sábado, 31 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9688: Memória dos lugares (179): Gã Dembel ou Gandembel das morteiradas... (José Teixeira, CCAÇ 2317, 1968/70)

1. Dois comentários do Zé Teixeira ao poste P9676

(i) Fui um "mirone" de Gã Dembel,  ou melhor, Gandembel. Durante cerca de 6 meses acompanhei de perto aquele festival de terrífica música de morteiradas e canhoadas. As cenas repetiam-se de dia e de noite. De Tchangue Laia para a frente, onde havia uma placa que dizia, salvo erro, "Aqui começa a Guiné independente",  tudo era tenebroso. Era o principio da carreiro da morte. Os buracos dos fornilhos sucediam-se aterradoramente, a mata fechada, o silêncio - até a passarada parece que tinha ido de férias. A atenção redobrada de cada um de nós... e o coração a palpitar.  Um pouco mais à frente, surgia gente nossa da CCaç 2317, respirava-se um pouco melhor e logo ali à frente surgia o pequeno destacamento de Balana, onde estava creio eu, o Hugo Guerra. Hoje nesse local de paz lavam as mulheres a sua roupa e até os elefantes por lá passam.

Gandembel vem a seguir depois de uma leve subida e uma ligeira curva. Hoje há apenas floresta e uma planta a florir que lá deixei em 2008 numa romagem que foi o principio do fim,  ou seja,  encontrei a paz comigo mesmo e enterrei a guerra que me roía as entranhas e por vezes me atormentava alta noite. 

Os testemunhos materiais, os restos das casernas de betão vão sendo cobertos pela terra do esquecimento até que alguém ouse reescrever a história do local. Há algures por lá perto os restos de um Fiat que em fins de Julho de 1968 vi passar a arder e despenhar-se na mata ali por perto. Era o nosso protector aéreo, enquanto penosamente protegíamos uma coluna que ia levar mantimentos aos "toupeiras" de Gandembel.


Idálio, deixa-me expressar a mina gratidão por teres avançado com o livro e agora com o desenvolvimento sobre as vossas canções. estás a construir um pouco da história da guerra que tanta gente procura abafar, a começar pelo desprezo que votam a todos nós que forçadamente a fizemos.






Guiné > Carta da província (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhe > A posição relativa de Balana e Gandembel, em pleo "carreiro" (ou "corredor da morte"), junto à fronteira sudeste da Guiné-Conacri,  tendo a norte Aldeia Formosa e a sul  Guileje, e a sudoeste Gadamael e Cacine... Em 1961, Gandembel nem sequer constava como topónimo no mapa geral da província...




(ii) Deixa-me recordar que em 2010 tive oportunidade de conversar com um grupo de ex-guerrilheiros do PAIGC a viverem em Farim do Cantanhez. 

Da conversa pude apurar que quando Portugal decidiu avançar para Gandembel, o PAICG, comandado pelo Nino, deu instruções a seis dos seus grupos estacionados na grande mata do Cantanhez, localizados nos arredores de Catió, Bedanda, Cacine, Cabedú e creio que Gadamael, para cercarem Gandembel e por aí ficaram até as tropas portuguesas abandonarem a posição. 

Pode deduzir-se desta informação a força de fogo que o inimigo tinha na área. Segundo o mesmo grupo eles assentaram perto de Gandembel e substituiam-se nos ataques de modo a baralhar a aviação, pois atacavam uma vez do norte, para logo a seguir atacar do este ou sul, etc. 

Por outro lado continuavam a flagelar as outras tabancas desde Buba a Gadamael, deslocando-se pelo interior da mata que à data era muito cerrada e lhes permitia caminhar durante o dia sem grande risco.

Zé Teixeira
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9687: Agenda cultural (192): Aqui em baixo tudo é simples... Com os Melech Mechaya (hoje, em Lisboa, no Cinema São Jorge, às 21h30)




Vídeo  (2' 33''):  Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Apresentação, na loja da FNAC, Centro Comercial Alegro Alfragide, em 30/3/2012, sexta-feira, pelas 21h00, do novo álbum dos Melech Mechaya, "Aqui em baixo tudo é simples" (Ponto Zurca, 2011)...


Neste vídeo os Melech Mechaya tocam um tema tradicional da música klezmer, intitulado Sirba. Vídeo realizado por Luís Graça. Autorização dada pela banda para gravar e divulgar este tema, lindíssimo, no You Tube, na nossa conta, "Nhabijões", bem como no nosso blogue. A banda tem fãs na Tabanca Grande e alguns estarão presentes no espetáculo desta noite, em Lisboa.

