segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10281: Notas de leitura (394): Colectânea "Toda a Memória do Mundo", iniciativa da Câmara Municipal de Cascais, 2006 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 25 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Compra-se na Feira da Ladra e lê-se num só fôlego um livro que fala da memória, estudada por diversas ciências. E dá para discorrer sobre a reconstituição do puzzle das nossas memórias através do que publicamos, memórias individuais que convergem, por estranhíssimos trilhos, para aquilo que se convenciona chamar a memória coletiva em que assenta a coesão de qualquer povo.
Isto para dizer que sigo feliz na minha vida procurando ser útil com o registo e a interpretação de muitas memórias que vou conhecendo sob a forma de livros.

Um abraço do
Mário


Toda a memória das nossas guerras na Guiné

Beja Santos

Li com imensa satisfação e talvez com algum proveito a coletânea de intervenções do curso sobre a Memória que teve lugar no verão de 2006, iniciativa da Câmara Municipal de Cascais. Os intervenientes foram personalidades bem conhecidas, como é caso de Maria Filomena Mónica, João Lobo Antunes, Carlos Fabião e António Damásio. O organizador do curso foi José Manuel Tengarrinha, professor universitário jubilado. A estrutura do curso contemplou a experiência pessoal, autobiográfica (Maria Filomena Mónica e João Lobo Antunes), a memória no registo arqueológico (Carlos Fabião) a perda de memória e os mais modernos estudos para conhecer o funcionamento da memória e finalmente a conferência “Toda a Memória do Mundo”, com que António Damásio fechou o curso (“Toda a Memória do Mundo”, Esfera do Caos Editores, 2007).

Maria Filomena Mónica discorreu sobre as razões porque se lançara na autobiografia e explicou: “Escrever memórias não é uma decisão simples. Não apenas por causa das reações dos contemporâneos, mas por aquilo que, ao longo da redação, vamos descobrindo. Uma das relações mais dolorosas foi a de que o livre arbítrio é menor do que eu imaginara (…) Outro aspeto que me espantou, ao olhar o passado, foi a continuidade do ser humano. Antes do exercício, imaginava que a minha vida havia sido dominada por ruturas tão profundas que não podiam ter deixado de alterar a minha personalidade. Logo nas primeiras impressões, como o gosto de ser punida, era visível a minha impressão digital. Fui forçada a admitir que a vida é feita de escolhas, de acasos e de momentos únicos. Não sei, ninguém sabe, qual a ordem das prioridades” e termina assim: “O meu relato é verdadeiro apenas no sentido em que representa a minha verdade”.

João Lobo Antunes começa por nos advertir: “De todas as funções cognitivas, de todas as armas do intelecto, aquela cuja perda ou simples declínio mais assusta a vítima é, sem dúvida, a memória”. E descreve o ponto de situação da investigação sobre a memória onde se impõe a distinção da “memória automática”, que permite a prática automática de tarefas complexas, da “memória semântica”, uma espécie de arquivo de conhecimentos factuais e conceitos de uma “memória episódica” que é um sistema que permite guardar e evocar experiências prévias. Falou das suas memórias de pessoas e lugares onde se formou como médico, procura explicar alguns episódios marcantes da sua existência e concluiu, com uma pitada de humor sobre o que há de esquivo na memória, aquela porção de intangível que o continua a obrigar a procurar como de facto a medicina dele fizera um médico: “Se algum dia o descobrir, talvez volte para contar”.

O arqueólogo Carlos Fabião espraiou-se sobre os processos de construção das memórias coletivas, as grandes classes de fontes fundamentais para o historiador (as fontes voluntárias, constituídas por testemunhos destinados a servir de prova, e as fontes involuntárias que são aquelas que foram deixadas sem uma intenção específica de demonstrar fosse o que fosse.

