quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas memórias do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Abel Gandra:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (31)

Dr. Abel Gandra

O insigne mestre, Dr. Abel Gandra, era natural de Moçambique, região de Lourenço Marques, hoje Maputo; o pai era europeu e a mãe africana, de etnia Landim.
Era um professor extremamente culto; dava aulas e/ou explicações sobre todas ou quase todas as cadeiras do 7º ano e de todas as alíneas daquela época. Explicava cada matéria com precisão e saber, fazendo-se entender perfeitamente pelos alunos, o que nem sempre acontece. Era um grande psicólogo; a sua maior pecha era não ser tão bom disciplinador como era ensinador: não conseguia dar um “murro em cima da mesa”, sempre que um aluno descarrilava no seu comportamento durante a aula, pondo em causa o bom aproveitamento dos colegas bem comportados e predispostos a cultivar-se.

Perante uma turma de alunos disciplinados com vontade firme de assimilar sempre mais e mais, ele era uma máquina bem lubrificada a ensinar, a elogiar, a encaminhar, a incentivar os alunos para que conseguissem ir sempre mais além e mais acima.

Este nosso ilustre mestre concluiu o ensino liceal em Moçambique; veio de seguida para a chamada Metrópole, a mãe do Império, para frequentar os estudos superiores. Como cadeira opcional, creio que no Instituto dos Estudos Ultramarinos, escolheu o dialeto Landim, sem nunca manifestar que era oriundo dessa etnia. Na prova oral, o examinador cumprimentou-o em andim; ele ”gaguejou“ propositadamente, um pouco como se tentasse escolher cuidadosamente as palavras uma a uma. Aí o professor entrou a pés juntos (ou de “chancas”)! Perante uma nova resposta desenvolta e precisa do examinando, o mestre perguntou-lhe:
- De que raça provém?
- Landim! - Respondeu o jovem Gandra, secamente.
- Acabou o seu exame! Pode seguir. - Concluiu o avaliador.

Provavelmente terá sido neste exame que adquiriu aquele gosto especial de ver um aluno “enrolar” (ou tentar) um professor! Na universidade tornou-se um “profissional do estudo”: concluia um curso e iniciava logo outro.

O pai não gostou! Saturou-se de gastar tanto dinheiro nos estudos sem fim de seu filho e decidiu fechar definitivamente a torneira.

Vendo-se sem dinheiro para “alimentar” seu vício… de estudar, avançou como voluntário para a Guerra Civil de Espanha. Fechadas as portas da guerra, voltou à Pátria e começou a ganhar a vida no ensino, tendo sido colocado no Liceu Camões, em Lisboa.

Um dia, num exame oral história, do 7º ano, ele fazia parte do júri mas não era o examinador. Apareceu um aluno que fez uma prova “bombástica”, “anormal”, (anormal para cima, pela positiva, como afirmava jocosamente o saudoso Leonel Castro Nunes).
O examinador perguntou aos colegas de júri:
- Que nota hei-de atribuir a este aluno?

O Dr. Abel Gandra respondeu curto e grosso:
- Vinte! Não há mais!
-Vinte é para o professor! Comentou o examinador.
- E se o aluno souber mais que o mestre?! - Replicou o Dr. Gandra

Não sei qual foi a nota final atribuída àquela dita “bisarma” mas o mote estava lançado.

Um dia teve conhecimento que a Penitenciária de Lisboa pedia professores para ensinar naquele Estabelecimento Prisional; ele concorreu e foi selecionado. Combinaram a matéria a lecionar, o salário e o horário a praticar. No dia e hora aprazados ele compareceu no local para ministrar a sua primeira aula a presidiários. Pretenderam, logo à chegada, colocar-lhe à volta do cós das calças um cinturão com uma pistola pendurada e verdadeiramente municiada; ele recusou, terminantemente, dar aulas armado.
Alegaram que era altamente perigoso andar desarmado entre prisioneiros tão perigosos. Não se deixou convencer e iniciou o seu novo trabalho… sem arma à cintura..

O pessoal da segurança deve (?) ter-se colocado, estrategicamente, espingarda em riste, de modo a poder proteger eficientemente o mestre em caso de emergência.
Vale mais prevenir… que remediar – segurança acima de tudo!
Nada de mal aconteceu!

Passados uns meses ele comunicou a um dos encarcerados que gostaria de conversar com ele no fim da aula. No momento oportuno o mestre perguntou:
- O que é que o senhor mais gostaria que lhe acontecesse nesta época de Natal que se aproxima?
- O que eu mais adorava, na vida, Sr. Doutor, era passar a noite de Natal com a minha mulher e os meus filhos!

No fim de mais uma aula, na ante-véspera de Natal, chamou junto de si o mesmo prisioneiro. Conversaram durante largos minutos até que os mestre lhe transmitiu, com pompa e circunstância:
- O senhor cai trocar de roupa comigo; seguidamente sai com os meus livros debaixo do braço e vai passar a noite de Natal com a sua família.

