domingo, 9 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10778: Os nossos médicos (44): Cumprir as normas, sempre (Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 4 de Dezembro de 2012:

Caro Camarada
Conforme prometido, envio-te outra aventura acontecida em terras do leste da Guiné em 1973.
Não sou de confiança em localizações geográficas, pelo que (desta vez) não me comprometi.
Junto envio três fotografias, uma do período antes da Guiné (muitas inspecções a mancebos fiz eu nas instalações da Manutenção Militar, junto à feira da Ladra), as outras duas fotos de Pirada.

Com um abraço
Valente Fernandes


CUMPRIR AS NORMAS, SEMPRE

Em 1973 eu era alferes miliciano médico no BCAV 8323 em Pirada.

Eram óbvias as nossas preocupações na perspectiva do provável agravamento da situação, isto é, das flagelações e dos contactos com os guerrilheiros numa zona de fronteira, porquanto tínhamos vivido uma intensidade operacional com menor intensidade. Sabíamos (informações muito incompletas) o que tinha acontecido em Guidage.

Após as consultas de saúde da manhã, primeiro no posto médico do batalhão e depois na enfermaria destinada à população, à tarde o tempo livre não nos faltava. Os dois furriéis enfermeiros das duas companhias sediadas em Pirada (da CCS e da 3ª Companhia) e os vários maqueiros, tiveram complemento de formação no âmbito do socorrismo, incluindo a administração expedita de soros por via endovenosa (na veia), soros que poderiam vir a contribuir para salvar vidas.

O acaso contribuiu para termos muitas ‘cobaias’ para treino: Tínhamos recebido informação de Bissau ‘havia que matar a maioria dos cães’ que pululavam no batalhão e na tabanca porque os serviços de saúde do Senegal tinham ‘detetado cães com raiva' no seu território, logo ali, do outro lado da fronteira’.

Conforme combinado com o comandante do batalhão, tenente-coronel Jorge Mathias (distinto equitador e coronel no ano seguinte), e para cumprimento das ordens de Bissau, foi decidido matar todos os cães existentes em Pirada que não tivessem dono. Aos cães condenados administrámos previamente Valium (um medicamento sedativo) por injecção intramuscular. Após adormecidos os animais, todos os membros do serviço de saúde do batalhão puderam praticar (várias vezes) a inserção de uma agulha com soro numa veia da face interna da coxa dos cães. Tínhamos soros em fartura. Era estranho que também houvesse num posto médico no mato tantas ampolas de Valium… Talvez não fosse tão estranho, se considerássemos o que viemos a encontrar no conteúdo do atrelado sanitário da CCS…

Lembrei aos maqueiros a importância da administração dos soros por via endovenosa e que sozinhos no mato, em caso de dúvida, deveriam sempre administrar um soro. Estávamos em ambiente militar, avisei-os que a falta de administração de um soro necessário, poderia implicar uma punição. Em contrapartida, a administração desnecessária de um soro, não implicaria qualquer penalização.

Certa manhã, uma coluna saída de Pirada sofreu uma emboscada próximo de Bajocunda (cerca de dez quilómetros para leste desta povoação? não sou competente em localizações geográficas). Imediatamente saiu um grupo de combate para os socorrer, no qual eu me integrei. Quando chegámos, o combate tinha cessado, infelizmente tínhamos dois militares mortos (os primeiros mortos do batalhão. Ainda era intenso o odor a pólvora e verifiquei que os poucos feridos tinham recebido os primeiros socorros adequados.

Reparei então que um jovem militar estava sentado no chão encostado a uma árvore, fumando um cigarro, de perna ‘traçada’ e com um soro (pendurado num dos ramos da árvore) em perfusão endovenosa, com a agulha adequadamente inserida na região do sangradouro.

Então o maqueiro que ia na coluna atacada, informou-me: Quando aconteceu a emboscada, os militares saltaram para fora das viaturas, ficando deitados no solo a responder ao ataque. Perante o intenso ruído de muitas detonações simultâneas, num ambiente de concentração de pólvora queimada, uma cobra tinha mordido aquele militar que estava tranquilamente encostado à árvore. O maqueiro que integrava a coluna tratou primeiro os outros feridos. Depois administrou a este militar o antídoto antiofídico que sempre transportava. Administrou correctamente o antídoto à volta do local da mordedura da cobra (no antebraço). Depois disso, surgiu-lhe a dúvida, dúvida agravada pela terrível vivência dos sentidos que tinha experimentado durante a emboscada: se a mordedura de cobra implicava (ou não) a administração complementar de soro na veia: o militar estava com óptimo aspecto mas, conforme às recentes normas do batalhão, em caso de dúvida era para administrar…

Manuel Valente Fernandes

Pirada > Na casa do (célebre) senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano.

