sábado, 17 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (2) Parte II (1)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis que vai ser dividida em dois postes:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (29) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (1)

Nas páginas anteriores narrei, de forma aligeirada e certamente muito incompleta, as regras gerais do colégio e o quotidiano fastidioso e severo dum aluno interno. Nesta segunda parte, vou contar alguns acontecimentos mais ou menos cómicos, um tanto jocosos e outros um tanto ou quanto funestos, fruto da imaginação individual ou, por vezes, coletiva. Além da ideia era absolutamente necessário também, uma boa dose de astúcia e cautela – além da sorte que faz sempre parte do jogo – para não sermos surpreendidos com o pé em falso e, em consequência, rigorosamente repreendidos ou mesmo (na maioria dos casos) severamente zurzidos.

Era proibido falar com as moças; para namorar, como algumas vezes acontecia, era imperioso ser redobradamente cauteloso, arrojado, ousado mesmo. Em primeiro lugar era fundamental ter um “bom correio”, ou como dizem lá no reino de sua Majestade, um “gobetween” seguro, astucioso, sem receio, mas muito calculista; qualquer deslize seria tremendamente desastroso para os três intervenientes. Eu fui “correio” das manas Manuela e Helena Cruz e elas casaram respetivamente com o Reis Ferreira e com o Alberto Miller, graças, claro, (como convém!) – ao bom desempenho do “correio”. Creio que foram muitos felizes; não sei se tiveram… muitos meninos.

A diretora soube – certamente só desconfiou ou talvez nem isso – que o Miller e a Helena namoravam. Num dia em que estava de boa catadura, ela comentou:
- o Miller tenta levar a Cruz ao calvário.

Algum santo teria caído do altar para ela fazer tal comentário, nada comum naquela senhora. Para passar por bom aluno perante a Srª Dª Maria Adília era absolutamente necessário saber usar devidamente a escova, a graxa e o pano, bajular, ser sabujo e… saber também umas tretas. Os seus castigos corporais eram quase cómicos; ela pegava na régua de desenho, segurava na mão do visado e começava a bater em “alta rotação” – mal afastava a régua da mão; uns fingiam que lhes doía imenso, e ela ficava contente… porque teria castigado severamente o prevaricador; outros deixavam que ela batesse à sua vontade sem manifestar qualquer sofrimento porque na verdade, o castigo era inofensivo. Ela não gostava e comentava:
- “Cara de pau! E não chora!”

Com a Dª Maria Adília eu passei por várias fases… muitos altos e baixos. No 1º ano o nosso relacionamento foi excelente; nos muitos fins-de-semana que passei no colégio, ela até me convidava a acompanhá-la no carro até ao parque de La Salette e levava a merenda para os filhos, e também, para mim… para eu tomar conta dos seus descendentes, Tozé e Betinho; Colaborei nas festas de S. João e noutras celebrações. No 2º ano caí em desgraça, logo no início do ano, porque troquei o tempo de um verbo: “os homens olharam”; eu respondi que era o pretérito mais que perfeito… mas era o pretérito perfeito; porém a forma até era igual. Ela logo informou o Dr. Mota (professor de português) que eu não sabia os verbos na nossa língua – “como poderá sabê-los em francês?” perguntava ela, escandalizada. Até parecia que para aprender francês, era imperioso saber português – coitados dos jovens franceses! Teriam de aprender português para de seguida entrar na sua língua!

