sábado, 6 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10488: Do Ninho D'Águia até África (15): O "Caneta" (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (15)

O Caneta

O carro da “Psico-Social” foi um invento, creio que do comando da unidade militar a que o Cifra pertencia, pelo menos era o que constava na altura, mas talvez não, talvez fosse um invento de Lisboa ou do comando militar da província, que na altura era comandado por um general cujo segundo nome, era Schulz, difícil de pronunciar, parecendo que este nome, não era de origem portuguesa. Alguns até brincavam com a situação e diziam:
- Este nome, deve de ser de origem alemã, ou de descendentes muito antigos, daquelas princesas germânicas, que se intrometeram na família real inglesa, herdou este território e o governo de Portugal o mandou para aqui, para olhar pelos bens que os seus antepassados lhe deixaram.

Ao que outros logo respondiam:
- Mas se isso é verdade, não tinha nada que me mandar para aqui, pois eu não sou seu escravo porque não lhe pertenço, o meu pai e a minha mãe tinham cédula de nascimento e não carta de alforria.

Enfim, coisas para rir, que não têm qualquer senso, mas quem sabe, se lermos com alguma atenção, as diversas versões, algumas contraditórias, que foram publicadas em todo o mundo, contando a história do continente Africano, moralmente, talvez tivessem só um bocadinho, mesmo muito pequenino, de razão, pois no caso de Portugal, não nos podemos esquecer que era a Companhia Ultramarina, não se sabia com que capitais, com armazéns, barcos e cais de embarque, nas principais vilas ou lugares importantes, que negociava e transportava, quase todos os produtos que saíam da então província da Guiné.

Com todo este blá, blá, blá, o Cifra não está querendo associar a Companhia Ultramarina, à “Royal African Company”, nem pensar, longe de nós, semelhante comparação. Mas continuando com a narrativa, pois já estamos a ir longe de mais com pormenores, pois o Cifra, está a falar única e simplesmente pelo que na altura em que lá se encontrava e todos nós tivemos oportunidade de observar, e que não deve ter nada a ver com a guerra que todos nós, antigos combatentes, estivemos envolvidos e que ainda hoje, os que têm o privilégio de estar vivos, recordam e continuam a sofrer com algumas dessas malditas recordações. Portanto vamos continuar, esta viatura era um Unimog, coberto com uma cobertura de pano oleado, tanto na cabine como na zona de carga, tinha instalado uma aparelhagem sonora, com quatro altifalantes, colocados no topo da viatura, tipo funil, tal como se usava nos arraiais das festas e romarias, nas aldeias e vilas de Portugal.

A missão desta viatura era percorrer algumas aldeias, nas redondezas do aquartelamento e não só, distribuindo panfletos, alguns com a fotografia de um militar, com uma arma à tiracolo e com uma criança africana ao colo, dizendo, num português acrioulado, que os militares estavam ali para proteger, ajudar, ensinar, curar feridas, dar medicamentos, enfim, fazer tudo o que o Criador ainda não tivesse feito.

Algumas vezes, o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que fazia de doutor, ia na viatura, com uma mala à tiracolo, com uma cruz vermelha desenhada na frente, onde levava, entre outras coisas, comprimidos, álcool medicinal, tintura e ligaduras, e desinfectava com álcool, depois pincelava com mercurocromo, deitando em seguida um pó branco, envolvendo com ligaduras, algumas feridas nas pernas e nos pés, que alguns africanos, já com idade avançada, tinham principalmente dos joelhos para baixo, dizendo mais ou menos isto:
- Mézinho do sinhô dotô, faz manga di bom

Era só o que o “Pastilhas” sabia dizer em português acrioulado.

Quase todos sabiam, que após a viatura abandonar o local, as ligaduras eram removidas, para os mais novos enrolarem e fazerem uma pequena bola de futebol, sendo as feridas lavadas com água, às vezes suja, e as moscas e outros insectos iriam poisar de novo nelas.

A aparelhagem sonora era utilizada por um africano em quem os militares confiavam, que falava em crioulo, ou outro dialecto, dizendo o que só ele entendia, pois os militares não percebiam.

Esta viatura, depois de fazer a sua viagem, quase diária, ficava estacionada, dentro do aquartelamento, perto do local onde o Cifra dormia, e era aí que o “Caneta”, pegando no colchão, no travesseiro e no rádio portátil, ia dormir, quando os ataques de tosse contínua, o apoquentavam, e ele não queria acordar, ou molestar, com os ruídos da sua tosse, os seus companheiros.

O Caneta era um cabo escriturário, de estatura média, cara de criança, pois quase não tinha barba, com uma madeixa de cabelo preto, caída para a frente, que lhe cobria os olhos e parte do nariz, que ele arredava para os lados com a mão, segurando sempre um lápis ou uma caneta, de onde, talvez daí lhe viesse o nome. Era ele quem fazia as “ordens do dia”. Fazia cinco cópias, que distribuía por diversas repartições do aquartelamento e arquivava o original, às vezes fazia mais uma cópia, quando algum militar era louvado ou qualquer outra coisa digna de registo e entregava por mão própria a esse militar. Também escrevia, e lia, os aerogramas e as cartas a alguns militares menos habilitados para o fazerem, portando sabia coisas privadas, desses militares, que confiavam nele e gostavam da maneira com ele escrevia, porque começava sempre os seus escritos com uma letra maiúscula cheia de floreados, pois tinha alguma habilidade para o desenho, e às vezes fazia o rosto de alguns, mais populares, como era o caso do Curvas, alto e refilão, com uma arma na mão.

O Caneta não comia quase nada, quando a comida vinha para a mesa, ele procurava uns bocaditos de qualquer coisa, que colocava na boca, mastigava e raras vezes engolia, só gostava de pão, bebia muita água, por vezes quando lhe apertava a sede, bebia dos bidons de água, que estavam a arrefecer dos três furos que havia ao fundo do aquartelamento, de onde saía água quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, por vezes com pó e insectos mortos ao de cima, onde ele soprava a superfície, mergulhando a sua cara de criança, incluindo a madeixa de cabelo preto, bebendo por alguns segundos, levantando a cara e com alguma satisfação dizia:
- É suja, mas é boa.

Mais ou menos aos treze meses de estadia na província, começou-lhe aquela tosse. Primeiro era só um catarro, depois era mesmo tosse, ficava aflito quando alguém estava a fumar perto dele e a tosse quase o sufocava, os olhos ficavam vermelhos, colocando a mão na garganta em sinal de aflição.

Os colegas sabendo dessa situação, não fumavam junto dele. Foi ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que o analisou, mandou-lhe abrir a boca, escutou-lhe o peito e logo lhe disse:
- Tens que ir amanhã, no carro dos doentes, a uma consulta ao hospital da província, estás a ficar muito “infezado”.

Lá foi à consulta, onde o doutor o analisou, lhe mandou tirar algumas radiografias e o mandou embora de regresso à unidade militar, e que fosse de novo à consulta na semana seguinte, para mais detalhes.

Vai à consulta na semana seguinte e muitas outras. Anda com uns comprimidos e com um frasquito de xarope no bolso, de onde toma uns goles, sempre que é atacado pela tosse contínua. A tosse agora, prolonga-se por minutos, fica com cor vermelha no rosto, os olhos chorosos, e passado uns minutos de tosse, na sua boca, aparece alguma saliva com uma cor vermelha, que limpa a um farrapo, restos de uma camisa do Cifra, pois o Caneta já tinha gasto todos os farrapos da sua farda.

Na próxima sexta-feira vai de novo ao hospital da capital da província, no carro dos doentes, vê um novo doutor, pois o antigo tinha ido para Portugal, faz novas radiografias e regressa à unidade militar, dizendo no dormitório, para quem o quisesse ouvir:
- Não comam nem bebam por objectos que eu tenha tocado, pois estou tuberculoso.

Todos os presentes ficaram tristes e admirados com a informação, guardando silêncio, excepto o Curvas, alto e refilão, que num ataque de fúria diz:
- Filhos da puta, são todos uns filhos da puta!

A guerra para o Caneta acabou.

Começou outra guerra, agora não combatia guerrilheiros, combatia uma doença que naquela época era quase mortal. Recolhe todos os seus haveres, que coloca no saco do exército e numa malita, incluindo o seu rádio portátil, onde ouvia entre outras coisas, o relato de futebol do seu clube em Portugal. Na semana seguinte vem para a metrópole, como então se dizia, para um sanatório numa montanha, no centro de Portugal. O Cifra, não mais teve notícias do Caneta, mas nunca o esqueceu, e quando regressou a Portugal, como a sua aldeia ficava não muito distante dessa montanha, vai um dia de bicicleta, a essa região de hospitais sanatórios para tentar encontrar o Caneta.

Encontrou um velho, com cara de criança. Magro, muito magro, o cabelo raro e cinzento, uns olhos iguais, com algum brilho, as orelhas finas e saídas, trazia vestido uma bata branca que lhe cobria o corpo até aos pés, estava sentado na borda da cama, com um lápis na mão direita e um bloco de papel branco na mão esquerda, tentando desenhar a cara de um militar com uma arma na mão, cercado de arame farpado, talvez lembrando o seu antigo aquartelamento, na província de onde foi evacuado, já doente. O rádio portátil, estava lá.

Assim que viu o Cifra, levanta a cara, larga o bloco de papel, que caiu no chão, fica com o lápis na mão direita, levanta-se com algum custo da cama, dá uns passos para o Cifra, dizendo:
- Só podias ser tu, mais ninguém. Ainda nenhum militar do nosso comando me veio ver.

E abraça-se ao Cifra, chorando, com alguns soluços, tentando conter-se. Dava a impressão que lhe custava chorar.

Conversaram, fez algumas perguntas a custo, pois não dizia duas palavras seguidas, sem abrir a boca e tentar pôr algum ar dentro de si, tinha mesmo muita dificuldade em falar, o Cifra respondeu-lhe a tudo o que se lembrava, incluindo o regresso, mas o Caneta sempre lhe perguntava:
- Mas... morreu mais alguém?

E por fim diz, com bastante dificuldade:
- Olha se não tens receio de comer a comida tocada por um tuberculoso, aceita estes figos, que a minha mãe que ontem esteve aqui, me deixou.

O sabor dos figos da mãe do Caneta são a última recordação que o Cifra, nessa altura o To d’Agar, guarda do colega de guerra que foi o Caneta, pois passado algum tempo, foi de novo para o visitar, mas já lá não se encontrava, informaram-no que mesmo débil, foi embora, queria regressar à sua aldeia, porque queria morrer na sua aldeia, junto da sua família. O Cifra, nessa altura o Tó d’Agar, nunca mais soube nada do Caneta, que era oriundo de uma aldeia próximo da Guarda, junto à fronteira com a Espanha, para onde mandou duas cartas, uma pelo Natal e outra pela Páscoa, nunca obtendo resposta.

Oxalá esteja vivo e possa ler este texto, mas, se já não está neste mundo, esta é a sentida homenagem do amigo e combatente “Cifra”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Tony

Nem sempre tenho podido acompanhar o nosso Blogue nos últimos tempos, razão pela qual não tenho feito comentários, que acho importante para que quem escreve se aperceba que é lido e em que medida é entendido o que escreve.

Nesse sentido relevo que não me foi possível apreciar outras das tuas histórias/memórias, embora tenha a ideia que, de um modo geral, retratam 'tipos' ou 'figuras' que de certa maneira se cruzaram contigo e fazem parte da tua história de vida.

Neste relato prestas uma homenagem ao "Caneta", do qual se lamenta a doença contraída, sendo provável que as condições de vida vividas na Guiné tivessem potenciado o que poderia estar já fragilizado, tendo em conta o que eram as condições de vida no interior de Portugal, por esses tempos (e que agora vão ressurgindo...).

Quantos "Canetas" ter-se-ão cruzado connosco, não o saberemos, mas este, pelo menos, teve aqui o relevo da sua memória.

Abraço
Hélder S.