domingo, 25 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10721: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (8): Você agrediu-me?

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 23 de Novembro de 2012:



Olá Camaradas

Aqui vai a minha colaboração para o blog, no âmbito da série "A Minha Guerra a Petróleo".

O texto já foi submetido a exame prévio pelo Orlando Pauleta e vem na sequência do texto "Ai que Me Dói Tanto!" (*)

Creio que a leitura deste primeiro, facilita a compreensão do que enviei primeiro.

António José Pereira da Costa

A Minha Guerra a Petróleo (8)

Você agrediu-me?

A minha aventura com as minas não terminou com o ferimento do Paiva. Antes pelo contrário, ainda havia muito terreno a palmilhar. Agora, éramos apenas dois – o Ramos e eu – a conhecer o campo. Na única decisão lúcida possível, por determinação do Batalhão, tínhamos começado a levantá-lo e, até o CAOP “descobrir” o que se passava, tínhamos aberto uma brecha, com início no buraco do par de minas que vitimara o Paiva. Uma brecha não sinalizada é uma situação muito perigosa, em qualquer campo de minas e muito mais num implantado em terreno onde a natureza muda constantemente e com grande rapidez.

As referências, todas naturais, poderiam perder-se facilmente, com as consequências que se imaginam. Se o processo de revisão ou de levantamento não se apressasse, corríamos o risco de não conseguir identificar o local onde a “segunda secção” do campo tinha início. Preocupava-me o que pudesse acontecer ao Ramos. Embora um acidente fosse sempre uma hipótese a considerar, nunca me tinha passado pela cabeça que um, nos moldes do que vitimara o Paiva, pudesse acontecer. Admitia mais a possibilidade de um erro de manipulação, uma explosão no momento da colocação da cavilha, ou até a possibilidade de o IN mudar a posição de uma mina que tivesse detectado. Mas aquela, não… Como já disse, o Ramos era casado, vivendo na tabanca com a mulher e o filho de tenra idade e eu começava agora a imaginar a cena que teria lugar se ele viesse a ficar igualmente ferido.

Hoje, à distância no tempo, estou em crer que ninguém, nos comandos superiores, sabia, com clareza, o que fazer perante a situação que se gerara. As minas eram uma coisa “chata”, que existia e com que era necessário contar, mas não era uma coisa intensamente estudada e aplicada com rigor e atenção. Eu estava em final de comissão e, por muito que retardassem a minha partida, não havia a menor garantia de que a situação se resolveria. O Batalhão, mais lucidamente ou procurando alijar a sua parte da responsabilidade, procurara resolver o problema. Mas o CAOP 2 não estava pelos ajustes, talvez por não querer que as suas decisões fossem postas em causa.

Por isso, depois de ter simulado não “ver” o que se passava, deu ordem ao Batalhão para parar com o levantamento das minas. Foi finalmente tido em conta que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa a desempenhar. Daí, que eu tenha sido informado de que a verificação do campo ia continuar com o apoio de dois especialistas – um cabo, Fernando Oliveira Neves, “o Oliveira”, e o furriel Orlando Pauleta – do Pel Sapadores do Batalhão. Quase em simultâneo, recebi notícia de que o meu substituto estava para chegar.

O encontro com o meu substituto foi verdadeiramente surrealista. Veio na “coluna grande” – a coluna Bissau-Farim – e eu procurei-o com a ansiedade de quem está farto e não sabe quando se verá livre daquela situação, que se aproximava do absurdo, tanto num nível a que podemos chamar local, como, muito provavelmente, a nível mais geral. Tinha os 24 meses completos e, embora o oficial de operações do Batalhão me tivesse informado que o meu substituto não seria capitão, não estranhei a situação.