O velho Mota organizou logo uma sabatina ou recapitulação de verbos; a turma foi dividida em três equipas: Benfica, Sporting e Porto. As moças formavam a equipa do Porto, pois não podia haver misturas de sexos; os rapazes encaixaram-se nas equipes do Benfica e do Sporting mais ou menos de acordo com a predileção de cada um. O professor chamava dois alunos (um de cada grupo) para junto da secretária; escolhia um verbo e perguntava alternadamente os vários tempos a cada aluno; quem errasse uma resposta era impiedosamente eliminado. A finalíssima, depois de várias horas a eliminar, foi disputada por uma tal Glória Mendes (fez o 2º ano e saiu do Colégio) e este vosso cronista. Foi duro, demorado! O Dr. Mota, depois de inúmeras perguntas, sobre os mais variados verbos que ele ia escolhendo, sugeriu que a Glória selecionasse um verbo e perguntássemos os diversos tempos um ao outro. Como nenhum falhou, eu fui incumbido de escolher um verbo e que mandássemos “cantar” os vários tempos. Eu escolhi o verbo remir (o tal de que se falou na primeira parte desta crónica); ela não soube conjugar o presente do indicativo. Eu fui o campeão! A minha grande vitória académica! Um osso cravado na garganta da Dª Adília!

O Dr. Mota, eufórico, encheu o peito de ar e foi informar a diretora que afinal “O Belmiro sabe bem os verbos em português; se os não sabe em francês… isso são contas de outro rosário!” A Dª Adília, porém, continuou a “molestar-me” severamente durante o 2º ano. Ela era também professora de desenho; sempre que eu lhe mostrava uma folha (1/4 de papel cavalinho) com uns rabiscos “bem-feitos” por mim ela não comentava se estava bem ou mal: rasgava e metia no lixo! Assim se perderam algumas verdadeiras “obras de arte”! Eu deixei de lhe mostrar os meus caros desenhos artísticos; arquivava-os para memória futura!

Aos Domingos, ela dava, principalmente à tarde, umas aulas de desenho e/ou francês aos alunos internos e a alguns externos que moravam na vila e eram “ convidados” a comparecer no colégio. Um belo domingo à tarde, ela pretendia deslocar-se a São Martinho da Gândara para ali assistir a um qualquer evento para o qual ela havia sido convidada, antes de partir decidiu que ficaríamos a fazer desenhos, até à hora de jantar; sugeriu que eu tomasse conta do grupo. Entendi que era o momento ideal para lhe mostrar um dos meus desenhos deliberadamente arquivado antes. Foi a primeira e única vez que ela declarou que o meu desenho estava bom e que pintasse. Não tive a mesma sorte com a pintura… e mais uma “obra-prima” foi parar ao caixote do lixo. A Srª Diretora impunha regras rígidas, imutáveis, para a decoração de cada figura geométrica. O hexágono, figura que nos saiu na rifa, no exame, devia ser “rigorosamente” decorado com uma “irradiação” de malmequeres a partir do centro em direção a cada vértice.

Eu fiz exame no Liceu de Aveiro; a maior parte dos alunos foram para o Porto. À saída da sala, lá estava a diretora, perguntando como cada aluno tinha decorado o hexágono; quando chegou a minha vez, eu respondi que havia decorado aquela figura geométrica com uma simetria; ela quase desmaiou! Mas eu consegui a nota de 13 naquela disciplina, nota melhor que a de alguns alunos que ela considerava de “bons artistas” – os bajuladores.

No meu 4º ano, foi nossa professora de francês durante umas semanas. Logo na 1ª aula, ela ordenou que decorássemos um texto – La Laictière et le pot au lait - . Eu apenas decorei cerca de uma dúzia de linhas… e fui um herói… na sua opinião, claro; os outros nem tentaram decorar uma linha sequer. Assim se iniciou uma grande reviravolta no nosso relacionamento.

No ano seguinte, ela era nossa professora de Geografia de Portugal; impunha para começar, que os alunos papagueassem as fronteiras terrestres de Portugal – a Norte e a Este - sem olhar para o mapa; era “apenas” página e meia do compêndio que tínhamos de memorizar. Geografia sem mapa… nem ao diabo lembra!

Num domingo em que pretendíamos ir ao futebol, ela decidiu dar uma aula de Geografia, pouco depois do almoço. Ela argumentava que, como deixara de ir não sei onde, não podia prescindir de dar a aula. Nesta época (ela e eu) já éramos bons amigos. Sugeri aos colegas que não levantassem ondas e eu trataria do resto. Antes de ela entrar na sala, eu “preparei o terreno”: Pendurei um mapa de Portugal, na parede, do lado direito da professora; - Fiquei junto da secretária, mesmo depois de ela entrar.

