quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10438: Do Ninho D'Águia até África (12): O Madragoa (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (12)

O Madragoa

O Madragoa era um militar com quem todos simpatizavam. Nasceu na capital de Portugal, no bairro da Madragoa, e falava com um sotaque que todos tentavam imitar. Ao falar, quase que cantava, e mexia os lábios duma maneira que o tornava único. Sabia boxe, e ao caminhar, com um jeito gingão, balançando o corpo, cigarro “três vintes” na boca, sempre tinha uma maneira diferente de saudar os militares por quem passava. E os militares que por ele passavam, já diziam, tentando imitá-lo:
- Tásss booom, hó pááá.

Ele ria-se, e dizia, debaixo dum sorriso matreiro:
- Touuu porreiroooo, embora aqui não haja “garinas”, tááá.

“Garinas”, creio que era garotas. Bem, mas vamos à história.

Para os lados do norte, na região do Oio, para lá do rio Cacheu, depois de intensa floresta e de um pequeno rio afluente, que não era mais do que a continuação de alguns pântanos, havia uma aldeia considerada ponto estratégico, devido à sua localização. Ao norte da aldeia, por alguma extensão, não havia rios ou pântanos, era perto da fronteira com outro país africano, era uma área com um excelente potencial, para um futuro corredor de abastecimento das bases dos guerrilheiros, que entretanto se instalavam, com alguma agressividade, construindo “casas mato”, que era como disignavam as suas pequenas bases, na região do Oio.

O comando a que o Cifra pertencia, depois de trocar mensagem atrás de mensagem, durante bastante tempo, com o comando do território na capital da província, informando de que havia notícias de infiltração e passagem de guerrilheiros, assim como material de guerra, na área, ao fim de algum tempo recebe autorização para dessa aldeia fazer um posto avançado. E o Cifra, pensava:
- Quem serão os desgraçados dos militares que para lá vão ser mandados?

O comando, passado mais ou menos uma semana depois de receber autorização, destacou para essa área, primeiro, parte de uma companhia de infantaria que tinha chegado há pouco à província, portanto com pouca experiência no conflito, mas reforçada com uma secção de alguns militares de um pelotão de morteiros, já com alguma experiência em combate.

Para ajudar na instalação destes militares, colaborou a Armada com duas lanchas de patrulha dos rios e pântanos, que os transportou, assim como algum equipamento militar.

Depois de os militares se instalarem um pouco distantes da referida aldeia, num local onde o terreno era seco, que ficava um pouco ao norte mas quase encostados ao tal afluente de rio, que não era mais do que um pântano, que já aqui falámos, que quando a maré subia aumentava o volume do seu caudal, formando uma extenção de água que se estendia para sul, por bastante distância, e onde entenderam que era o lugar ideal, construiram um pequeno acampamento com paredes feitas com sacos de terra e cobertas com alguns troncos de palmeiras e folhas de zinco, onde por sua vez, também colocavam sacos de terra, para mais protecção; alguns abrigos, abertos no chão onde o terreno era mais seco, também cobertos com troncos de palmeiras, folhas de zinco e sacos de terra. Enfim, de pouco a pouco, construiram uma pequena fortaleza, onde se instalaram.

O único meio de transporte que tinham para se deslocar, e ter contacto, com qualquer unidade militar avançada na zona, era uma pequena lancha com motor fora de bordo, com capacidade para no máximo cinco pessoas, atravessarem o rio e pântanos, e virem de encontro a essa mesma unidade, que previamente avisada pelo serviço de transmissões, os esperavam em terra firme.

Era assim que eram abastecidos, semanalmente de alguns víveres e géneros de primeira necessidade, assim como o correio. Estavam praticamente isolados. A maior parte dos militares, para passarem o tempo, aprendiam algumas habilidades. Por exemplo, com uma simples bola de futebol, davam umas centenas de toques, sem deixarem a bola tocar no chão. Outros, depois de algum treino, bebiam líquidos com a boca aberta. Corriam, dando saltos mortais, como nos jogos olímpicos. Com a G3 davam tiros, com a arma no ombro, para trás, acertando no alvo com a ajuda de um espelho. Quase todos deixavam crescer a barba e grandes bigodes, competiam entre si, a ver qual apresentava o maior bigode.

Passado uns meses, alguns militares começaram a adoecer. A principal causa era uma espécie de paludismo. Febre, tonturas, vomitar, cor amarelada da pele do corpo, e logo lhe diziam:
- “Estás apanhado”.

Eles queriam água limpa, pura, para beber, mas não havia. Era a dos bidons que se tirava do rio, turva, e depois assentava no fundo, ao fim de umas horas, que se fervia alguma, outra não. Nessa altura, começou a funcionar o meio de transporte de emergência, que era o helicóptero, e começou a evacuá-los. Vinham dois e três de cada vez. Iam para o hospital da capital da província.

Como até aquela data não fora detectada qualquer presença, vestígios ou possível movimento de guerrilheiros na área, pelo menos não havia reportes nesse sentido, pelas forças militares que lá se encontravam, pois se os guerrilheiros se movimentassem na zona, não era durante o dia, mas sim de noite, e de noite, não havia patrulhas, e também não iam atacar a pequena fortaleza, pois com essa atitude iam denunciar a sua movimentação na referida zona, e com toda a certeza que depois disso acontecer, os militares iriam ser reforçados, iriam dificultar toda a sua movimentação, mas continuando com a narração, o comando, decide fazer regressar quase todos os militares.

