espécie em vias de extinção um que podia de certeza ter conhecimento do capitão capelão gigante era o 1º cabo António Pinto Lopes da 557 (mas ele já não faz parte dos vivos)e que fazia de sacristão nos dias que ele ia dar missa aos militares do Cachil.
Comigo falou algumas vezes, no final da missa ia ao posto rádio saber porque motivo eu não ia à missa, eu lá me desculpava e dizia-lhe meu capelão sabe eu estava em escuta permanente, outras vezes meu capelão tive que organizar aqui no posto umas mensagens urgentes e altamente confidenciais.
Mas a imagem que tenho dele é de um homem bom, eu até ficava sensibilizado como ele aceitava as minhas traquinices de jovem, pensava para comigo se ele usasse os galões como a maioria eu estava como se diz na tropa bem f...
Esquecia-me de mencionar uma vontade dele queria por força que nós lhe fizéssemos uma casa para ele ficar lá a morar connosco no Cachil.

Um abraço.
Colaço

Anónimo disse...

ÓláColaço!
Creio que não estamos a referir-nos ao mesmo capelão gigante. O que eu falo estava adstrito à companhia que me veio render no Cachil...creio eu. Não conheci aquele que esteve convosco na 557.
Um abraço
Joaquim

José Botelho Colaço disse...

O capitão capelão que eu refiro pertencia ao batalhão 619 de Catió.
Mas eu também não estou em condições de adiantar seja o que for para resolver o enigma.
Mas de enigma em enigma se arranja um tema.
Tens falado nos teus postes quase sempre nas melhorias, reconstruções do quartel.
Agora falas do sossego no Cachil! Então como ficaram as explorações à mata do Cachil? as tentativas de ir à mata do Cassaca, os ataques ao quartel dos então chamados turras!
Será que a guerra parou ou meteu férias na Ilha do Como?

Um alfa bravo
Colaço

Hélder Valério disse...

Caríssimo "Palmeirim"

Gostei bastante da descrição que foi feita da estadia, da viagem, do enquadramento, da reunião reveladora da operação, etc., mas o final é impagável.
Dizes que jamais o esquecerás e, agora, passaste essa indicação para mais gente, onde me incluo.

Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Repara, Hélder, quão acertado e culturalmente correto era o conselho do capelão:
- Meu rapaz, não digas carvalhos, diz palmeiras!

De facto, alguém viu carvalhos na Guiné ? Tu viste ? E~u, não... Nem um, mas palmeiras, "manga delas"....

Faz-me lembrar os meus pais, que eram "educadíssimos", incapazes de dizer uma asneira, gente do sul, gente da vila, que estranhava os modos do falar nortenho, no dia do meu casório, em Candoz...

Em vez de "porra", a minha mãe dizia "torres"...
- Então não é que a tua irmã Béu [ a mais nova, ] veio lá de cima do norte a dizer torres ?!...

O meu pai, esse, também era um artista na construção de perífrases, de modo a evitar o uso
da linguagem de carroceiro, ou do calão de caserna... Não me lembro de lhe ter ouvido alguma vez um palavrão.
- Pois é, pai, estamos fodidos...
- Pois, pois, fornecidos...

Tinha, de resto, muita graça, por causa dos seus trocadilhos brejeiros... Era um exímio contador de anedotas... Até ao fim da vida!... Foi talento que não herdei!... Fiquei-lhe apenas com o jeito para versejar...

Anónimo disse...

Olá Colaço

`A questão que me pões, devo dizer o seguinte: Não sei se era verdade ou não. Corria por lá que o vaguemestre da 728 era filho dum grande comerciante de Bissau. Estava havia muitos anos na Guiné, desde antes da guerra. Conhecia muito bem a tropa inimiga e , claro, daria o seu contributo forçado para a guerra, como era geral. Pois, quem beneficiou dessa relação fomos todos nós. De facto só fomos flagelados umas 3 vezs. Havia um pacto recíproco n´s não chateavamos e eles também não. Por isso, a nossa verdadeira guerra só começou em Catió....e chegou.
É tudo. O certo é que no dia 25 de Dezembro de 1064, uns 2 meses depois, fizeram um ataque ao Cachil....quase os iam tresmalhando segundo disseram. Nós ouvíamos a " festa" de Catió. Estava lá a pernoitar o General Deslandes e saíu Cá fora em cuecas...muito preocupado por não poder scorrer. Era de noite.
Um abraço
JMendes Gomes