Quando ela apareceu, eu permaneci no estrado; ela perguntou se eu queria ser interrogado sobre as fronteiras de Portugal; respondi afirmativamente. Ela mandou-me “cantar” a fronteira terrestre do nosso belo e querido País. Colocado ao seu lado esquerdo e ligeiramente atrás dela, eu via perfeitamente o mapa e assim pude simular que havia encaixado na minha cabeça aquele imenso texto. Estava em causa uma ida ao futebol. Conseguimos convencê-la que todos tínhamos aproveitado ao máximo aquela aula e lá fomos apoiar o U.D.O. Assim melhorei o nosso relacionamento.

Fui encarregado de preparar uns textos, em francês, para descrever o conteúdo (pintura) de uns quadros que eram mostrados aos alunos durante o exame num dos liceus do Porto. Ela não sabia a tradução de “serpette”! Eu informei que era uma espécie de faca curva, usada na vindima. O meu astral estava em alta. Assim continuei até sair para Coimbra.

Durante o meu primeiro ano na Universidade, eu acompanhei a Académica a muitos estádios de norte a sul do País; sempre que ia ao norte eu almoçava e/ou jantava no Colégio e até dormi lá algumas vezes – tinha livre-trânsito. De seguida o diretor dava-me boleia até ao Porto quando ele ia ver o seu clube jogar; dali eu seguia o meu caminho.


Nota negativa na disciplina de Religião e Moral

“In illo tempore” – no tempo em que isto aconteceu, o padre Joaquim era professor daquela disciplina que então era uma cadeira obrigatória – só não fazia parte do exame. O padre nunca nos falou de moral (talvez porque não tinha a suficiente); falava apenas de religião.

Estávamos no 5º ano; o padre entrou na sala (ficava quase em frente à secretaria e dava para o terraço junto ao quintal) e depois de ligeiras considerações perguntou a um aluno:
- Qual é a parte mais importante da Missa?

O aluno terá respondido “comunhão”! O padre, sem manifestar a sua opinião quanto à veracidade daquela resposta, pediu a opinião a outros alunos; cada um ia dando uma resposta diferente, supondo que as anteriores estavam erradas. Depois de ouvir várias respostas, todas desiguais, chegou a minha vez. Eu estava sentado na última carteira, ao lado do Arlindo, um rapaz natural de Escariz, lá para os lados de Arouca. Chamávamos-lhe “tetra quintanista” porque só à quarta tentativa concluiu o 5º ano. A minha resposta foi clara e “pouco” eficiente:
- “Ite! Missa est! (ide! A Missa acabou!)

Seria aquilo que gostosamente apelidávamos de “o santo sacrifício da saída”. O Arlindo acrescentou, sem delongas:
- Deo Gratias! (Graças a Deus!)

Poderia até parecer que tínhamos combinado as respostas, mas a ação não foi concertada – juro! O Escariz e eu tivemos nota 9 a Religião e Moral; se tivéssemos negativa a outra disciplina… correspondia a “chumbo”. Terá sido talvez a única vez que um aluno (dois neste caso) teve negativa a Religião e Moral.

Naquele tempo as notas variavam de zero a vinte; longe do que veio a acontecer nos tempos revolucionários em que as notas passaram a ser de um a dez e de um a cinco, (o aluno não podia ter zero); o caso mais cómico, mais aberrante aconteceu na Faculdade de Letras de Lisboa em que, na última cadeira do curso, as notas eram apenas: “apto” e “não apto”. Estas classificações eram atribuídas pelos outros alunos; a professora – qual rainha de Inglaterra “que reina mas não manda” - tinha o supremo poder decisório de desempatar, se tal acontecesse. Uma rebaldaria!


