quarta-feira, 20 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 12 de Junho de 2012:

Caríssimo Carlos,

Para não pensares que te esqueci, aqui vai mais um nico da história da minha companhia.
Para não te castigar, é coisa pouca, mas suficiente para reflectir o ambiente que ali reinava.
Anexo ainda a resposta do Pedro ao meu pedido para confirmação dos dados. Exageradamente refere: "está mais que correcto".

Para ti e para o tabancal vai um abraço fraterno
JD



HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (51)

Uma dívida por pagar

Nos primeiros dias de Fevereiro o Pedro devia ter vindo de férias à metrópole, todavia, o Pedro andava em conflito com a corja, ou melhor, a corja conflituava com todos que lhe dificultassem a actividade de locupletanço. Ora, o Pedro tinha muitas dificuldades de relacionamento, por via das gasolinas, da aberração das constantes viaturas paradas, pelo seu feitio não aderente, razões suficientes para ter sido aleivosamente prejudicado, com a impiedosa desautorização para partir em gozo das férias que tinha planeado. O parque automóvel era o espelho da corja, mas esta fazia-o um reflexo do Pedro, o chefe dos auto-rodas, na senda dos militares implicados para desresponsabilização de quem manda. E a corja é que mandava. E convinha-lhe assim. Os mapas para Bissau davam indicações falaciosas, que justificavam os consumos de combustível, que a corja, em sociedade com o tipo da Casa Gouveia, "empochava" (termo vulgar, derivado do francês poche - bolso, referido quando alguém enche os bolsos à custa do alheio). A corja também não tinha preocupações com o pessoal operacional, que se deslocava em viatura sem quaisquer condições de segurança, pois em caso de emboscada, ou de accionamento de minas, os estragos eram tão maiores, quanto mais compactado o pessoal seguisse. Tenha-se em conta, que raramente dispúnhamos de mais de duas viaturas operacionais, ainda reflexo do material herdado da companhia anterior, e incrivelmente aceite. E a impunidade reinava, porque a máquina militar não contemplava o controle dos gastos.

O Pedro, naturalmente furioso, chispava lume, quando não foi autorizado o necessário "passaporte" para férias. Nesse dia e no seguinte, revelaram-se inúteis as tentativas de solução para aquela crise. O Pedro, com o orgulho dos sérios, recusava-se a pedir batatinhas, a mendigar por um direito que lhe assistia, e era-lhe vedado. O capitão, e os sargentos, resmungavam à guisa de justificação, que as viaturas careciam de reparação. A reparação consistia em retirar peças de umas viaturas para outras, sendo que, algumas delas, já não teriam viabilidade. E a corja, que sempre protelou a recuperação do parque automóvel, só agora, surpreendentemente, manifestava preocupação. Estariam a adivinhar alguma inspecção? Quereriam ter alguma margem de segurança perante uma eventualidade dessas?

No segundo dia o Pedro lastimava-se de ter empatado a meia-dúzia de contos do bilhete do avião, que para as férias já nem queria saber. Decidi então comprar-lhe o bilhete. Quando me dirigi ao Trapinhos a comunicar-lhe que partiria de férias, ainda me dificultou a decisão. Quem ficaria com o pelotão, questionou. Por sorte, estava o alferes Leite no gabinete, que imediatamente referiu, que se encarregaria dequela matéria. O Leite era o segundo-comandante da companhia, e o Trapinhos não teve como não aceitar a solução.

Dei uma rapadela ao cabelo, cortei a mosca, vesti-me apinocadamente de número dois, e apresentei-me em Nova Lamego, no primeiro andar, onde pontificava o comandante com a partente necessária para o passaporte. Encontrava-se no varandim do gabinete em conversa, e esperei até ter oportunidade. Mandou-me avançar, enquanto questionava sobre a minha pretensão. Quando lhe estendi o papel e leu o nome, deu um sorriso por não me ter reconhecido, o que avalisava a minha apresentação. Entrou, assinou, e despedimo-nos. Fui direitinho à pista, onde um tenente do exército, velhote, fazia a lista de embarque. Naturalmente, já muita gente se tinha apresentado. O tenente disse-me que eu só embarcaria se houvesse desistências. Argumentei sem resultados, ele "não podia fazer nada". Ora, era mais que óbvio, que ninguém dos militares e civis iria faltar ao embarque.