Hoje, 31, sábado, os Melech Mechaya terminam uma tournée pelo país com um grande espetáculo em Lisboa, no Cinema São Jorge, às 21h30.

Para os nossos leitores que não puderem assistir ao espetáculo, aqui vai um cheirinho desta música alegre, festiva, salutogénica, que faz bem ao corpo e à alma, em vídeo especialmente preparado para os amigos do João Graça, nosso tabanqueiro (e que na banda toca violino). De facto, se aqui em baixo tudo é simples, lá cima não há disto, é a mensagem, simples, que se deduz da alegria, da paródia e da cumplicidade que estes jovens músicos portugueses deixam transparecer nos seus espetáculos ao vivo... Não os poder ver e ouvir (e interagir com eles), é uma pena
. Além do mais, são já uma referência da música klezmer na península ibérica.

2. Sobre o concerto de hoje, escreveu-nos o nosso camarada Fernando Costa, também ele músico:

Amigo,



Parabéns pela iniciativa. Moro em Lisboa muito perto da Av da Liberdade, mas não poderei estar presente porque nessa data estou também a tocar.
Bebe um copo por mim.

Fernando Costa
(ex-Fur Mil Trms da CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, mar73/set74)


3. O que é que a crítica musical diz sobre os Melech Mechaya ?


"Vimo-los tocar (...) e foram pura e simplesmente electrizantes." (João Bonifácio, Público).


"Uma banda incrível ao vivo, virada a sério para a festa." (Rodrigo Nogueira, Time Out)


"Há música que é muito mais do que isso, pelo que é, pelo que representa. É algo racional, com sentido, que vem de dentro e a torna viva, realista. É algo quase espiritual." (Rui Dinis, A Trompa)


"Os Melech Mechaya fizeram a festa com um explosivo espectáculo..." (Hélder Gomes, Cotonete)


"Cinco músicos notáveis."( Elco Schilder, FolkWorld Magazine)


"São necessários vários pares para se dançar este klezmer." (David Pinheiro, Disco Digital)


"Em palco, os Melech Mechaya juntam todos os ingredientes para uma noite de folia." (Patrícia Raimundo, Guia Da Noite)


"Os Melech Mechaya chegaram e incendiaram o palco e o público." (Youri Paiva, Ponto Alternativo )


"Os Melech Mechaya, banda que nos trouxe sons klezmer e muita, mas mesmo muita animação." (João Nuno Silva, A Certeza Da Música)


"As melodias dos Melech Mechaya parecem histórias contadas ora mais depressa ora mais devagar. Quer dizer, menos depressa." (Liliana Guimarães, Jornal Labor),


Fonte: Sítio ofical dos Melech Mechaya

Guiné 63/74 - P9686: Agenda Cultural (191): O TRILHO. Um cruzar de épocas em gerações transversais – 1950-2050 (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos a antevisão do lançamento do seu novo livro.


Camaradas!

Antecedendo o lançamento do meu quinto livro – “GUINÉ/BISSAU – AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74” – apresento, agora, “O TRILHO”, sendo que os meus textos guineenses serão, sim, apresentados em público numa outra data posterior. Quem conhece a realidade da escrita sabe de antemão que as datas pensadas, e previamente agendadas, protelam-se por vezes no tempo. Há pormenores que obedecem a irreversíveis trabalhos que passam invariavelmente pelo testar dos diversos conteúdos que a obra, no seu todo, requer.

Deixando, então, “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU” em stand-by, prometendo voltar à liça em tempo oportuno dado que a obra está concluída, sendo também certa a sua publicação, tanto mais que o livro terá o Prefácio de Luís Graça, Fundador e editor do nosso blogue, falo, hoje, do meu último livro “O TRILHO” que narra “Um cruzar de épocas em gerações transversais – 1950-2050”. A personagem principal, Jesus, nasce numa aldeia do interior do Alentejo e projecta a sua vida ao longo de 100 anos, trazendo à estampa várias vivências humanas, particularmente a sua vida militar onde relata a sua passagem pela Guiné em tempo de guerra.

O livro aborda duas temáticas: o virtual e o mundo da fixação. São, no fundo, 161 páginas de autêntico frenesim. Personagens míticas que paulatinamente foram desaparecendo com o evoluir dos tempos. Fala-se de valores de outrora que se pulverizam num horizonte onde a temática tecnológica ganha tempo ao tempo e tudo muda.