Confraternização de Ex-alunos

O COA era até uma boa escola… apesar de tudo; cada turma incluía todos os alunos do curso – 40 e até 50 alunos; em geral ouvia-se a mosca que abusivamente invadisse aquele espaço. A 1ª vez que um curso foi dividido em duas turmas (e creio que não aconteceu em todas as disciplinas) foi no meu 5º ano – 1957/58. Mais de 40% dos alunos dum 2º ano dispensaram de oral; noutro 2º ano dispensaram mais 40%.

Nos fins dos anos 50 – os liceus e os colégios estavam superlotados; na época dos exames as salas dos liceus eram já insuficientes para albergar tantos alunos – os do próprio liceu e os dos colégios do distrito. O Ministério da Educação decidiu “promover” doze colégios a nível nacional; os seus alunos passavam a ser examinados “em casa” mas com professores nomeados pelo Liceu. O Colégio de Oliveira fez parte desse número mágico de 12 colégios que seriam os melhores do País.

Em 1972, quarenta e nove ou cinquenta anos após a sua fundação, o COA deixou de funcionar como tal; passou a ser uma extensão do liceu de Aveiro, que tomou de renda as avelhentadas instalações (algumas) da vetusta escola. Os alunos daquele colégio, porém, não o esqueceram. Com certa frequência, (pouca a meu ver), tem havido almoços de confraternização de ex-alunos. Participei nos 5 primeiros; estive presente, também, no que teve lugar a 9 de Junho de 2012, com visita às instalações do ex-colégio e o almoço em Ul, com a presença do filho mais novo dos diretores – José Alberto.

Dois desses almoços realizaram-se em Sever do Vouga; num deles o Sr. Almeida esteve presente. Propus-lhe que numa vinda sua a Lisboa (quando o Colégio passou a liceu, os proprietários mudaram-se para o Algarve) me contactasse e jantaríamos juntos. Assim aconteceu. Durante o repasto falámos quase só do meu tempo passado no colégio. Entre outras confidências, contei-lhe como o padre Joaquim teve a lata de me atribuir uma negativa a religião e moral. E logo a mim! Aleguei em minha defesa que ele “teria pouca moral” pois uns anos mais tarde, casou-se, abandonando a sotaina. O Sr. Almeida informou que com duas negativas – mesmo sendo uma a Religião e Moral – eu reprovaria. Retorqui que só tive nega a essa disciplina. Quando eu lhe transmiti que à pergunta: – qual é a parte mais importante da missa? – Eu respondi que era – ite! Missa est – ele, em voz bem audível (leia-se bastante alta) em toda a sala (todos os clientes puseram os olhos na nossa mesa); ele comentou:
- Estavas a pedir vara! Estavas mesmo!

Adorei! Gostei imenso de ouvir aquelas palavras! Pareceu-me que voltámos uns anos atrás… aos saudosos tempos do colégio… mas afinal já não éramos mestre e aluno… éramos apenas dois bons amigos com uma lauta mesa entre nós.


- O Vinho –

Como atrás foi dito, os alunos internos e os semi-internos podiam beber uns goles (poucos) de vinho às refeições principais. Além dos negócios que a “pinga” proporcionava, havia um castigo – uma semana sem beber – para quem sujasse a toalha, entornando um copo de tinto; já era o melhor para a saúde! A srª diretora alegava que o valor do vinho não servido se destinaria a custear a lavagem da toalha. Eu estava no quinto ano! Cada mesa alojava seis alunos; os meus companheiros de mesa eram divertidos e um tanto barulhentos; discutíamos acaloradamente cada tema. A meio de um almoço o Sr. Diretor entrou na sala e exclamou:
- Que diabo de barulheira é esta?

O perfeito – Manuel Correia, natural de Santo Tirso – levantou-se e, sacudindo a água do capote, lançou o seguinte repto:
- Se o Sr. Almeida calar aquela mesa, eu calarei as outras! (referia-se escandalosamente à minha mesa… mas ele sabia que eu era bem comportado!). Sempre fui! Parece que estávamos a ser os “bons” da fita, mas nós até nem éramos maus… tanto assim; até porque… não há rapazes maus!