Desorientado e mal conformado, dirigi-me para um bar no centro, mesmo em frente ao comando, que era onde costumava encontrar malta conhecida. Quando assomei à porta, logo ouvi o meu nome, chamado de uma mesa de páras. Estavam ali alguns militares com quem me tinha relacionado no mato e, particularmente um furriel, de quem não recordo o nome, acenava para ali me sentar. Foi o que fiz. Depois das apresentações, o pára mandou-me pagar uma rodada, a que acedi, mas contei-lhe que era o segundo azar que tinha naquela manhã. A minha cabeça andava longe dali, pois enquanto eles conversavam alegremente, eu só pensava no que teria que dizer convincentemente ao tenente. Depois de umas bejécas, manifestei vontade de voltar à pista, mas o furriel convenceu-me a ficar até à chegada do avião militar. Covenceu-me a pagar outra rodada. Quando o avião já devia estar na pista, antes de me levantar e despedir, bebemos novamente em saúde de todos. O furriel levantou-se, pegou na boina, convocou o condutor que abancava connosco, e mandou-me acompanhá-lo.

A fila alongava-se, e movimentava-se vagarosamente, apesar dos escassos lugares vagos, enquanto o tenente verificava a lista de embarque. O pára mandou-me segui-lo, fez uma palada ao tenente, e disse-lhe que eu estava requisitado pela companhia de pára-quedistas e tinha que embarcar para Bissau. E foi assim que cheguei à capital provincial. Depois foi só dirigir-me ao balcão da TAP e regularizar a situação.

Embarquei de manga curta tendo em conta os calores daqueles trópicos, e desembarquei de manhã em Lisboa com três graus positivos. Lembro-me de que só a meio da tarde senti necessidade de vestir uma camisola. Tinha pedido ao meu pai para convidar dois amigos para o jantar, e comi peixe.

Daquele furriel pára-quedista que me dispensou tanta gentileza, não tenho qualquer referência, mas ainda lhe estou devedor de outa bejéca, ou de um tinto refinado.

JMMD
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9914: História da CCAÇ 2679 (50): Uma motivação imprevista

9 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Camarada JD (gosto destas iniciai)
Isto das iniciais é bricadeira.Olha camarada a tua estória é mesmo porreirinha.E sabes porquê??? É que em quase todas as companhias existiam aquilo a que eu chamo "os senhores da guerra"com letra pequena claro... e depois haviam todos aqueles como nós para aparar com toda a "sujidade" desses senhores.E quando nós levantava-mos "cabêlo" esses senhores normalmente nos aplidavam de maus militares.
Hás veses eles até se convenciam que enguliamos toda a treta...mas na verdade e eu pelo menos o que queria era o finalzinho da comissão e fazer o que fiz ,que foi esquecer completamente o nome dessa "Corja".
Já agora é "imperduável"te teres esquecido do nome do furriel Paraquedista,daí eu acho que deves ser casticado até ao fim dos teus dias a emborcar uma bejeca em seu nome inglóriamente esquecido.
Camarada JD como entenderás estou a brincar falando um pouco sério e felizmente nem todos eram "Corja"e a prova é que dos "mmaus "nós jamais os esqueceremos pela negativa,só que eram tão "Corja"que até pensavam que era normal ser assim.
Bom já me alonguei no comentário ,mas na realidade o que gosto é mesmo de "palrar"o resto são tretas.
Um abração e faz por ter um bom dia.
Henrique Cerqueira

José Botelho Colaço disse...

Zé nós quase todos,[porque não há regra sem excepção],as boas acções passam,se esse furriel te tivesse tramado a viagem quase de certeza que o nome dele estava gravado na tua mente com letras de ferro em brasa.

Um Abraço.
Colaço.

antonio graça de abreu disse...

A Corja, a Corja? E o Eusébio Macário?
É que o "Eusébio Macário" é a segunda parte do romance do CCB.
Este CCB não é o Centro Cultural de Belém, é o Camilo Castelo Branco.

Abraço do camiliano,

António Graça de Abreu

G.Tavares disse...

Camarada JD
A sua história não é única.Posso dizer-lhe que em Angola passei por uma situação quase igual á sua com a diferença que os protagonistas além de mim erem um alf mil rodoviário em serviço numa secção de transportes do sector e um cabo que me safou por se lembrar de mim a bordo na ida para lá.O alf mil fez me pior que o ten velho lhe fez a si. O Cabo ao aperceber-se da cretinice do alferes fez-me sinal e disse-me "esteja amanhã ás 6 horas no aeroporto". E assim foi apesar de eu não estar muito convencido.ç Embarcou-me clandestinamente. Depois no Luso, um tenente velho ,este da FAP queria conferir a lista de passageiros. Felizmente que o cmdt do avião não autorizou e lá vim até Luanda a tempo de apanhar o avião da TAP para Lisboa. A historia não acaba aqui. Isto só para lhe dizer que "corja" existe em todo o lado com todas as idades e é permanente. Nos nossos empregos ainda hoje e se calhar cada vez mais se apanha "corja"e da pior espécie. Temos é que nos defender-mos deles.Como já estou reformado felizmente já estou safo.
Saudações de ex-combatente para ex-combatente.
G.Tavares

antonio graça de abreu disse...