Aborda o contrabando e os pregoeiros. A emigração. A guerra, principalmente do ex Ultramar. Os anos 60. A sociedade e a sua natural transformação. Enfim, um conjunto de situações que não passam imunes ao cidadão comum.

Francisco Moita Flores, meu amigo de infância, escreveu o Prefácio – CAMINHOS – sendo que na contra capa deixo escrito um pequeno estrato do seu parecer sobre a obra.

“… A narrativa que o autor nos apresenta numa escrita simples, idílica, cravada de memórias e de utopias, remete-nos para o confronto com os sinais do tempo que marcam a nossa história recente.

Diria mais, a nossa pequena história recente, aquela que marca de forma significativa a nossa identidade – a imensidão alentejana, do espaço e nostalgia, os contrabandistas e pregoeiros, a escola e o brincar.

O livro aborda uma questão interessante. A prospecção do futuro.

Que virtudes nos trouxe a revolução que acelerou o tempo e reduziu o espaço a uma imagem? Que haverá por detrás dessas imagens quando Jesus morrer? Terá a sua vida o mesmo significado litúrgico e simbólico do outro Jesus que morreu há milénios? Que futuro está escondido debaixo da tecla “enter”?”

Um abraço deste alentejano de gema,

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


25 DE MARÇO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9658: Agenda Cultural (190): A banda portuguesa Melech Mechaya em Lisboa, Cinema São Jorge, sábado, 31 de Março, 21h30... Convidada especial: Mísia...Ganda ronco! (João Graça)

Guiné 63/74 - P9685: Estórias do Juvenal Amado (41): Um drama causado pelo esquecimento dum carteiro

Pelotão da Ferrugem na despedida de Galomaro

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 21 de Março de 2012:

Carlos e Luís
Esta é uma pequena estória de um grande camarada.

Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL (41)

O DRAMA CAUSADO PELO ESQUECIMENTO DO CARTEIRO

O Lourenço chegou quatro meses depois de nós, mas nunca se livrou da alcunha de periquito.
Algarvio já casado e com um filho, situação que deve ter transformado a mobilização muito mais difícil. Bem disposto, amigo, raramente levava a mal um brincadeira ou mesmos uma partida e não foram poucas. Com ele descobri o sabor e o prazer de comer cogumelos sabiamente cozinhados. Recordo as dúvidas sobre a qualidade dos mesmos. Dizia ele que eram iguaizinhos, só que muito maiores.

Ele, o Caramba, o Aljustrel e eu tentamos fazer uma horta com cenouras, tomates, pimentos num canteiro atrás do abrigo. Quando estava tudo muito verde e viçoso, vieram os gafanhotos às centenas e devoraram tudo.

Não desistiu e construiu uma capoeira onde resolveu criar galinhas. No dia 1 de Dezembro de 1972 um RPG destruiu a capoeira e das galinhas não sobrou nada. Mas voltou a construi-la, teimou em criar lá galinhas e em boa hora, pois deram azo a grandes petisqueiras com cerveja a correr a rodos, por causa do piripiri que como se devem lembrar era rijo de paladar.

Também foi valente e posso afirmar, que eu e os camaradas que estavam na cantina na noite de 1 de Dezembro de 1972 quando Galomaro foi atacado ao arame, lhe ficamos a dever a vida nesse dia. Foi ele que desconfiou de um movimento estranho de um rebanho de cabras e ovelhas, que se estendia junto do campo de futebol, na direção da cantina onde jogávamos às cartas e bebíamos naquela noite. Embora com medo de alguma porrada (estávamos em zona de guerra mas não nos podíamos comportar como tal) por dar tiros, ele agarrou na G3, com duas rajadas obrigou o IN a denunciar-se e iniciar o ataque, antes de se ter colocado como pretendia. Fariam tiro ao alvo com resultados desastrosos para nós.

A devoção à esposa era tal, que não havia um dia sequer que não lhe escrevesse. Ela retribuía e quando era distribuído o correio, também recebia um monte de cartas que o enchia de alegria. Este hábito criou no entanto uma das maiores ralações do nosso camarada e por sua vez a nossa preocupação, quanto ao estado psicológico dele, quando de repente deixou de receber o tão desejado correio.

Passaram-se as semanas até que ele nos confidenciou, que não tinha notícias de casa. Inicialmente ainda brincámos com o assunto, mas o caso estava já muito sério pois, quando ele se abriu connosco já estava desesperado. Acabou por se falar com o Tenente Raposo e o periquito foi chamado ao Comandante onde contou o que se passava. Rapidamente quanto possível se resolveu o assunto e também se ficou a saber o que tinha acontecido. A esposa bem respondia às cartas cheias de preocupações do marido, mas não percebia porquê que as cartas dela não chegavam a Galomaro como era de esperar.