Já há algum tempo que era minha convicção de que o potencial humano, pelo menos no que aos quadros dizia respeito, começava a ser insuficiente para as necessidades da “Guerra”, tanto em quantidade como na preparação ministrada ou recebida. Não o encontrei e a coluna acabou por partir em direcção ao Norte. Pensei: “Ainda não foi desta”. Só então vi, a meio da “avenida central” de Mansabá, um militar de camuflado, amparado a uma G3 e com duas malas ao lado. Estava longe, por isso mandei uma viatura buscá-lo. Recebi-o com o calor possível e, depois de instalado, fomos almoçar. Apresentei-o aos graduados da companhia e notei o seu ar não distante, mas fechado. Pouco conversador, talvez por estar desmoralizado, parecia remoer uma certa dose de revolta. No fundo acontecia a todos os que chegavam, pensei. O contacto com a terra era desmoralizante (“Afinal a Guiné é isto? É por isto que me venho arriscar?”) e o não conhecer a “Guerra” e ouvir falar dela, com certa “fluência”, por quem já lá estava, era traumatizante. Pensei que tudo iria passar e que, em breve, estaria adaptado.

 Avenida principal de Mansabá

Foto do Alf Mil Alfredo Montezuma do BCAÇ 2885

Tinha que lhe passar todas as minhas funções e, sabendo que era miliciano, achei que a parte administrativa seria determinante. O primeiro-sargento Canelas e a sua equipa de “administrativos” dariam boa conta do recado. Pensei, por isso, que por aí não surgiriam problemas, mesmo que tenente Tenreiro não fosse muito conhecedor das coisas da “guerra a petróleo”. O mesmo sucederia com a parte operacional, onde os quadros da CAr. mostravam já uma experiência considerável e um bom conhecimento das particularidades da zona de acção.

Neste âmbito, o problema mais importante era o campo de minas. O Tenreiro não sabia uma letra do assunto, o que complicava a tarefa. Contudo, entendi que, como comandante da companhia, deveria saber, ao menos, onde é que elas estavam, com alguma precisão. Como já disse, na parte administrativa da companhia, o Canelas acabou por vir, delicadamente como era seu timbre, informar-me de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Ficava apático, não fazia perguntas, nem sequer das que confirmassem a sua ignorância na matéria, mas o pior era que não parecia ter entendido nada dos ensinamentos que lhe eram dados.

Por outro lado, dos oito quartos-duplos de que o alojamento para oficiais dispunha, ele escolhera ficar no quarto com o alferes Antunes, talvez por ambos terem passado por Coimbra: o Antunes em matemática e ele em geografia, com o curso concluído, suponho eu. Ao fim de poucos dias, o Antunes revelou-me que começava a sentir-se pouco tranquilo e até intimidado com a presença do novo habitante do quarto. Não o tomei a sério, mas quando ele mostrou a cama onde o tenente dormia fiquei estupefacto. Os lençóis, enrolados em trouxa, amontoavam-se sobre o colchão e o travesseiro estava apoiado à cabeceira na “posição de tiro anti-aéreo”. Quanto à roupa pessoal, estava arrumada com certa, digamos… displicência.

Além disso, relatou-me um episódio que me preocupou e que não consegui explicar. O Tenreiro tinha-lhe mostrado os pés com umas pequenas feridas que lhe disse serem causadas pela falta de “umas anfetaminas” que tomava “lá na Metrópole”, mas que agora tinha deixado de tomar. Pensei que, com jeito, poderíamos convencê-lo a mudar de quarto, onde pudesse instalar-se mais à sua vontade, mas, por mais voltas que desse, eu não conseguia determinar a origem das tais feridinhas.

Uma manhã, ao pequeno-almoço, contou-me que tinha tido uma noite de insónias e de muita sede, mas que tinha resolvido este último problema “na mercearia”, onde conseguira obter água. Admiti que tivesse ido ao bar, à sala de praças ou, pior do que isso, que tivesse saído do quartel e ido ao restaurante do senhor Zé e da D. Olinda, cuja sorte comecei a lamentar por terem sido acordados de madrugada para a prática da virtude bíblica de “dar de beber a quem tem sede”. Perguntei-lhe onde tinha ido exactamente e apontou-me para o depósito de géneros da companhia. Do mal, o menos… já que os fiéis do depósito dormiam dentro dele.

Este pequeno detalhe fez-me crer que o meu substituto estava bastante desenraizado. De outra vez, o Serras – outro alferes – contou-me que o tinha encontrado, olhando muito fixamente para uma das janelas da messe. Ao ser surpreendido, virou-se para ele com um ar sério e disse-lhe:
 – Jesus não está aqui!

