sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10679: Notas de leitura (429): "Da Guiné à Angola O Fim do Império", pelo Coronel Piçarra Mourão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Neste segundo e último livro, o coronel Piçarra Mourão rememora a vertente social desenvolvida pela sua companhia em Bissorã, entre 1966 e 1967.
É um depoimento sereno e singelo. E revela mágoa por só se ter apercebido, muito mais tarde, dos distúrbios provocados pelo stresse pós-traumático. Terá criado um admirável espírito de corpo e de invulgar entreajuda, revela, ao tempo em que escreveu este seu depoimento (2002) que os antigos militares continuavam a acompanhar os mais carenciados, foram laços de amizade irreversível que tiveram um ponto alto na passagem do 35º aniversário do regresso da Guiné em que se realizou uma sentida homenagem aos mortos da companhia junto do Monumento aos Combatentes Mortos no Ultramar, em Belém.

Um abraço do
Mário


Da Guiné à Angola, o fim do Império

Beja Santos

O coronel Piçarra Mourão cumpriu uma comissão de serviço na Guiné (1966-1967), na CART 1525 adstrita ao BCAÇ 1876, em Bissorã. Do seu livro “Guiné, Sempre!” (Quarteto Editora, 2001), fez-se oportunamente recensão. Chega agora a vez de se referir a segunda e última obra deste oficial superior, intitulada “Da Guiné a Angola, O Fim do Império” (Quarteto Editora, 2004). Diga-se desde logo que o coronel Piçarra Mourão irá recapitular situações vividas em território guineense, o essencial da obra é dedicado à Angola onde ele cumpriu duas comissões (1969/1971 e 1973/1975).

Trata-se de um respigar da memória para enaltecer o valor das campanhas de apoio social, moral e médico a que a companhia que ele comandou esteve ligada. Esse fluir de memória inclui uma apreciação do stresse do combate, situação que hoje afligirá cerca de 10 % de todos os combatentes das 3 frentes, e que tem o nome de desordem de stresse pós-traumático. Trata-se de um depoimento despretensioso, solto, um verdadeiro correr da pena onde não se esconde o contentamento pelo dever cumprido. Refere o apoio médico prestado às populações, era uma assistência diária com atendimento dos doentes que se juntavam à porta do posto de socorros, filas permanentes de mulheres, crianças e velhos. No respeito pelos costumes da terra, concedia-se primazia no atendimento aos homens, salvo as situações de emergência, que não tinham qualquer contestação. Enaltece a dedicação dos profissionais de saúde, sempre solícitos a atender em consulta e prestando tratamento. Mas esses profissionais de saúde não se limitavam a aguardar pelas consultas, deslocavam-se às tabancas dos arredores em busca de casos e situações mais complexas. E regista, com aprazimento: “Quando do regresso de estafadas operações em que o débito físico e mental tinha sido significativo, era retemperador passarmos pelo posto de socorros, para pequenos tratamentos de recuperação, e aí o desvelo do pessoal era inultrapassável”.

A companhia sediada em Bissorã, além de um percurso operacional, também remexeu no espaço e deixou obra para um maior bem-estar de todos: novo conjunto de cozinha, refeitório e cantina/bar para as praças; um espaçoso e seguro paiol, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto, etc.; deu-se suporte às milícias, fornecendo-lhes material para melhorar as suas habitações e diz sem enfeites: “A nossa ligação sentimental e afectiva a essa gente era tão profunda que nunca poderíamos regatear qualque tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que os imperativos da missão, era a solidariedade verdadeira que nos movia".

E não esconde o seu orgulho no investimento educativo: “Dos nossos homens existiam alguns analfabetos e um número elevado sem as necessárias 3ª e 4ª classes. Cerca de três meses depois do início da comissão, foi-me proposta a constituição das denominadas escolas regimentais. A proposta partiu de um furriel miliciano, na época já habilitado com o curso do magistério primário – o Benfeito da Costa. Homem de grande competência, iniciativa e dedicação, a breve trecho tudo pôs em movimento, constituindo-se duas classes que funcionavam em horário repartido. Tudo transcorria dentro da melhor normalidade, com grande empenho das praças participantes e sem prejuízo da atividade operacional. Foi deste modo que 44 soldados da companhia, feitos os exames oficiais no termo do ano letivo de 1967, obtiveram os almejados diplomas – 11 da 3ª classe e 33 da 4ª”. Circula na Net um texto assinado por Armando Benfeito da Costa que confirma tal atividade.

Procedendo à análise do stresse. Confessa que na altura não se apercebeu do fenómeno, não houve previsão das vastas e dolorosas consequências, não havia preparação nem se apostava na profilaxia: “A Nação e os seus mentores limitavam-se a mandar combater a qualquer preço. O acompanhamento psicológico dos homens, em qualquer fase do seu empenhamento, nunca foi visto, tratado ou falado”. E descreve como procurou agir no teatro de operações. Retardava cautelosamente a informação sobre a saída para operações ou patrulhamentos ofensivos, só uma ou duas horas da saída, mandava comparecer no seu gabinete os oficiais e sargentos, era aí que se definiam os efetivos a empenhar. Dá um retrato sumário das emoções e tensões provocadas pelo contacto com o inimigo e como procurava, no decurso da comissão, avaliar as capacidades e resistências psíquicas dos seus subordinados. Divide as atitudes e comportamentos entre aqueles que demonstravam situar-se entre o respeito e o medo da guerra e os outros que começavam por se mostrar intimidados, via-se à légua que exerciam um grande esforço para dominar os seus receios e que depois, imprevisivelmente, eram capazes de se soltar e mostrar arrojo debaixo de fogo. Narra uma terrível emboscada que ocorreu em 5 de Dezembro de 1966, que provocou mortes e feridos, e que deixou marcas. A resposta que ele procurava dar passava pela atividade física, torneios com clubes locais e outras unidades e saber responder quando o médico informava que este ou aquele militar estava em baixo de forma ou manifestamente deprimido. Deplora como só recentemente se começa a dar atendimento e a procurar dar apoio a distúrbios de stresse pós-traumático, reconhecendo que se deu um passo gigante com a criação do Centro de Psicologia Aplicada do Exército, onde se estuda e analisa em toda a sua dimensão o fenómeno do stresse.

E aqui finda o depoimento guineense do coronel Piçarra Mourão, condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª Classe pela sua comissão em Bissorã.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10655: Notas de leitura (428): "Colapso e Reconstrução Política na Guiné-Bissau 1998-2000", por Lars Rudebeck (Mário Beja Santos)

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