Fazia parte daquele grupo o Karl Mickael Eberl, filho de pais alemães e nascido em Angola, na fazenda produtora de café Kenuma Numa, no Pango Aluguem, algures no norte de Angola. Democraticamente (imaginem o que nós já éramos naqueles belos tempos) decidimos que, em cada dia, um de nós declamaria um poema durante o almoço. Eu optei por uma estância d’Os Lusíadas, discurso de Marte no concílio dos deuses (pagãos) da qual, quase no fim, constava como segue: “e dando uma pancada penetrante/ com couto do bastão no sólio puro”; aí eu dei um valente murro na mesa – e continuei: “o céu tremeu” etc.

Com aquela punhada enorme, idêntica à de um deus todo-poderoso (como tinha de ser) entornei apenas seis copos de vinho – não havia mais! Houve galhofa da grossa! De tal modo que a srª Diretora, assustada (digo eu) veio ver o que tinha acontecido. Aleguei que apenas queria dar a ênfase devida ao discurso do deus da guerra (como Marte merecia), mas com todos os meus argumentos não consegui adoçar a sua ira. Ela sentenciou fatalmente:
- Entornaste seis copos de vinho ficas seis semanas sem beber!

Eu argumentei, puxando a brasa à minha sardinha, que tendo sujado, apenas, uma toalha, não poderia ser punido com mais de uma semana. – “Essa punição está a ser aplicada com demasiada severidade! É simplesmente desproporcionada!” Ela defendia que era uma semana por cada copo entornado; e eu alegava que era uma semana “a seco” por cada toalha suja. Apareceu o Sr. Diretor que ajuizou de acordo com a posição que eu defendia,… nem poderia ser de outro modo. Eles andavam frequentemente de candeias às avessas. Como cônjuges não seriam o melhor exemplo para a rapaziada do colégio.


Visita noturna ao internato feminino 

Quando entrei para o colégio, as alunas internas ocupavam um piso de um prédio fronteiro ao recreio dos rapazes, do outro lado da avenida. As “pequenas” tomavam lá as refeições e lá pernoitavam sob o olhar sempre atento, mesmo durante o sono, da Dª Urraca – perdão – Dª Idalina (que a terra lhe seja leve! Nunca me fez mal!). Mas era temida por todos! Ao lado do recreio das “miúdas”, ficava uma casa espaçosa; por trás desta vivenda havia um quintal de área razoável e que fazia face com o “pomar” dos proprietários do Colégio e ao recreio dos rapazes. Um muro com mais de dois metros de altura separava as duas propriedades.

As nossas bolas de futebol, com frequência, “refugiavam-se” nos terrenos da Dª Dores, certamente para evitar levar mais pontapés desajeitados e furiosos dos alunos menos hábeis…, como eu. Imediatamente alguém saltava o muro, apanhava a bola e o jogo continuava. Estas intrusões em terreno alheio enfureciam a proprietária do quintal, mas também o Sr. Almeida que não desejava complicações com a velha vizinha. A dª Dores alegava que nos devolvia as bolas logo que as avistasse no quintal ou no galinheiro… mas a bola fazia-nos falta na hora do jogo e não apenas quando ela fosse alimentar as galinhas. Era uma guerra quase permanente. Podiamos chamar-lhe: batalha sem fim.

Os donos do colégio decidiram comprar aquela propriedade (casa e quintal) à sua estafada proprietária. Ali instalaram o internato feminino, deixando de pagar renda pelo outro edifício. Até à mudança das garotas para as novas instalações, havia uma perfeita a quem chamavam “Dª Urraca”; era uma pessoa difícil, muito complicada, cara de poucos amigos e que não tolerava baldas. Só este ano soube, que o seu verdadeiro nome era Idalina; mas Urraca assentava-lhe… como uma luva! Além do cargo de perfeita (responsável pela disciplina entre as alunas), dava aulas aos miúdos da primária.