Como é do conhecimento geral, não estava, de facto. Ou estaria? É uma coisa que nunca saberemos, ao certo. Por mim, creio que, tendo tanto sítio para estar, às vezes até passava por ali, mas em permanências curtas… O Serras é que não achou graça e revelou-me as suas apreensões quanto ao grau de sanidade psíquica do Tenreiro. Por mim, comecei a concluir que algo de grave se passava. Admiti que simulasse ter vindo “já apanhado de casa” ou, pior, que fosse mesmo um doente que o recrutamento se recusara a filtrar. Esta última hipótese preocupava-me seriamente por poder contender com a minha rendição, mas era, cada vez mais, notório que era necessário fazer algo.

Aproveitei uma ida a Mansoa para pôr o comando ao corrente da situação, embora eu não soubesse bem identificar que contornos ela tinha. Foi então que fiquei a saber que estagiara, como alferes, em Angola e que não tinha sido promovido a capitão, à data de reembarque, como era de lei, por falta de condições estatutárias. Quais seriam, não me explicaram. Exclui os motivos políticos, pois não me pareceu que fizessem o seu estilo, e pensei que a situação tivesse a ver com uma certa falta de robustez física. O Tenreiro não era propriamente um atleta, mas nunca supus que a parte psíquica tivesse tanta preponderância na situação que se criara.

Tendo recebido ordem para continuar a verificação do campo de minas, resolvi aproveitar para lho ir “passando”. Éramos, agora, quatro a operar aquela máquina de morte e o meu substituto ficaria com uma ideia da localização. Poderia ser importante durante a realização de um patrulhamento, onde o Ramos, por acaso, não fosse, uma vez que os dois sapadores do Batalhão não estavam, em permanência, em Mansabá.

No dia 9 de Julho de 1973, lá fomos até Mamboncó. Descemos ao local do campo e começámos a pesquisar a partir da primeira mina existente, em direcção a Sul. O Tenreiro, com o mapa nas mãos, ia ficando “familiarizado” com a localização das minas. Segundo as indicações que nos ia dando, nós, os quatro, íamo-las destapando, verificando o estado de conservação e voltávamos a tapá-las. Admitíamos a possibilidade de ter de substituir uma ou outra que nos levantasse suspeitas de mau funcionamento e, por isso, tínhamos levado dois canudos com minas. As minas M-35 eram fornecidas em tubos de cartão que continham umas cinco ou seis, cada um. A certa altura veio a frase que nos fez gelar:
 – Em que mina é que estamos agora?

Tinha-se perdido. E nós a jardinar no meio daquele “lago de nenúfares”. Orientámos cuidadosamente o croqui e, pelos azimutes e medidas para as referências, localizámos a mina a partir da qual iríamos continuar. A partir daí, o cabo “Oliveira” passou a ser o portador do croqui e o Tenreiro apenas espectador hipoteticamente interessado. E fomos progredindo até que resolvi dar os trabalhos como terminados. Por experiência, tinha concluído que o cansaço – acrescido, naquelas condições de trabalho – era inimigo da concenttação e a distracção é algo que, quem trabalha com minas, deve evitar, a qualquer preço. Sei hoje que a perda constante de água e sal criava condições para que o nosso nível de concentração diminuísse.

O Ramos e eu saímos do campo e começámos a equiparmo-nos. Os dois sapadores do Batalhão estavam a verificar a “última” mina daquele dia. De repente, uma explosão. Olhei para o sítio onde ambos estavam. O Pauleta de pé, mas dobrado para frente e com as mãos abertas para trás, ao lado do corpo não se mexia. Mas o cabo caíra no chão e contorcia-se num esgar de dor, gritando:
– Eu nunca mais vejo o Sol!

Foi o que, na altura, me mereceu mais atenção, mas, de acordo com as informações de que disponho, sei que, felizmente, não ficou com a vista afectada. Uma lesão num dos ouvidos determinou a sua baixa ao HMP, no dia seguinte, para ser assistido no serviço de otorrinolaringologia, com posterior regresso à Guiné, logo que foi considerado como “curado”. O ferimento mais sério tinha-o o Pauleta que perdeu um dos olhos.