São por vezes desencontros que nos pregam grandes partidas do destino. O responsável foi o carteiro substituto, que não conhecendo a localização do sítio de recolha de correio, o lá deixou até o carteiro regressado deslindar tudo. O Lourenço acabou por receber de uma vez só o correio de um mês para grande alegria dele e nossa, pois estávamos muito preocupados com ele.

Na foto > Periquito, Juvenal Amado e Aljustrel

Quando fizemos o primeiro almoço da Companhia (Seia) vinte anos passados, o Lourenço disse presente e foi com enorme alegria que contamos à esposa na frente dele, como ele tinha sofrido durante o jejum de notícias dela. Ele riu-se e disse naquele jeito simples:
- Foi verdade foi.

J. Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9586: Blogpoesia (182): Mulher - Esposa e Mãe (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9261: Estórias do Juvenal Amado (40): O meu compadre Aljustrel

Guiné 63/74 – P9684: Tabanca Grande (326): António Vaz, ex-cap mil CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69




António Gabriel Rodrigues Vaz, ex-Cap Mil da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69.





Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 13 > Cais do Xime, em frente à bolanha do Enxalé > "Poucos de nós se atreviam, solitariamente, a pisá-lo por estar demasiado exposto… Mas havia um puto que apanhava aí camarão, enquanto sonhava com o momento de vir para Lisboa estudar" (RM)... O camarão (gigante) desta parte do Geba era muito apreciado e pago a 50 pesos o quilo em Bambadinca, na tasca do Zé Maria... Pergunto-me se esse puto não poderia o nosso amigo, hoje engenheiro, e membro da nossa Tabanca Grande, José Carlos Mussá Biai... (LG)

Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 4 > Cais do Xime... Milhares e milhares de homens e de viaturas passaram por aqui, ao longo de toda a guerra... Havia tensão naquela ponte. Ali começava o Geba Estreito. A montante e a juzante, havia ataques do PAIGC contra as nossas embarcações: Ponta Varela, Mato Cão... O aquartelamento do Xime era flagelado ou atacado com frequência... O PAIGC tinha, desde o início da guerra, uma boa implantação no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, entre a margem direita do Rio Corubal e a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole. Na região do Poindon/Ponta do Inglês perderam-se muitas vidas... Por sua vez,  a saída do Xime, em Madina Colhido, era temida...


Guiné > Zona Leste > Xime >  Destacamento da ponte do Rio Udunduma > > CART 2520 (1969/70) > Foto 9 >  "Udunduma. Quem seria o dono da Piroga? Sei é que o rio era estreito e os putos que chegavam pela hora do almoço, na expectativa de umas sobras, acabavam por infundir-nos alguma tranquilidade… Ora, como poderia o IN flagelar-nos na presença deles? Mas a partir do entardecer, o coaxar das rãs era mesmo infernal!"...


Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 1 > "Bar de Sargentos do Xime. Em cima do balcão um barril com uma função meramente decorativa. Mas a telefonia estava operacional bem como um pequeno gira-discos. O Je t’aime, moi nos plus [, Serge Gainsbourg & Jane Birkin, 1968, ] fazia furor e a cantinela Mãe, não chores que o teu filho há-de voltar estava no topo. Ambas puxavam por mais um copo. O camarada, de caça ao piolho, de quem guardo uma boa recordação, era um tipo duro e fixe".


Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto  19 > "No dia de um ataque ao Xime, uns poucos decidiram prolongar as detonações dos disparos, abatendo duas ou três vacas que, entretanto, andavam um pouco estonteadas, a monte…Esta acção deveu-se ao facto de o proprietário dos bovinos não querer vender nenhuma cabeça à tropa. A partir daí, não teve outro remédio"…


Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto  20 > Aspeto parcial do aquartelamento, que estava separado da tabanca por uma rede de arame farpado..."Da vista panorâmica do Aquartelamento do Xime, eu destacaria o bidão em primeiro plano, transformado, como era corrente, em depósito para um banho tépido e ferruginoso, mas sempre refrescante… Ponham-me um Dali ou um Miguel Ângelo à frente dos olhos, junto com um bidão amolgado, carcomido, inútil, e é o bidão que ainda me emociona mais: a não me ter salvo a vida, evitou, pelo menos, ser atingido por uns estilhaços, aquando de um ataque ao Enxalé".

Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto  3  > "O meu pelotão (ou parte dele) acabado de chegar de Bambadinca ou de Bafatá onde íamos frequentemente abastecer-nos e trazer o correio".



Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto  21 &gt"Duvido que esta foto tenha sido tirada por mim… Na minha opinião, e apesar de tão maltratada, é a melhor do conjunto. Do lado esquerdo do poste, o Capitão [, Mil Art António dos Santos Maltez] por quem eu nutria uma grande simpatia e cujo paradeiro ignoro. Não faço ideia nenhuma onde teve lugar a cena ilustrada"...


Fotos: © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados (Legendas do autor e do editor).



1. Anteontem, na sessão de lançamento do último livro do Beja Santos, conheci finalmente o António Vaz (*), o camarada, nosso leitor, que tinha feito um belo elogio ao nosso blogue e ao seu espírito de amizade e de camaradagem.

 Nesse mesmo poste (*)  manifestara-lhe  o deu desejo de ver o entrar na Tabanca Grande como o tabanqueiro nº 544. Quinta feira passada, não foi preciso insistir… Ele passa a ser, desde então, o tabanqueiro nº 544…

O António aceita as nossas 10 regras de ouro (incluindo o natural tratamento por tu,  entre antigos camaradas de armas, agora 'cotas') e promete arranjar uma foto atual… Quanto mais seja a que lhe vamos tirar em Monte Real, no nosso próximo encontro, para o qual ele está inscrito. Embora com a máquina em punha, não me lembrei de lhe tirar uma chapa, no meio da conversa com este e com aquele.

Quanto ao resto, ele – que é leitor assíduo do nosso blogue – já aqui fez a sua apresentação (*). A seu lado, estava o cor inf ref José Aparício, o homem que, como capitão, comandava a CCAÇ 1970, na altura da retirada de Madina do Boé e do desastre do Cheche, no Rio Corubal, em 6 de fevereiro de 1969. Também é fã do nosso blogue. 



Qualquer deles são pessoas afáveis. Convidei o Aparício  igualmente  a ingressar na Tabanca Grande. Ficou, por lado, de mandar para o blogue informação sobre duas teses de doutoramento norte-americanas cujo conteúdo poderá eventualmente ser de interesse para nós.


Voltando ao António Vaz, e como ele próprio o diz, tem na Tabanca Grande muita gente do seu tempo, tanto da região do Oio (Bissorã) como da região de Bafatá (Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Galomaro…), a começar pelo Torcato Mendonça. 

Já disse ao Torcato que comfirmo "o pormenor da pera"  e e que o0 acha em grande forma, para um camarada com a idade dele.

Recorde-se que o António Vaz também já tinha manifestado a vontade de voltar a ver o nosso Torcato “para caturrarmos à volta de Mansambo onde cheguei a ir numa operação em que também ia o Pimentel Bastos e que dará para umas larachas a propósito”.

Recorde-se, mais uma vez, que a CART 1746 teve como unidade mobilizadora o GCA 2, seguiu para a Guiné em 20/7/1967, regressou em 7/6/1969, esteve em Bissorã e no Xime, e só teve um comandante, o Cap Mil António Gabriel Rodrigues Vaz, de seu nome completo.

Em meu nome do Luís Graça, dos demais editores e de toda a Tabanca Grande, dou ao novo camarada as boas vindas, ficando então para Monte Real a sessão de fotografia...  (LG)



PS - António Vaz, meu camarada, como prenda pela tua entrada na Tabanca Grande, fui recuperar velhas fotos do Xime, do álbum do meu amigo Renato Monteiro (ex-Fur Mil da CART 2479, depois CART 11/CCAÇ 11, Contuboel e Piche, 1968/69, e da CART 2520, Xime, 1969; esta  CART 2520, foi a que vos foi substituir, a vocês CART 1746).

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Notas do editor:

(*) vd. poste de 28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9673: O Nosso Livro de Visitas (131) ): Antonio Vaz, 75 anos, lisboeta, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69: A Tabanca Grande é um fenómeno sem paralelo, que me deixa abismado e surpreendido



(**) Último poste da série > 15 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)


sexta-feira, 30 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole

1. Conclusão do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:

O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (4)

DE COBUMBA PARA BISSAU

Chegou o dia do regresso a Bissau, nessa manhã a única viatura que tínhamos operacional avariou, todas as coisas que tínhamos connosco para levar para a LDG que nos foi buscar, tiveram de ser transportadas às costas, mas por essa altura eu estava fisicamente bastante fragilizado, tive que pagar a um homem da população para me levar o caixote com os meus pertences, tendo eu levado apenas a G.3, as cartucheiras, e um pequeno malote onde transportava dois ou três quilos de peso, mesmo assim, ao fim de escassas centenas de metros até chegar ao barco, já não conseguia caminhar mais. Há pouco tempo tinha passado por lá o médico, que creio estava sediado em Bedanda a quem eu me queixei, tive como resposta; de facto estás doente, mas não te posso mandar para Bissau.