Como o número de alunas ia aumentando, a direção contratou outra perfeita, a menina Rosa: talvez mais idosa que a outra (mas era menina, cabelo oxigenado, mais simpática e mais permissiva; gostava que os rapazes conversassem com ela, expondo os seus problemas; facilitava, cautelosamente, alguns contactos com as alunas e até aceitava levar recados – tudo com muito cuidado, respeito total, cautela demasiada… mas tinha de ser assim, convenhamos!

No meio das dificuldades provocadas pela separação exaustiva, total (segundo a vontade da Dª Adília) por sexos, havia no entanto quem conseguisse furar as malhas e até houve vários casamentos. Uns jovens alunos, apesar da vigilância apertada levada a cabo pelos perfeitos dos dois lados, e dos muros que separavam os dois internatos bem como a distância entre eles, combinaram fazer uma visita noturna às instalações habitadas pelas garotas. O planeamento manifestou-se eficiente, tudo estava cabalmente alinhavado e tudo correu como o planeado… até determinada hora.

Parecia tratar-se de uma operação militar (golpe de mão) de grande envergadura e em terreno altamente perigoso… e armadilhado. As moças, como acordado, abriram a porta que dava para o quintal, “correndo” os ferrolhos; a rapaziada entrou no edifício; houve conversa “sussurrada”, para não acordar nem as vigilantes nem as outras alunas que dormiam despreocupadamente no piso acima; houve um pouco de tabaco – q.b. depois pois de quase uma hora de palavreado e como tudo corria sobre rodas, os rapazes, acompanhados pelas amigas, subiram às camaratas para observar ao vivo… como as garotas dormiam; uma acordou e gritou esbaforida:
- Há homens cá dentro!

Todas acordaram e a gritaria tornou-se logo infernal! Muitas das moças refugiaram-se na varanda até não caber mais e cada uma pretendia gritar mais alto que todas as outras. Chovia torrencialmente! A chuva não as perturbava! Pânico! Terror mais que muito! O medo imperava! As moças que facilitaram a entrada misturam-se com as outras, de imediato, alegando certamente, que também se aperceberam que havia homens no interior (havia mesmo, mas desapareceram logo!); todas juravam que não era um sonho!

Os rapazes “assaltantes”, salvo seja, fugiram em direção ao internato dos rapazes, mesmo em frente, e misturaram-se logo com os outros alunos que desciam as escadas velozmente – autêntico atropelo – em socorro das moças frágeis e desprotegidas. Parecia uma passagem de um romance… de cavalaria em que se defendia intransigentemente a honra das damas. O sr. António Almeida e a esposa abriram as janelas de guilhotina, dos seus aposentos, que eram à frente da varanda onde as raparigas, apavoradas gritavam, perguntando ansiosamente às alunas qual o motivo de tal gritaria; era tanta a confusão de gritos que ninguém percebia o que proferiam. Até gaguejavam… em voz altíssima!

O Sr. Almeida pediu a comparência urgente da GNR; os bombeiros foram solicitados mas sem alarme… para não acordar a vizinhança. O Sr. António Almeida compareceu célere, no local do “crime” de caçadeira na mão disposto a mandar para os anjinhos qualquer “assaltante” que por lá se encontrasse (certamente que os viu… mas não sabia que o eram). Naquele tempo dizia-se que os soldados da GNR eram os “desertores da enxada” e acrescentava-se, jocosamente “voltai à ingrícola”! Toda a agente se ria porque eles seriam indelicados, abrutalhados, broncos… e outros epítetos pouco abonatórios.

Os GNR’s, porem, não eram (não foram) tão aparvalhados como se imaginava ou pretendia. Avaliada a situação, aperceberam-se que havia “beatas” no chão e que os fechos haviam sido “corridos”… por dentro; logo concluíram que do interior alguém abriu a porta. Não se tratava portanto de um roubo ou tentativa – teria sido uma investida autorizada. Perante isto, o Sr. Almeida “fechou as portas do circo”; agradeceu a prestimosa (mas incómoda) colaboração da GNR e sugeriu (impôs) que não se falasse mais no assunto. Devemos ter em conta que o Sr. Almeida era (quase) uma autoridade naquela vila. Ordenou que tudo fosse esquecido e… mais ninguém falou daquele famoso assalto, pelo menos às claras, ao internato feminino. Na verdade, as bocas do mundo não mais se abriram. Os intervenientes que se manifestem… ou calem-se para sempre!