Num primeiro relance pareceu-me ver um cabo eléctrico, semi-enrolado, no chão. Deu-me até a ideia de que estava um bocado descamisado, como dizem os electricistas. Por momentos ocorreu-me a ideia de uma armadilha do IN ou de uma explosão electricamente comandada. O PAIGC não tinha este hábito, mas, sendo apoiado por estrangeiros, poderia ter sido aplicada esta técnica, que começava a surgir em diversos TO mundiais.

Aproximei-me e vi a “pica”, de verguinha de ferro, que se encaracolara com a potência da explosão. O punho, feito de num emaranhado de adesivo encarniçado, foi o que me tinha sugerido o cabo eléctrico que, afinal, não existia. Há horas de azar e aquela fora uma delas. A ponta da “pica” acertara, em cheio no perno da espoleta de uma das minas do par ali enterrado. Da explosão de ambas resultara a invulgar deformação da “pica”. O Ramos e eu ajudámos os dois feridos a sair da área perigosa e eu pedi ao tenente Tenreiro que recolhesse as armas, os equipamentos que lhes pertenciam e os “canudos” das minas não utilizadas. Ficou parado. Estático, mesmo. Gritei-lhe e ele balbuciou:
–  E as minas?

Larguei o Pauleta. Fui-me a ele, estiquei-lhe os braços e pus-lhe os materiais ao colo. Depois, enfiei-lhe um pontapé no sítio onde as costas mudam de nome para o pôr a andar para as camionetas que estavam na estrada. Só então começou a reagir e, voltando-se para mim, perguntou:
– Você agrediu-me?”
– Agredi, sim! Vá pôr isso às viaturas e depressa.

Ele foi e não voltou. Depois, foi a corrida para Mansoa, à velocidade que a estrada permitia. À chegada, o oficial de operações perguntou-me o que sucedera.
– Toma lá mais dois para a corda do sino. – foi tudo o que me ocorreu responder.

Depois contei o sucedido e queixei-me da inacção do meu putativo substituto. Desta vez não houve comentários desajustados do meu superior hierárquico (que nem se aproximou de nós) e não me lembro de ter visto ninguém do CAOP a perguntar o que quer que fosse. A partir daqui era o Batalhão quem tratava dos feridos. O Tenreiro, perturbadíssimo, ficou em Mansoa, quando regressámos a Mansabá. Eu nem sabia o que pensar da situação que se criara. O campo acabara de fazer mais duas vítimas, nas nossas tropas, e eu não sabia o que fazer. Tinha a sensação de que tudo voltara à estaca zero, mas o que mais me danava era eu ter sido contrário àquela manobra, que se estava a revelar completamente contraproducente, e alguém ter insistido para que eu prosseguisse com ela. O que fazer?

Como já disse noutro local, o Ramos e eu, devidamente autorizados – assinale-se – desmontámos aquela inutilidade, sem mais percalços. Deus (às vezes) estava ali, afinal.

Contaram-me que o tenente Tenreiro, depois de eu ter saído de Mansoa, foi ao médico do Batalhão. Este era um minhoto bonacheirão e gordo que suava desalmada e permanentemente. Quando lhe perguntou de que se queixava, o Tenreiro disse que suava muito e que não se dava bem com o clima. Aí foi interrompido pelo médico que lhe mostrou a camisa encharcada e disse:
– E eu ? Você acha que eu me dou bem com o clima?
– Ora tenha calma e verá que se habitua!

O Tenreiro não se deu por vencido e pediu para ser evacuado. O médico, perante este pedido absurdo, explicou-lhe que, se quisesse, poderia ir a Bissau e, nas urgências do hospital, atirava-se para o chão, gritava que estava doente e podia ser que fosse evacuado.

O doente mudou de maleita e pediu uma consulta de ginecologia. O médico, ainda com alguma paciência, procurou confirmar o nome da consulta. Perante a exacta confirmação, relembrou-lhe que estavam numa consulta médica, que estava a trabalhar e terminou dizendo-lhe:
– Eu até admito que goze comigo, mas com os dois pés, é que não!