No meu Diário da Guiné, escrevi em

"Cufar, 12 de Janeiro de 1974

Da pena aguçada, firme e criativa de Camilo Castelo Branco, respigo uma curiosa citação de “ O Retrato de Ricardina”, referindo-se à morte de um figurão que, noutros tempos, passara vinte anos em Angola:
“Morrera com 82 anos e foi sepultado com a banda de alferes e medalha de cavaleiro da Torre e Espada, prémios de serviço em África, os quais galardões custaram a Alexandre Moniz seiscentos mil réis com que o ministro remunerador se galardoou, incitando destarte os brios dos soldados mantenadores da honra nacional nos presídios africanos.”

Abraço,

António Graça de Abreu

Luis Faria disse...

Amigo José Dinis

Mais uma estória que traduz muito da vivencia por aquelas bandas e naqueles tempos.
Só naqueles tempos e bandas???

Em muito na vida,"o mal de uns é bem de outros" e não restam dúvidas que os "amigos são para as ocasiões"

Por vezes uma cervejola no sítio certo,move montanhas!

Abraço
Luis Faria

manuel maia disse...

Zé,
A tua história fez-me recordar uma situação algo caricata que se passou comigo aquando da primeira vez que vim de férias...
A companhia alugara os serviços de uma avioneta civil para trazer correio,frescos,e transportar o pessoal desde Bissum/Naga (aquartelamento) até Bissau, e vice-versa) assegurando assim a tomada do avião na capital...
O dia de chegada semanal era a quarta-feira...
Estava este teu amigo "prontérrimo",mala feita, à espera da dita quando o tempo se foi escoando sem sinal do pássaro de metal...
Via rádio quando inquirimos Bissau sobre a não presença da avioneta constatamos que havia acontecido o lapso do não pagamento adiantado ( o contrato apontava nesse sentido...) e o sargento Ginja bem tentou que a dita ainda viesse mas...só para a outra semana.
Ora, no sábado deveria tomar o avião para a "metrópole" e sem avioneta não havia hipótese...
Alguém sugeriu uma evacuação pois dessa forma viria de certeza...
Falei com o Jorge,uma espécie de cipaio, que de imediato foi comigo e com o furriel enfermeiro,à procura de um doente à tabanca...
Ao fim de várias negas ( à ló...) "calhou em sortes" a visita até Bissau ,a uma velha muito velha de quem se dizia dever muitos anos ao mangueiro...
Mal solicitada via rádio,a evacuação não demorou mais de um quarto de hora...
Surgiu uma avioneta de um civil, com um fulano mais gordo que a gordura,que levava uma espécie de giga fechada onde tinha alguns "nhecs", e amarrada a esta estava uma cabrita pequena...
Pedi boleia ao piloto que de imediato me mandou sentar a seu lado ficando a velha e o gordo juntamente com o cabrito e os "nhecs" à rectaguarda.
A desgraçada, que nem sequer estava doente, acabaria por ter de se deslocar depois do aeroporto até ao hospital,para dias depois arranjar de novo transporte para Bissum.
Provavelmente terá sido uma das poucas,senão mesmo a única vez que foi a Bissau e indubitavelmente a primeira que se sentou num pássaro de metal para voar...
Ainda hoje desconheço se gostou,mas estou em crer que sim,pois não me recordo,depois do voo iniciado, que "tivesse pedido para saír"...
Isto reforça a informação que tínhamos sobre a força da "psícola"...
abraço
manuel maia

Manuel Carvalho disse...

Este poste e o comentário do Manuel Maia, também me fazem lembrar as minhas primeiras férias.Tinha viagem marcada para meados de Nov/68 na TAP, em 2 nov fui ferido ligeiramente com estilhaço de RPG num braço, o enfermeiro em Jolmete tirou o estilhaço e fez o tratamento e eu em 9 Nov viagei na coluna que veio fazer o reabastecimento até Teixeira Pinto, sentado na Panhard do meio e com um braço ao peito sem arma e a farda de passeio. Nessa coluna só tivemos uma mina anti-carro que foi rebentada, mas na seguinte em 5 Dez tiveram uma emboscada com um morto e vários feridos alguns graves. De Teixeira Pinto para Bissau já fui de avioneta. Quando cheguei a casa com o braço ao peito disse a minha mãe que tinha caído e espetado um pau no braço. Enfim outras vidas.
Um grande abraço para todos.
Manuel Carvalho
CCaç 2366 Jolmete

Luís Graça disse...

Meu caro Tony: Mesmo cansado, e a desoras, não quero deixar de te mandar um grande abraço de parabéns neste teu dia de festa... extensivo à gentilíssima esposa que espero se encontre bem. Vê se voltam a aparecer em agosto pela Lourinhã... LG