sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10296: Notas de leitura (395): Guiné-Bissau, Um Estudo de Mobilização Política, de Lars Rudebeck (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 3 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Foi graças ao empréstimo de António Duarte Silva que tive acesso a este estudo certamente impar na bibliografia do PAIGC.
Este professor de Uppsala (Suécia) lançou-se numa investigação onde, ao que parece, não teve concorrência: estudou em profundidade a orgânica socioeconómica e social do PAIGC no interior da Guiné e acompanhou de perto o processo eleitoral que desembocou nas eleições para a Assembleia Nacional, em 1972.
Lars Rudebeck irá aparecer mais tarde como investigador no INEP, diferentes trabalhos seus irão aparecer na revista Soronda, hoje acessível porque os seus números foram digitalizados e são uma fonte de conhecimento do maior interesse.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau, um estudo de mobilização política

Beja Santos

O leitor e confrade tem interesse em, antes de começar a ler esta recensão, procurar saber mais sobre o currículo de Lars Rudebeck (foto à direita), um cientista de renome internacional que ensinou em Upsala, na Suécia. O professor Lars Rudebeck concluiu à volta de Julho de 1974 este livro (publicado igualmente em 1974), exatamente no tempo em que o presidente da República António de Spínola anunciava a nova era da descolonização, pouco antes da República da Guiné-Bissau ter sido acolhida nas Nações Unidas. Trata-se de um estudo de alto gabarito e singular no panorama de todos os trabalhos efetuados sobre a ideologia, a orgânica e a emergência da ordem social instituída pelo PAIGC, o investigador revela um conhecimento detalhado da realidade guineense, visitou as zonas controladas pelo PAIGC em 1970 e 1972 e conversou com Amílcar Cabral, com quem se correspondeu até ao seu assassinato. Da gama dos diferentes estudos e reportagens efetuados antes ou pouco depois da independência, este goza de uma particularidade: o cientista social e político procedeu junto das populações afetas ao PAIGC a entrevistas diretas nas chamadas áreas libertadas com destaque para Sara-Candjambari, e acompanhou, em 1972, o processo de recenseamento e votação para a Assembleia Nacional.

A investigação compreende essencialmente as seguintes partes: passado e presente da Guiné e de Cabo Verde em relação à luta de libertação; a ideologia e os objetivos nucleares do PAIGC, a vida nos territórios libertados e um punhado de reflexões sobre a essência teórica deste movimento de libertação, justificando, dentro da sociologia política, o significado que o cientista dá para mobilização política.

Dir-se-á quanto ao que nos revela sobre a Guiné e Cabo Verde que as notas históricas estão corretas e olhando para os quadros estatísticos de educação e saúde, por exemplo, fica-se com uma ideia clara sobre as diferenças abissais no desenvolvimento destes dois territórios. O autor nunca questiona se existe ou não uma base de sustentação para a dita unidade Guiné-Cabo Verde, menciona-a como decorrente do ideário do PAIGC. No tocante à Guiné-Bissau, que é o centro do estudo do investigador sueco, ele lança um olhar em concordância com a leitura feita por Cabral quanto às pessoas, as explorações económicas, pega mesmo no memorando que Cabral escreveu aquando da sua primeira visita a Londres para referir a natureza rural do país e como a luta de libertação iria assentar na conscientização dos agricultores. Refere-se às relações internacionais do PAIGC tanto no campo africano, as ajudas recebidas da China, URSS e aliados, e lista os apoios recebidos dos países ocidentais, com destaque para os escandinavos. Explica a evolução da guerra, as políticas de Schulz e Spínola, os acontecimentos de 1973, e, por fim, a independência. Sobre o assassinato de Cabral, toma em consideração os factos enunciados por Aquino de Bragança, publicados em Afrique-Asie, a existência de três grupos conspiradores: o primeiro, constituído por militantes de longa data alegadamente recrutados pelos serviços secretos coloniais, caso de Rafael Barbosa ou Momo Touré; o segundo, incluiria elementos corruptos ou descontentes com a linha política do Partido e que se tinham tornado elementos recrutados pela PIDE; um terceiro, onde se incorporavam peritos contraguerrilha, lançados em Conacri como desertores do exército colonial. Escusado é dizer que estas reflexões no essencial eram infundadas, foram um expediente usado para desviar a questão essencial do contencioso entre guineenses e cabo-verdianos.