O médico era realmente uma pessoa bem-humorada, que fazia bom ambiente e de quem toda a gente era amiga. Vendo que o doente apontava para os “genitais”, mandou-o baixar as calças e verificou que, efectivamente, fora operado naquela área, mas um varicócelo, cuja cicatriz não tinha qualquer indício de poder dar queixas. O doente não conseguiu explicar as razões do seu mal, que justificassem a frequência de consultas daquela especialidade que, naquele tempo, era impossível serem frequentadas por quem nascera homem. Por isso, o médico entendeu despedi-lo. Já à saída, o tenente voltou atrás e, debruçando-se sobre a mesa do médico, exclamou:
– Ah! E também não vejo bem da vista!

Não teve tempo de prosseguir. O médico saiu de trás da secretária e, aos gritos, expulsou-o do gabinete. Não sei exactamente porquê. Talvez a oftalmologia não fosse a sua especialidade…

Uns dias depois, fui chamado ao Batalhão, onde me foi entregue uma nota, em envelope fechado, para levar, em mão, ao QG. Nunca li a nota e o oficial que me atendeu, reconhecendo-me e, conhecendo a minha história, ironizou:
– Olá ilustre guinéu!
– Só se for por naturalização  –respondi.

Olhando para o envelope, entendeu melhor levar-me ao chefe da repartição. Este devia ser alérgico ao mato e seus derivados. Ao ver um capitão de camuflado e com um envelope na mão, nem sequer me cumprimentou. Eu bem tentei, mas não consegui. Creio que o “bacalhau”, já nessa altura, não era barato, mas também admito que terá tido receio de sujar as mãos. Consultou o envelope, onde rezava CEM/QG/1ª REP, e palpitou-lhe que o assunto era complicado. Por isso, optou por me levar ao gabinete do tenente-coronel Salazar Braga, que era o CEM do Quartel-general. O envelope foi finalmente aberto e, no seu estilo frontal, perguntou-me:
– O que é vocês – tu e o teu Comandante de Batalhão – querem?
– Precisava que fosse nomeado outro substituto para mim. Este não serve. – Tentei esclarecer.
– Não serve? Não serve, pune-se! De que é que estás à espera para lhe dares uma porrada? O tipo está a fazer-se de maluco, não há que ver.

Argumentei que, por acaso, ele era mais moderno e menos graduado que eu. E se não fosse assim? Seria a primeira vez que um substituído punia o substituto. Trocámos mais alguns pontos de vista e ele acabou por convocar o Chefe do Serviço de Justiça, o tenente-coronel Lobão da Cruz que, ao que se dizia, era, no Exército, mais antigo que o próprio general Spínola. Era um homem conhecedor em matéria de justiça e disciplina, mas confessou, de imediato, a impossibilidade de resolver o problema na sua área e alegou:
– Não há nada a fazer. Eles agora põem a boina com as fitas para frente e dizem que estão malucos. Os médicos não sabem o que fazer e dão cobertura. Que é que se há-se fazer?

Ainda contei algumas aventuras do meu substituto, insistindo na sua inabilidade para compreender a administração e a logística da companhia e o seu comportamento em mais um acidente no campo de minas, mas ficámos por ali. Saí desmoralizado de uma reunião tão inconclusiva. O problema da minha rendição adensava-se, mas, para além disso, eu não via como seria resolvido o problema do comando da CArt n.º 3567 que, certamente, não merecia ser assumido por um homem cuja sanidade mental tinha de ser seriamente posta em causa.

Sei que não fui efectivamente substituído por ele. Julgo que voltou a Mansabá e aí manteve os seus comportamentos insólitos até que lhe terão dado a comissão por terminada. O alferes Serras ficou a comandar a CArt  até à chegada de um capitão miliciano que a conduziu até ao regresso, já depois do 25 de Abril.

Eu embarquei para Lisboa, a 4 de Agosto, com 26 meses concluídos, depois de ter elaborado uma declaração sobre o estado dos campos de minas e engenhos explosivos implantados no meu sector. O processo da minha substituição por um homem que a estrutura se recusara a tratar como legalmente era devido, por razões que não conheço mas suspeito, levou-me a concluir que o potencial humano da “Metrópole” estava esgotado, indício técnico de algo estava a correr mal, numa área que até aí se tinha como inesgotável. Hoje penso que, se houve tarefa inútil que cumpri na “Guerra”, uma delas foi o lançamento daquele campo de minas.
____________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte
e
5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho

14 comentários:

Anónimo disse...