Saltando agora as dissertações dos cientistas que estudam a biologia da memória num tecido vivo e as que se referem aos estudos sobre a doença de Alzheimer, chegamos a Damásio que começa por nos alertar que a memória é um tema central da neurociência cognitiva e da neurologia clínica, dizendo a seguir: “O recordar consiste no despertar do sono e no retorno mais ou menos fiel àquilo que foi a perceção original. Recordar não é a mesma coisa que abrir um livro numa certa página e encontrar precisamente, na mesma impressão e nas mesmas linhas, as mesmas palavras com a mesma pontuação. Recordar é reconstruir pouco mais ou menos”. E depois lança-se no empolgante das suas investigações, como o cérebro arquiva, como se sequenciam as imagens graças a movimentos musculares ou movimentos do interior visceral, a memória não é uma enciclopédia, são espécies de arquivo onde se podem ir buscar pessoas, lugares, objetos, palavras e símbolos, é uma espécie que se centra em sequências e que procede a encadeamentos, referindo pois as diferenças entre aquilo que se aprende facilmente e aquilo que requer esforço, e qual a intervenção das neurociências.

O nosso blogue tem, entre outros, o prepósito de reconstituir puzzles da memória: de comissões militares que ocorreram num período preciso, em locais determinados, em confronto com um inimigo que dispunha de meios, apoios, influências e determinada motivação; nessas comissões a memória individual pode apoiar-se em escritos, fotografias, documentação de uma unidade militar; a memória que se rebusca é também de alguém que se integrou ou, pelo contrário, veio a amaldiçoar experiências, factos da guerra, o próprio relacionamento humano; acresce que a pessoa que evoca agora tem um quadro ideológico que entra em conflito com essa experiência, e então tal memória é sufocada ou dá-se um novo entendimento a uma ocorrência, que poderá ser contestada por outros que a viveram naquele local, naquele dia e àquela hora. O espaço de memória que é o nosso blogue é um pouco como o cérebro é visto por Damásio: dispõe de toda a memória possível, da memória de tudo o que o cérebro já conhece e tudo o que pode vir a conhecer – as coisas em si mesmas e as coisas no tempo; os elementos com que se podem construir as coisas; e as fórmulas com as quais se podem construir sequências de coisas, ideias, movimentos, no tempo e no espaço. Por isso é que organizam os depoimentos, se fazem fichas, dossiês temáticos, tudo à procura de uma ordem que ultrapasse a verdade de cada um. Ao que parece, a nossa memória depende do funcionamento do hipocampo, a região do lobo temporal que também agrega o hipocampo propriamente dito. Isto quanto à memória de identidades e símbolos. A memória das sequências depende dos córtices sensoriais e motores.

É assim que se constroem livros, e voltando a Damásio a memória cerebral de cada um de nós tudo pode adquirir e tudo pode recordar, é um arquivo pessoal, filtrado pela consciência e a personalidade de cada um. Uma outra coisa é a memória coletiva que esbarra com preconceitos de diferente ordem e até a manipulação dos dados históricos e precisa de os superar, porque a História não é um modo de uso para contentamento de uma dada porção da sociedade. Aquela nossa comissão, naquele preciso lugar, naquele tempo, com os dados que se juntaram e sobre os quais a memória se consola ou revolta, é um dado fulcral para a organização da memória coletiva. As ciências sociais não assentam em memórias dos indivíduos mas têm que as conhecer, estão nelas a imagem que o combatente teceu sobre a sua experiência de guerra, as populações com que coabitou, nessa imagem até pode constar o que então se pensava sobre a utilidade em ali combater e fazer confronto, à luz de memórias individuais sequenciadas ao longo da guerra, dos porquês da independência do então inimigo. Acresce este dado que todos nós podemos verificar: cada ano que passa, há mais memórias individuais disponíveis a trabalhar para a memória coletiva, ao envelhecer o combatente reconhece que pode ser muito mais sincero e, recorrendo a uma observação de Maria Filomena Mónica, esse relato é verdadeiro apenas no sentido em que representa a verdade de cada um ilumina a investigação histórica, a memória fulcral dos povos, porque a história é o que não ficou esquecido, é constituída por todos estes registos do homem no tempo. E nesse sentido o nosso blogue é um volumoso documentário e um precioso alfobre de memórias individuais ao alcance dos investigadores.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10276: Notas de leitura (393): Sobre a Guiné e Outras Ideias, Revista Vida Mundial de 16 de Julho de 1971 (José Manuel Matos Dinis)

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