No dia X, antes da hora de início da aula, o senhor entra calmamemnte na Penitenciária, com a minha roupa vestida e os mesmos livros debaixo do braço como se viesse dar a “sua aula”. Tudo vai correr bem, espero!
- Esteja descansado, doutor, que eu cumprirei com a minha parte da melhor maneira possível! Acredite! Só tenho uma palavra! Nunca “roí a corda”!

O prisioneiro saiu da sala, passou pelos guardas sem qualquer complicação… e reentrou no dia e hora aprazados. Aconteceu tudo como fora concebido!
Encarcerado pode ser (terá sido) criminoso e até perigoso… mas este não deixou de ser honesto, cumpridor e reconhecido!

O Dr. Gamba foi contratado para dar aulas no C.O.A. à volta do ano de 1959. Foi meu professor de História no 7º ano; a turma era pequena e todos o admirávamos muito. Éramos todos bons rapazes! Assim tinha de ser!

Uma ou duas vezes por semana ele perguntava-nos:
- Amanhã, a que horas?

Ele pretendia saber a que horas da “madrugada” estávamos disponíveis para ele dar mais uma longa aula extra a toda a turma; normalmente sugeríamos que estaríamos prontos às 6 horas. Àquela hora ele lá estava, ledo e fagueiro. Juntávamo-nos no terraço do ginásio e andávamos ali ás voltas durante cerca de 3 horas. Ele explicava a matéria, e fazia perguntas; e assim se aprendia história.
Ele afirmava que nós (mestre e alunos) éramos os peripatéticos do século XX! Reeditávamos os “passeios” de Pitágoras e seus aprendizes no jardim de Academo, proximo de Atenas
Cumpre informar que estas aulas não eram remuneradas: nem nós nem pelo Colégio; pagavam o que quer que fosse por este trabalho; pelo menos para nós ele trabalhava gratuitamente.

Numa das primeiras aulas, informámos o mestre que nos exames do ano anterior, o Dr. José Bento, professor do Liceu de Aveiro, havia “enrolado” todos os examinandos do C.O.A. com determinado tipo de perguntassempre idênticas: - Quais os costumes dos Lusitanos? Cortavam o cabelo? O que comiam? De que se ocupavam no dia-a-dia?
Fazia o mesmo tipo de inquirição sobre os Gregos, os Romanos e outros povos. Ninguém soube responder a tais perguntas, cujo conteúdo não constava dos calhamaços por onde os alunos tinham estudado. O Dr. Abel Gandra colocou logo à nossa disposição uns volumes da História Universal da autoria do francês Mâle, onde o Dr. José Bento “teria bebido” aquele tipo de informação .

Lembro-me que acerca dos costumes dos gregos o autor advogava que eles “costumavam repousar e conversar, deitados sobre uma espécie de cama/cadeira, chamado de triclínio, apoiados sobre o cotovelo esquerdo, comendo bolos de cevada/aveia temperados com cebola e alho e saboreando uma bebida “fermentada” que estaria, provavelmente, na origem da cerveja”.

O Dr. José Bento veio de novo ao C.O.A. examinar os alunos da nossa turma de História. O primeiro a ser interrogado foi o Ângelo Carvalho – creio que era um ex-seminarista e que entrou no C.O.A. apenas no 7º ano. O examinador iniciou o interrogatório, tal como no ano anterior:
- Fale-me sobre os costumes dos Romanos!

O Ângelo “desbobinou” quase uma página do Mâle; o professor mudou de assunto e não fez tais perguntas a nenhum dos outros alunos, mas algo havia de acontecer para pôr em pé os já poucos cabelos do Dr. José Bento.

O Dr. Gandra incitava-nos imenso; apregoava que eu “estava obrigado” a “esticar” aquele examinador.
Quando respondíamos a uma pergunta do Dr. José Bento “com palavras da nossa lavra” mesmo que devidamente enquadradas, normalmente ele replicava: “no livro (único) não está bem assim!

Ele também gostava que nós aprendêssemos a lição “de carreirinha”. Mas no 7º ano não havia livro único! Que falta - digo eu - ele (livro) faz nestes tempos conturbados imensa falta para tonar os calhamaços mais baratos e o ensino mais uniforme em todas as escolas!

Era permitido estudar pelas obras de um ou vários autores e podíamos justificar qualquer resposta nossa apresentando a versão de determinado mestre. Quando fui chamado para a prova oral, logo o nosso Abel Gandra colocou “descaradamente” sobre a carteira que se encontrava atrás de mim, vários “alfarrábios” de História para que, com eles, eu pudesse (abalizadamente), fundamentar qualquer divergência que, casualmente, surgisse.