No seu lugar, deslocou para lá, duas secções de combate, uma duma companhia de infantaria e outra dum pelotão de morteiros, de mais ou menos sete ou oito homens, cada uma, que seriam rendidos todas as semanas.

Aqui, começou a trabalhar o tráfico de influências.

Das secções de combate nomeadas, uns não queriam ir, davam baixa de doentes, outros queriam ir, porque era pura liberdade nessa semana. Levavam vinho, comida, ninguém lhes dava ordens, dormiam quando queriam, não tinham que sair, quase todos os dias, a bater as zonas nas matas próximas do aquartelamento. Enfim, o costume, nestas situações. Havia os que davam dez maços de cigarros, para não irem, e os que davam quinze, para irem no lugar de outros.

Já lá vão quase dois meses, não houve situação de perigo, a zona, afinal era sossegada, a semana passa rápido, já iam com muito mais prevenção, e não adoeciam como os primeiros. A população local, era mais ou menos conhecida, já havia alguns que iam duas vezes por mês, e tinham lá namorada, como era o caso do Madragoa.

(A história de acção, que se segue, o Cifra teve conhecimento pelos relatórios que lhe passavam pelas mãos, de informadores que os militares tinham em diversas zonas da província, pois muitas vezes era por essas informações que os militares movimentavam tropas no terreno)

Por volta das duas horas da manhã, uma coluna a pé, possivelmente vinda da fronteira com outro país, segue em fila indiana. Esta coluna é composta por guerrilheiros e transportadores de material de guerra. Na frente vão nove guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a disparar e catana à cinta. O primeiro vai distanciado do segundo, aproximadamente vinte metros, o segundo do terceiro, mais ou menos dez metros, os restantes sete, mais ou menos dois metros uns dos outros. Seguem-se vinte e sete mulheres guerrilheiras, com a mesma distância, de aproximadamente os mesmos dois metros, umas das outras, transportando à cabeça, alguns pesados fardos, outras cestos e caixas de material de guerra, seguidas por outros nove guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a disparar, e de catana à cinta, com a mesma distância de dois metros um do outro, excepto os dois últimos, que mantinham a coreografia do primeiro e do segundo.

O Madragoa, que já dormia com a namorada na palhota da aldeia, que ficava um pouco retirada do acampamento, ouvindo um pequeno barulho que lhe parecia passos constantes, vem cá fora espreitar.

Escuta, avança uns passos com curiosidade. Não viu mais nada. Foi golpeado, no lado esquerdo, pelo golpe de forte catanada que lhe atingiu o coração. Levou mais uns tantos golpes, mas deverá de ter morrido ao primeiro golpe.

Nesse momento, mais dois militares dormiam nas palhotas da aldeia, que regressaram ao acampamento, pela madrugada, com sempre faziam, sem suspeitarem de nada.

Ninguém sabe se foi a curiosidade do Madragoa que o matou, o que é certo é que pela manhã, a namorada tinha desaparecido da aldeia.

O Comando, quando recebeu o reporte da morte do Madragoa, mencionava que ele ia dormir com a sua namorada sem o comandante da secção ter conhecimento, pois ia para a aldeia, pela calada da noite, e regressava ao acampamento pela madrugada, pelo menos era esta a versão do reporte oficial. Nunca foi mencionado nada a respeito dos outros dois, que deviam ter aprendido a lição com o exemplo do companheiro morto à catanada. E era natural que o comandante da secção não soubesse, ou se sabia, colaborava, pois era natural entre companheiros facilitar a vida uns aos outros.

Mais tarde, pela rádio de uma emissora, que todos diziam, funcionava num país vizinho, que, com o seu programa patriótico, insentivava os naturais à luta e desmoralizava as tropas de Portugal, descreveu toda a história, dizendo entre outras coisas que: Mais uma mulher patriótica e corajosa, que depois de matar o invasor militar que a raptou, libertou-se, e com a ajuda dos nossos corajosos combatentes, que não dormem, para abastecer as nossas bases, e que estão sempre vigilantes nesta luta de libertação..., esta mulher patriótica, juntou-se, vindo reforçar o nosso movimento, blá, blá, blá.

Propaganda. Só Deus sabia.

O Cifra, ao ter conhecimento da morte do Madragoa, com quem confraternizava, e com quem algumas vezes treinava boxe, e sempre lhe dizia:
- Olha-me nos olhos. Os olhos é que comandam os meus movimentos.

Sim os seus olhos ficaram gravados para sempre na sua memória. O Cifra sofria, chorava sem lágrimas, perante todo este cenário, de morte e de guerra, em que estava envolvido, sem ter dado um passo, para que ela existisse.

E nas suas meditações, algumas vezes falava alto, dizendo: Por que razão me tiraram do meu vale do Ninho d’Aguia, onde ouvia todas as manhãs o meu comboio das seis e meia, o berrar das minhas ovelhas pedindo mais erva, da minha família, da minha represa no lameiro, do meu rio e da companhia das minhas amigas, que pelo menos mostravam que gostavam de mim.

E continuava, virando a cara para o céu: Se é que existe alguma divindade aí em cima, a que nós terrestres chamamos Deus, por favor liberta-me e tira-me deste sofrimento.
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Nota de CV:

Vd último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)

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