O estudo da ideologia é minucioso. Pega no conceito de “a arma da teoria” e comenta como de uma estrutura marxista Cabral faz uma leitura da sociedade e do desenvolvimento na Guiné para distinguir que a libertação não pode ocorrer nem consolidar-se com base nos cânones nas lutas de classe. Cabral acentua que a exploração colonial na Guiné não obedece a um plano imperialista e que a burguesia existente na Guiné em nada tinha a ver com a burguesia dos países em luta contra o imperialismo, mas não deixa de chamar a atenção para as questões tribais que a prática política do PAIGC deverá superar. E debruça-se, a seguir sobre os aspetos concretos da ideologia nas dimensões políticas, económicas, sociais e culturais na prática do PAIGC e como se converteu esta ideologia em ação política, Lars Rudebeck procede a uma análise das “Palavras de ordem gerais” elaboradas por Cabral, analisa-as a partir dos princípios da China Popular, do Vietname e da Argélia. É nestes documentos que Cabral refere a necessidade de desenvolver a agricultura nas regiões libertadas, os guerrilheiros deveriam repartir o seu tempo ajudando os camponeses. O que há de fundamental a reter é que o pensamento de Cabral não se baseava numa cartilha ideológica consistente, os próprios armazéns do povo que se pretendia que organizassem a distribuição de bens de consumo nas áreas libertadas funcionavam como local de troca, para gerar o sentimento de que os libertados ponham os seus meios de produção ao dispor dos outros.

Tomando à letra a verificação do documento “Palavras de ordem gerais”, o cientista analisa os conceitos de centralismo democrático em que Cabral assentava a democracia revolucionária, passando para as considerações sobre a ordem social, passo em revista a orgânica política e administrativa do PAIGC (Conselho Superior da Luta, Comité Executivo da Luta, Conselho de Guerra, Secretariado Permanente, órgãos de topo, e depois disseca a base, a partir dos comités de tabanca até aos comités nacionais, mais tarde as frentes Norte e Sul. É este o nível de orgânica, entre tabancas e regiões que o autor faz entrevistas; segue-se uma análise das organizações militares, do sistema judicial e como foi evoluindo, até 1973, a ideia de Estado separado do Partido. Explica detalhadamente a campanha eleitoral de 1972 e dá os números para eleição da Assembleia Nacional.

O seu estudo conclui uma digressão sobre a organização socioeconómica e cultural do PAIGC, desvela o funcionamento dos armazéns do povo, quais as mercadorias aqui transacionadas, passa depois para os cuidados médicos e de saúde, a rede hospitalar e pessoal médico, quais os postos sanitários e brigadas de saúde e sua localização; refere a política de educação, os conteúdos e como, por via da cooperação, o PAIGC solicitou bolsas em áreas-chave: ciências agronómicas, medicina, economia, direito, várias especialidades na engenharia, e humanidades, e depois dá números dos bolseiros até 1973 e reserva uma última palavra para a posição das mulheres na luta armada e nas áreas libertadas.

As reflexões finais centram-se no conceito de mobilização política que ele associa a um processo político e a mecanismos através dos quais os líderes organizam diferentes apoios para a luta revolucionária, apelando tanto à libertação como à necessidade de lançar as bases de uma satisfação material e ao respeito pela dignidade humana. Dos seus inquéritos, o cientista não esconde que encontrou estruturas autoritárias e profundamente hierarquizadas, baixo nível educativo do povo em geral e casos patentes de inércia social, a despeito de uma capacidade inequivocamente agressiva dos grupos armados.

Em suma, um estudo que devia ser retomado em futuros trabalhos históricos, dado o seu ineditismo e profundidade de análise social.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10281: Notas de leitura (394): Colectânea "Toda a Memória do Mundo", iniciativa da Câmara Municipal de Cascais, 2006 (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

Era bom que um cientista sueco entrevistasse hoje todos os suecos que passaram e "cooperaram" e todos os vouyeristas nórdicos que visitaram a Guiné-Bissau, e o congo belga de Harmaskjoeld, e fizesse um estudo daquilo que foram deixando atráz deles.

Claro que a porcaria que oromoveram não desculpa a escravatura de 500 anos, é antes a cereja em cima do bolo.

João Carlos Abreu dos Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Carlos Abreu dos Santos disse...

... façamos um exercício de decomposição, da presunçosa frase de apresentação deste postal:
«orgânica socioeconómica e social do PAIGC no interior da Guiné e acompanhou de perto o processo eleitoral que desembocou nas eleições para a Assembleia Nacional, em 1972».

1 - a dita «orgânica socioeconómica e social do PAIGC», desde sempre constituiu, tanto outrora como agora - quer no exterior, quer muito fundamentalmente «no interior da Guiné» -, um notório "wishful thinking", ou, dito de outro modo, um "mito urbano" criado e alimentado essencialmente para consumo nos areópagos da ONU, da OUA, da Tricontinental, da OSPAAL, dos Não-Alinhados, etc, etc.;
2 - posto o que, se o citado «o cientista social e político» Rudebeck «acompanhou de perto» fosse o que tivesse sido, não terá sido «no interior da Guiné», antes sim na Guiné-Conackry, muito particularmente na capital de Sekou Touré e junto da 'entourage' cabralista;
3 - como já então (Julho de 1974), e mesmo desde anos antes, se sabia, jamais existiram na Província da Guiné Portuguesa quaisquer «zonas libertadas», pelo que o dito "cientista" se prestou então ao papel de "papagaio de serviço" ao PAIGC e seus apoiantes internacionais e (!) portugueses anti-patriotas... ;
4 - não existiu qualquer «processo eleitoral», de que tipo fosse, quer na retaguarda do PAIGC e de modo algum no próprio território da Guiné Portuguesa;
5 - pelo que, não ocorreram quaisquer «eleições»;
6 - tal como o arremedo de uma «Assembleia Nacional» - realizado "no interior" (projectado em 1973 para Madina do Boé mas ali impossibilitado), ou em qualquer outra parte -, jamais poderia constituir-se "representativa" de uma Nação, em vista da ausência de "delegados" de cada uma das etnias existentes na Guiné (então) Portuguesa;
7 - e por último, mas não o menos importante, o ano em que ocorreu a tal "Assembleia", referido como... «1972»... ?!

Ao entendimento do recensor, de que "aquilo" - seja, toda aquela panóplia propagandista -, se trata de «um estudo de alto gabarito», contraponho como sendo uma mal-amanhada fabricação pseudo-científica, àquela data (Jul74) difundida com iniludíveis propósitos de política internacionalista, no que à Suécia dizia respeito.
O recensor, por intermédio deste blogue - dedicado à partilha de memórias de quem cumpriu serviço militar na Guiné -, presta mais um excelente serviço à dignidade da causa Portuguesa e de todos os Portugueses que ali cumpriram o seu dever -, trazendo ao conhecimento dos internautas mais outro livrinho pró-IN; e através de cuja resenha, fica demonstrado que, em suma, o sr. Lars Rudebeck foi um refinado aldrabão científico!
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antonio graça de abreu disse...

Propaganda barata pró In, datada, requentada, completamente ultrapassada pela História. Mas de "alto gabarito".

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Zonas libertadas não, isso nunca. Zonas abandonadas sim. Por estratégia.

MAS uma estratégia gizada na nossa incapacidade para as defender.

É como a história do copo meio cheio ou meio vazio.
Cada um vê como lhe dá mais jeito.

Eu por mim acho que o copo já estava meio vazio e a única questão que se põe, é quando o mesmo ficaria definitivamente seco. O resto são balelas.

Antonio Almeida