1ª Pergunta: - Como foram colonizadas as ilhas do Atlântico?
Ele não permitiu que eu dissertasse sobre o tema, exigindo que eu respondesse diretamente à pergunta.
Assim teve de ser! - As Ilhas dos Açores e da Madeira foram colonizadas por meio de capitânias.
- Esse sistema foi utilizado noutra parte.
- Mais tarde foi abundantemente, utilizado no Brasil, mas foi primeiramente experimentado nas Ilhas do Atlântico que foram divididas em capitanias e confiadas aos descobridores.

Passou à frente com nova pergunta: - Quais eram as classes sociais em Atenas?
- Segundo uns autores: Eupátridas, Zeugitas e Tetas; outros incluem também os Hipeis; segundo outros ainda, temos: Pentacosiomedimnienses , Triacosiomedimnienses, Zeugitas e Tetas.

De seguida pretendi explicar o que significava cada um destes “palavrões” mas ele não permitiu; passou a outra pergunta: - Quem foram os representantes na Conferência de Berlim?
- Citei uns três ou quatro nomes e acrescentei: - “e, voltando a página, o cardeal Bembo.”
- Acabou o seu exame! Replicou o Dr. José Bento

Ao fundo da sala (aquela onde o Arqº José Alberto (Betinho) filho segundo dos donos do C. O.A nos mostrou o vídeo, interesantissímo sobre o Colégio, no dia 9 de Junhos de 2012), o Dr. Gandra delirava… por todos os poros; desfez-se em elogios. “É o corolário dum longo mas eficaz ano de trabalho árduo”, apregoava ele eufórico.
Nunca o vi tão exuberante! Tão entusiasmado.

O sr. Almeida transportava, os professores de Aveiro para o Colégio e vice-versa, no seu ”boca de sapo”; durante a viagem, o Dr. José Bento contou ao nosso Diretor:
- O nº 7, Belmiro, sabia pouco de Filosofia e pouco também de Organização Política… mas sabe muito de História!

O dr. Gandra foi também nosso professor de História da Literatura; explicava-nos eficientemente qualquer parte daquela disciplina um tanto diversificada e complicada.
Antes do início duma aula conversávamos displicentemente sobre religiões; o Dr. Gandra pretendeu ser apenas mediador ou mesmo apaziguador (quando o ambiente aquecia “lançava” água na fervura); hoje chamar-lhe-íamos moderador.
Ouviu opiniões mais ou menos diversas e até, certamente disparatadas; a dado momento pôs termo à conversa do seguinte modo:
- Todas as religiões são boas! Nenhuma manda praticar o mal! Mas também são muito complexas! Umas mais que outras prestam-se a interpretações mais díspares! Uns prosélitos são mais acérrimos, mais intransigentes (hoje fundamentalistas) mas, seja como for, somos levados a concluir, sabiamente, que “não há religião melhor que a nossa!”

Mais tarde soubemos que ele, afinal, não era católico, como todos os alunos ali presentes; nunca nos manifestou que religião professava!

Um dia ordenou que escrevêssemos um texto (não uma curta redação como acontecia em anos anteriores) sobre o seguinte tema: “ Cada dia que passa é um passo para a morte!”

Quase todos os alunos emitiram opiniões mais ou menos diversas, mas todos concluíam que era difícil, complicadíssimo, trágico até, escrever sobre tema tão verdadeiro mas incomum e incómodo.

Perante uma objeção mais arrojada do Tó Zé Almeida (o filho mais velho dos diretores), o Dr. Gandra insistiu na veracidade do tema.
O Tó Zé redarguiu:
- Isso nem sempre é verdade, Sr. Doutor!
- Oh António José! Não me diga que hoje o senhor não está mais perto da morte do que ontem?!
- Eu estarei, certamente! Mas continuo a defender que isso nem sempre é verdade!
- Não entendo o seu raciocínio, mas… explique-se!
- Ontem Caryl Chessman estava mais perto da morte que hoje!

Obs: Caryl Chessman era um presumido criminoso (assassino), o “lanterna vermelha”, que havia sido condenado à morte pela Justiça Americana; nunca aceitou ter sido tal personagem (lanterna vermelha) e conseguiu adiar a execução algumas vezes. Entretanto, enquanto aguardava a execução ou a comutação da pena, escreveu (ou alguém o terá feito por si) a obra: “2455 – Cela da Morte”.

Ouvindo tal justificação, o Dr. Gandra ficou pasmado, mudou de cor (passou a ser branco por breves instantes) mas logo recuperou e encontrou a seguinte saída salvadora:
- Na verdade, somos levados a aceitar que, não há regra sem exceção!

O Dr. Abel Gandra terá sido, em meu modesto entendimento, um dos melhores – talvez mesmo o melhor e mais completo – professor que passou pelo COA, no meu tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3) (Belmiro Tavares)

1 comentário:

António Bernardo disse...

Camarada Belmiro Tavares,informei o ex-furriel Peixeiro,de que o pro-curava. Abraço.