Volvidos tantos anos, apesar de tudo, o melhor será continuarem calados(as) para não desenterrar “pecados antigos”. Para que o silêncio fosse total, o Sr. Almeida ameaçou que iria mandar fazer análises às “beatas” e recolher impressões digitais, para identificar os prevaricadores, mas nem sequer mandou recolher as pontas dos cigarros! O que ele pretendia – e conseguiu – era abafar totalmente o caso. Se assim não fosse e se os pais das raparigas se apercebessem do sucedido, o internato feminino seria encerrado… pela falta de alunas! Os pais não perdoariam que as suas filhas estivessem tão expostas… e eles a pagarem.


O Toino

António Rodrigues Figueiredo era natural de São Vicente de Pereira, concelho de Ovar; o pai era proprietário de uma fábrica de curtumes; ele era o irmão mais novo de um outro aluno, Armando Rodrigues Figueiredo. Creio que mais tarde apareceu mais uma irmã. Hoje o Toino é a autêntica cara do pai! O Toino terá feito a 4ª classe no Colégio. Dava a ideia de ser um tanto ríspido, até agressivo, para com os colegas, embora não me recorde de qualquer briga mais dura em que se tivesse envolvido. Se um aluno do 7º ano (para citar, apenas, os mais corpulentos) ao passar pelo Toino lhe tocava inofensivamente com a ponta de um dedo, a reação do puto era sempre a mesma, para qualquer um:
- Parto-te já a cara!

Um dia, na fábrica do pai, o Toino pretendeu ser paraquedista; qual Ícaro dos tempos modernos! Gostava de voar! Arranjou um guarda-chuva, abriu-o e saltou do 1º andar para o solo; tudo funcionou como previsto (não como ele gostaria): o “paraquedas virou-se”; a aceleração foi grande! A velocidade no momento do impacto com o solo seria igual a j t2/2 (se bem me lembro… era assim que aprendíamos na Física). O Toino fraturou apenas uma perna - coisa de pouca monta em comparação com a asneira.

À surrelfa, o Toino quis caçar pardais… à mão, no espaço entre o teto e o telhado do internato. Não se sabe como, o Toino passou por uma espécie de alçapão existente no teto da casa de banho – o pé direito era bastante alto – e movimentou-se sobre as vigas de madeira. Quando se encontrava por cima do vão da escada, a cerca de 6 metros do solo, desequilibrou-se, pisou o teto de gesso fazendo dois avantajados buracos e – grande sorte – ficou encavalitado numa viga e as pernas penduradas, sem ter onde as apoiar. Encontrava-se me situação crítica; se caísse, seria a morte do aventureiro. Apesar do enorme susto, reequilibrou-se, desceu pelo buraco por onde havia subido, assentou os pés no chão, dizendo para com os seus botões: - deste aperto já me safei! Não recordo se foi castigado… ou se ficou só pelo susto – que terá sido enorme.

Muito frequentemente, durante qualquer jogo de pontapé na bola, esta passava sobre o muro, aterrando dentro do galinheiro ou do quintal da Dª Dores. No calor do jogo, o Toino saltou sobre o muro para recuperar a desejada bola; “poisou dentro do galinheiro, sobre uma chapa metálica que dava acesso – imagine-se! – a uma fossa onde convergiam os esgotos não só do galinheiro mas também os provenientes da casa da proprietária! Aquela tampa, ferrugenta e carcomida não aguentou o impacto, e o Toino mergulhou na fossa. Saindo de lá – mal cheiroso! Um cheiro horroroso… pestilento! O Toino vinha de lá todo… “borrado”!