SR Coronel
Tudo isto se passou sendo o sr of QP.Imagine-se se fosse com um QC. E o pior é que há nomes sonantes do nosso Exército que tomaram "decisões" (?) adequadas.
Não há dúvida que estávamos mesmo entregues aos bichos. O resultado final não poderia ter sido outro.
Cumprimentos

Luís Graça disse...

Não há comentários anónimos no nosso blogue Sãs as nossas regras. Parto do princípio que alguém, um nosso leitor, se esqueceu de pôr o nome por baixo do comentário anterior. Tem ainda a oportunidade de corrigir o lapso.

Luís Graça, editor

Luís Graça disse...

Meu caro Tó Zé:

Nenhum exército pode "brincar" com a vida dos seus homens. O que me choca, na tua história, é como um oficial com o perfil que tu descreves (e com evidentes sinais de "insanidade mental") chegua a Mansabá para te substituir.

Não terá sido, por certo, caso virgem. Mas com tantos filtros, dos testes psicotécnicos (!) às diferentes provas de seleção, como é que um "tenente" como este é dado como apto para comandar, para a vida e para a morte, 150 homens num teatro de guerra ?

"Comandar" é "dar ordens com", o que pressupõe uma cadeia de comando, que não se quebra...

Eu sei que foram muitos anos de guerra e, consequentemente, de erosão da cadeia de comando-controlo, da hierarquia, das competências, do moral...

Agora, não olhemos só para as "falhas do sistema", não iludamos a responsabilidade do poder político ao qual estava subordinado o poder militar...

A tua metáfora da "guerra a petróleo" é uma imagem poderosa sobre a incerteza da guerra e do seu desfecho: sabe-se quando (e às vezes porquê e com quem) se começa uma guerra, nunca se sabe quando e como termina...

A guerra colonial começa em 1954, quando perdemos as primeiras "joias da Coroa", os territórios da Índia Portuguesa de Dadrá e Nagar-Haveli...

Carlos A.M.Pereira disse...

Efectivamente foi um lapso da minha parte.Chamo-me Carlos Alberto Martins Pereira e aproveito para acrescentar ao sr Cor que fui aluno de Matemática num colégio onde o TCor L.Cruz era prof, ao tempo capitão.

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Este relato deixa-nos (pelo menos a mim deixou) uma grande angústia, pois já não é o primeiro que nos dá conta de tarefas atribuídas em fim de comissão, tarefas essas que não eram nada simples nem isentas de elevado grau de perigosidade.

Fica-me a dúvida: essas ordens seriam dadas para 'afirmação de autoridade' ou apenas por falta de ponderação ou desconhecimento do que se mandava fazer?

Certo, certo, é que o 'trabalho' teria que ser feito. Sobre isso não haverá contestação. Mas, e as condições, seriam consideradas?

Abraço
Hélder S.

Henrique Cerqueira disse...

Quanto a mim e pelo menos o dito Tenente teve a lucidês(?) para tudo fazer que contrariasse a sua tomada de posse da companhia e talvez assim se tenha evitado males maiores.Agora vejam aqueles "Comandantes"que não assumiram a suas incapacidades e se mantiveram a chefiar companhias ,batalhões e etc...
Acho um pouco desilegante aqui se nomear certas situações passadas e com nomes,pois que eu quero crer que em especial os Graduados milicanos(alguns é claro)foram vitimas da má preparação dos selecionadores no julgamento de capacidades de chefia.E para agravar a situação e quanto a mim o restante pessoal militar foi preparado á "pressão" e embora que se fáz tarde,vai combater para o Ultramar e depois aprende.
Infelizmente assisti a algumas cenas de más chefias militares e até de alguma crueldade,mas já passou e siga em frente.
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Vamos lá com calma...

Apesar da insuficiência de dados..julgo poder afirmar que o caso em concreto não é do foro psiquiátrico..poderia eventualmente ser esquizofrenia (há vários tipos)ou ainda personalidade "esquizoide"...só que também não me parece.
O "chico-esperto" muito comum na nossa sociedade também era e é muito frequente e a instituição militar não estava livre destas situações..
Posso estar enganado mas tratou-se apenas de um "chico-esperto" a tentar enganar tudo e todos..

C.Martins

Anónimo disse...

Camaradas
Tenho que apresentar uns esclarecimentos.
O militar em questão, tanto quanto julgo saber já morreu. Contudo, nunca me pareceu a figura do chico-esperto que aparecia e aparece na nossa sociedade. Pareceu-me outra coisa que, na altura nem se sabia o que fosse. Recordo que, por esta altura, a droga tinha começado a ser introduzida na Academia de Coimbra, pelos estudantes brasileiros que, vitimas do númerus clausus, vinham, ao abrigo da dupla nacionalidade, estudar para Portugal. Daí as feridinhas, a sêde nocturna insuportável (por carência ou ressaca) e o comportamento no quarto que assustava o Antunes.
Como já disse, o "recrutamento" era cada vez menos selectivo e o potencial humano cada vez menos amplo. No caso vertente, era claramente inapto, não sei se para a vida. Não era um "resistente", pois tendo sido apanhado pela crise de 1969, a sua atitude seria outra. Os contingentes eram, de facto, "(mal) preparados à pressão" e iam mal instruídos e mentalizados para as tarefas a desempenhar. Onde tinham ficado as unidades mobilizadas nos primeiros anos que sabiam bem ao que iam? Além disso, era já notória uma certa resistência (do pessoal) à preparação adequada às tarefas que haveriam de surgir à qual se juntava uma certa incapacidade (em pessoal e meios) que o Exército ia tendo para instruir, individual e colectivamente. As consequências não se fizeram esperar.
Por agora deixo um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Capitães antes da guerra, todos pareciam valentes e competentes, aos olhos de um recruta.

Na início da guerra fui reencontrar os mesmos capitães, mas já poucos pareciam tão valentes e até alguns eram mesmo incompetentes.

Só me deram dois castigos como recruta e CSM e cabo milº.

Mas a culpa era minha e foi castigo justo aos olhos de um capitão em tempos de paz.

Mas foram os capitães que aguentaram com as maiores e piores consequências e responsabildades da guerra.

O primeiro e único militar que vi chorar desesperado foi um capitão.

A responsabilidade sobre um jovem de 30 anos era demasiada, e não tinha nem acima dele, nem abaixo, quem lhe desse o devido apoio.

Era difícil fazer mais do que se fez, militarmente.

E seria mesmo necessário fazer mais?

Talvez melhor, sim, por mim falo, mas só falo hoje, sabendo o que sei.

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: António Pereira da Costa

Camarada e amigo,
Vou tomar a liberdade de transcrever algo que relatei aquando da minha apresentação à Tabanca (P7051 de 29-9-2010) que por certo te vais recordar com tristeza, e que vou aqui lembrar por se tratar de alguém por quem o Pauleta nutria uma grande amizade.

"Quando vim pela segunda vez de férias à Metrópole em Abril de 1973, foi meu companheiro de viagem um Fur. Mil. de seu nome António Piçarra (um alentejano de Moura) que, por coincidência, também regressaria à Guiné no mesmo avião e a meu lado. Travámos assim conhecimento e, na escala que fizemos no aeroporto do Sal/Cabo Verde, lembro-me perfeitamente de termos trocado várias impressões sempre com o sentido de que a guerra para nós acabasse depressa e com um possível regresso juntos. Tal não viria infelizmente a acontecer pois, passado algum tempo, mais precisamente em meados de Julho, recebi a triste notícia de que o Piçarra morrera na sequência de uma violenta emboscada em 4 de Julho de 1973 na estrada de Cutia/Mansabá e que teria sido morto com arma branca. Foi muito traumatizante para mim (ainda continua a ser). Anos mais tarde vim a confirmar a sua morte por o seu nome constar no Memorial aos Mortos em Combate na Guerra Colonial. Mais recentemente este triste acontecimento foi-me relatado/confirmado pelo seu ex-camarada e amigo Fur. Mil. Pauleta que pertenceu ao BCaç 4612/Mansoa."

Um Abraço

Anónimo disse...

Caro camarada A.J.P.Costa

Em relação ao caso em concreto seria o que hoje se designa por "toxicodependente ou adito"..bem adiante...
Sobre os estudantes brasileiros..em Coimbra, seria, não sei..
Em Lisboa também já havia muitos,mas não foram estes que introduziram o consumo de drogas,existia mas de forma ainda marginal,felizmente,eram isso sim uns meninos filhos das ditas "boas famílias" que se deslocavam regularmente à Holanda e que depois andavam pelos "vává" e restantes tascos da Av. de Roma, perante os quais a polícia dos ditos "bons costumes"naturalmente se fazia de ceguinha,não fosse um menino do "papá" ir dentro e era barraca pela certa...
Como é que sei..ora também por lá andei, só que eu sou filho de um simples comerciante de aldeia que me pagou os estudos com muito sacrifício..nunca consumi aquelas merdas..confesso que sou fumador e iniciei este vício já na Guiné.

Um alfa bravo

C.Martins

Tony Borie disse...

Olá Pereira da Costa.
Li todo o teu texto, e tirei uma conclusão.
Primeiro - O dito Tenente, fez tudo, mesmo tudo, para não assumir o comando da companhia, talvez até estivesse bastante lúcido, e não queria assumir uma responsabilidade, para um lugar que não estava preparado.
Segundo - Tú tal como fizeste, e muito bem comunicaste aos teus superiores, o seu comportamento, mas não o devias ter agredido fisicamente, nessa altura, mostraste falta de liderança, mas compreende-se o teu desespero, pois a situação era terrível, e nessa altura, o importante era sobreviver. Creio que o agrediste fisicamente pela segunda vez, e nessa altura, a situação não era de desespero. Eu até fico a pensar como é que o homem depois de ser agredido por duas vezes, podia assumir o comando de uma companhia?.
Terceiro - Acabas-te por entregar a companhia a um Alferes, que ocupou o lugar de um Capitão, o que não soa lá muito bem. Os teus superiores, também deviam de andar desesperados. Terei compreendido mal.
Isto é única e simplesmente um comentário, pois no tempo que nos resta não há muito tempo para críticas, todos nós, sem qualquer excepção fizemos coisas que não devia-mos ter feito, não houve um único militar, que foi para esta guerra, que tenha cumprido os regulamentos militares, todos nós, no fundo o que queríamos era sobreviver, e voltar a Portugal vivos, dessa maldita guerra.
Um forte abraço, Tony Borie.

Tony Borie disse...

Olá Pereira da Costa.
No comentário anterior disse que agrediste o dito Tenente por duas vezes, o que não é verdade, lendo melhor, foi só uma vez. Quando dizes "toma lá mais dois" referes-te aos companheiros feridos, que entregas-te em Mansoa.
Um abraço, e escreve mais, Tony Borie.

manuel quelhas disse...

Sr. Coronel,
Para se poder tirar conclusões sobre o T. Tenreiro, julgo que primeiramente teríamos que analisar período de guerra, que estávamos a passar. O PAIGC tinha intensificado as suas acções em quase toda a Guiné, e também naquela zona, principalmente na estrada entre Cutia e Mansabá. Não podemos esquecer que em 21 de Maio de 1973, sofremos uma emboscada, um pouco mais abaixo onde ocorreram esses episódios com as minas, perdemos 4 homens e muita gente boa gente ferida. Depois em Julho, no local das minas mais uma emboscada ao pessoal de Cutia, que vinha ao nosso encontro para fazer protecção à coluna de Mansabá, igualmente com várias baixas e mais um camarada da nossa companhia s/ pé ( o Mourão). Tudo isto teve um impacto negativo no T. Tenreiro, que embora não demonstrasse, apresentava sinais de grande apreensão ( medo, procurando descontrair-se com os soldados a jogar matrecos, e que bem que ele jogava, dando-nos a entender que não queria assumir o comando da companhia. O resto fica para quem, melhor que eu, saiba compreender estes casos.
Cumprimentos
Manuel Quelhas