Pirada > Messe
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10394: Os nossos médicos (43): Amaral Bernardo e Mário Bravo, em Guileje, ao tempo do cap Jorge Parracho, comandante da CCAÇ 3325 (1971)

5 comentários:

A. João Soares disse...

Caros amigos, fiz duas comissões na Guiné, mas a memória já está bastante perdida. No entanto, da última registei um pormenor que merece ser meditado. Para isso sugiro uma visita ao post


Memória de 13 de Junho de 1974


Cumprimentos
João

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Antes do mais devo saudar mais este relato de um dos vários médicos que têm vindo agora a contemplar-nos com os registos das suas memórias, das suas vivências, em tempos de guerra.
E, pelos vistos, foi uma boa 'escola'.

O meu amigo e quase vizinho Valente Fernandes dá-nos aqui, relatado duma forma como se fosse coisa simples, as recomendações para a actuação no terreno, o modo de agir, os procedimentos considerados mais correctos e, ao mesmo tempo, mostra-nos como era necessário muitas vezes 'corrigir o tiro' em face das situações concretas. Afinal era assim em todas as situações e para as diversas 'modalidades'... havia sempre que improvisar, modificar as rotinas em função das circunstâncias. E, o curioso, é que hoje também assim deverá ser.

Quanto ao comentário acima, do João Soares, é sobretudo um convite para se visitar o seu (dele) Blogue e menos um comentário ao Post em causa, de Valente Fernandes.
Fui e li. E fiquei a saber que A. João Soares participou nas conversações (pelo menos nas iniciais) que levaram à entrega dos poderes da então Guiné Portuguesa para os novos poderes emergentes através dos representantes do PAIGC. E fiquei a saber, contado agora em termos de 'primeira pessoa', aquilo que já várias vezes tem sido aflorado que é o facto de, a par de alguma precipitação nas 'conversações' motivadas pelo clima de contestação que então se vivia, houve também bastante impreparação e desconhecimento das condições, por parte das pessoas que representavam o Estado Português.

Abraço
Hélder S.

Antonio Pinto disse...

Sou o António Pinto 63/65

Seria bom relembrar quando se fala nos nossos médicos em Pirada, aqurtelamento que quase costruí, não esquecer o saudoso Luis Goes, que por lá passava muitas vezes e qem casa do Mário Soares e Esposa Dª Irene e sua Filha a Anita, que hoje é uma cinquetona e tambám os Drs Torres e Licínio, médicos da Missão do sono, mas que nos ajudavam e muito
Saudações
A Pinto

Anónimo disse...

Conheço bem o Sr. Dr. Valente Fernandes a residir na minha terra. Grande profissional e um belíssimo "fotógrafo". Desconhecia é que tinha estado também na Guiné e em Pirada onde fui várias vezes muito antes da sua ida. Gostei muito do seu relato que explica bem das condições com que os médicos e retante pessoal de saúde dispunham, para levarem a cabo as suas grandes e necessárias tarefas. A preparação dos socorristas era uma necessidade sempre presente. Um abraço. Mª Arminda

Luís Dias disse...

Camaradas

Gostei, sinceramente, do que li. Tenho ideia do Dr. Valente Fernandes, porque estive alguns dias (Finais de Novembro/princípios de Dezembro de 1973, de reforço a Pirada a comandar o meu GC/o 2º da CCAÇ3491 e um GC de Madeirenses (que não tinham alferes)e que tinham ido para a Guiné connosco, em Dezembro de 1971. Conheci melhor foi o camarada Alferes do Pel.Artª (com quem lidei durante a resposta a um ataque na zona e, claro, o comandante, com quem tive uma disputa sobre a nossa ida para Copá, felizmente resolvida a nosso favor pelo Comandante do Agrupamento de Batalhões (CAOP2).
Prazer em rever-te e bem vindo ao nosso blogue.
Um abraço.
Luís Dias