No momento em que saltou do muro para o recreio, o Sr. Almeida passava no local, a caminho do internato masculino, onde também tomava as refeições. Logo que entrou no refeitório, comunicou a má nova ao Armando:
- O teu irmão caiu na fossa da Dª Dores; borrou-se todo; foi tomar banho; logo se vai sujar-se outra vez com a sova que lhe vou dar!

Não recordo se o Sr. Diretor lhe apertou os calos por esta asneira mas… coitado do Toino! Banhar-se nos fétidos excrementos da “velhinha” misturados com os das galinhas… era já castigo demasiado para um jovem aventureiro.

No último almoço de confraternização – 9 de Julho de 2012 – o Toino compareceu. Vítima de acidente, desloca-se em cadeira de rodas. Felizmente soube na véspera que ele ficara paraplégico; mesmo assim fiquei profundamente chocado ao vê-lo naquele estado. Ossos do ofício!


Excursão a Conímbriga – com final feliz 

Quase todos os anos, por altura da Páscoa, havia uma excursão de alunos a um local mais ou menos interessante, previamente escolhido. “Piquenicávamos” ao almoço e ao jantar em locais antecipadamente escolhidos pela direção. Naquele ano, provavelmente no ano letivo de 1958/59, visitámos demoradamente Conímbriga; o professor Santos ia satisfazendo a curiosidade dos alunos do 2º ciclo esclarecendo as dúvidas sobre o que ali víamos.

No regresso, ao cair da noite, jantámos no parque da Curia: pão, croquetes, rissóis, panados, fruta, bebidas… e não sei o que mais; comia-se o suficiente para aguentar o resto da viagem. Na hora da partida informei alguns companheiros de viagem que não se preocupassem com a minha ausência na nossa viatura porque eu “viajaria” num dos autocarros das moças. Todos abriram a boca de espanto por mais esta aventura! É doido! Comentaram alguns.

Escolhi estrategicamente a viatura chefiada por excelente professora de inglês, Dr.ª Maria José Mourão; ela tinha grande consideração por mim porque, no ano anterior, sendo ela minha professora eu fiz uma boa prova oral (prova excelente, digo eu) que me fez subir a média para 14 valores (distinção e não dispensado como consta dos alfarrábio colegiais). No fim da minha oral de inglês, a Dr.ª Maria José Mourão, emocionada, deu-me um abraço em público – coisa rara e nunca vista naqueles tempos – alegando:
- Parabéns! Pois você (para cúmulo, tratou-me por você) acaba de demonstrar o quanto trabalhámos durante o ano! - Naqueles tempos não era comum uma professora tomar uma tal atitude.

Informei a professora que o meu autocarro já havia partido e eu precisava de boleia. Muito amavelmente, como era seu timbre, mandou-me entrar e franqueou-me o lugar vago a seu lado. Conversámos durante uns minutos e apercebendo-se, talvez, da minha intenção, sugeriu que fosse conversar com as meninas, lá atrás. Ela sabia que podia tomar comigo aquela atitude; eu gostava de me divertir, de ultrapassar os limites impostos pela Direção, mas sem desrespeitar quem quer que fosse.

Recordo que alguém alertou que o carro do diretor seguia atrás daquela viatura e que ele poderia aperceber-se que eu seguia misturado com as meninas. Eu ia de pé junto ao último banco! Uma sugeriu, por graça, que eu pusesse um lenço na cabeça, tipo flausina, vestisse um casaco duma aluna, uma jovem altamente patriótica; creio que a aluna se chamava Teresa… talvez Brandão! O casaco apertava-me a cintura mas ficava-me largo no peito… porquê? Perguntei eu; - questões de patriotismo! Esclareci as simpáticas colegas.

Foi uma viagem agradabilíssima, como se pode calcular. O mais complicado foi abandonar aquele autocarro sem que a direção vislumbrasse que eu viajara numa viatura das moças.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 4 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)

Sem comentários: