terça-feira, 2 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10469: Memórias de Gabú (José Saúde) (25): Deus, virtualmente presente. A fé na guerra


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Deus, virtualmente presente

A fé na guerra

A inabalável fé que cada um de nós, cidadãos comuns do mundo, suporta ao longo da vida, afigura-se como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser susceptível de hediondas concepções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos falsamente concebidos. 

A guerra, melhor, viver no terreno as agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que permitisse sentir um melhor estar emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas que a vida nos contempla, conclui-se. 

Assim, partindo do princípio que a fé, embora na concepção dos laicos a convicção seja irreal, remeto-me ao sentimento nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou. 

Penso que cada um de nós perfilha uma ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças espirituais que em momentos extremos nos conduz a evocar a palavra de Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. 

A minha experiência no conflito da guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual. Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia-a-dia com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas ininterruptamente acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que, por sinal, não dava folgas. 

Hoje, com a distância do tempo a prevalecer, confesso que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha auto-estima, assumindo em momentos considerados chaves, de apuro, atitudes que me catapultaram, e sempre, para virtuais sinais de esperança. 

Aliás, esta iniciativa da minha querida mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais modesto cidadão luso. A fé incutia na família um estado de espírito que gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e depararem-se com pagamentos de promessas. 

Naquela tarde o silêncio protelava-se com o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia ordens de saída, tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato. Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos. Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas. 

A polícia do Estado – antiga PIDE – era uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se. Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido e tiros, ou desgraças, passavam completamente alheios ao nosso bem-estar. Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os familiares e os amigos rejubilavam entretanto com as boas notícias recebidas do combatente. 

As leituras de livros em tempos de pausa favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da então namorada sobre a minha mesa-de-cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com leite e uma ventoinha que me deleitava o corpo, lia atentamente um livro intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures num universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência. 

A luta, não titânica, travava-se, agora, entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos, do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas, dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho no mato, ou dos momentos extremos e de ansiedade pura que a guerra sensatamente impunha. 

Ao lado, um camarada entretinha-se numa leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao conflito, mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens. 

Neste eloquente vaguear pelo mundo do ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a dignidade acaba por resvalar para conflitos incontornáveis!  

Revia-me, na altura, como uma pequena peça que integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar, apenas, a palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé inacabada. Lembrava-me das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à Igreja; às missas domingueiras; as suas devoções, da sua entrega ao Pai Todo Poderoso. 

Crenças que se estendiam aos ilustres soldados enviados para o então Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa ou em redor de um balcão de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia. 

Restava a inequívoca verdade que a fé na guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com o IN. Por outro lado ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria agradeceu toda a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no rumo das nossas vidas? Responda quem de direito. Nós, piamente esperamos, como sempre! Que Deus os oiça e ilumine as suas mentes.


Mini-guião e emblema de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


1 comentário:

José Pedro Neves disse...

Amigo José Saude, nem sabes como revejo os meus pensamentos de então, na tua escrita. Os rituais nas Familias, pelo filho que está longe, na guerra, deveria sêr possivelmente igual, com velas, santos num altar improvisado, idas á missa e o rezar do terço. Todos estes rituais, também eram praticados pela minha saudosa mãe.
Saude, tu consegues descrever as situações, como se fossem imagens que nos estão a passar diante dos olhos! - Um Abraço de Amigo.