Deixamos Cobumba descendo o rio Cumbijã, alguns quilómetros mais abaixo estava outra companhia à espera para seguir connosco para a cidade, vindo de Cafal Balanta. Dessa companhia fazia parte um vizinho nosso, o Victor Santos, da Lagoa do Cão. Se um vizinho deixava aquela zona, um outro que o tinha ido render ficava bastante triste e só; era o José Balbino, sabendo que eu vinha a caminho de Bissau quis vir ver-me, não foi fácil para ele, como não seria para qualquer um, despedir-se de um vizinho com a comissão quase terminada… e ele ainda no inicio e numa zona tão má como era aquela.

Normalmente as companhias quando vinham do mato para a cidade era porque estavam para regressar à Metrópole, ou fazerem trabalhos de menor risco. Sabíamos ir estar mais alguns meses na cidade, o que não sabíamos era que a nossa companhia ia passar a ser cem por cento operacional, só os criptos exerciam a sua especialidade, todos os outros faziam os mesmos serviços. Para além do serviço de segurança à cidade que constava de percursos a pé durante a noite na periferia, em grupos de três ou quatro homens, serviços ao paiol, ao Palácio do Governador, no cais quando chegava algum barco da Metrópole, e também serviço junto ao arame que em alguns sítios circundava a cidade.

Como se tal não chegasse com vinte e seis meses de tropa, fizemos uma coluna a Farim, viagem de alto risco. Por essa altura a minha saúde não era a melhor, pela primeira vez tinha tido paludismo, e dois dias antes de se realizar a coluna fui ao médico tentando que ele me dispensasse de serviços pesados.Tive sorte, fui dispensado de ir a Farim, apenas eu e outro camarada que estava também de baixa não fomos.

No tempo em que estivemos em Bissau, o quartel ficava a poucos quilómetros do centro da cidade, na Combis em Brá, nós de vez em quando íamos até lá. Na cidade havia muito movimento apesar de mesmo por lá as coisas começarem a não ser totalmente seguras. Por essa altura, rebentou um engenho explosivo no café Ronda, sempre muito frequentado por militares, também dentro do QG houve uma explosão, e no Pilão certa noite houve tiroteio durante bastante tempo, estando a nossa companhia pronta para sair. eA tropa esteve mais de uma hora em cima das viaturas à espera de ordem para avançar, era cerca da meia noite os tiros pararam pelo que o estado de prontidão foi suspenso. Nesse dia eu estava de cabo dia, razão pela qual se a companhia tivesse saído eu teria ficado no quartel.

Um dos locais com paragem obrigatória para quase todos que vagueavam pela cidade, era o café Bento, ou a 5ª REP como toda a gente lhe chamava. Assim que nos sentávamos, ainda antes do empregado de mesa, chegavam os engraxadores que se preparavam e insistiam para nos engraxar as botas a troco de dois pesos e meio, ou três. Naquela tarde sentei-me na esplanada e logo apareceu um dos muitos engraxadores, o marreco. Disse-lhe que só lhe dava dois pesos e meio, ele começou a engraxar as botas, quando acabou a primeira disse-me, olha que são três pesos, eu disse-lhe que não, e ele levantou-se e foi embora, deixando-me com uma bota engraxada e outra não, mas o mais caricato é que as minhas botas uma era mais velha que a outra e eu coloquei primeiro a nova a jeito de ser engraxada, e assim a mais velha mais mal ficou a parecer ao pé da engraxada, ainda prometi os dois pesos e meio aos outros engraxadores que estavam por ali para me engraxarem a outra, mas solidários com o marreco nenhum quis. Não me restou outra alternativa a não ser sair pela porta oposta à esplanada e voltar a sujar a bota engraxada, com terra para não parecer tão mal.

Os serviços continuavam na cidade, o tempo normal de comissão já há meses que tinha passado, e nós sem saber quando seria o nosso regresso à Metrópole. Poucos dias antes de virmos embora tivemos uma baixa, o furriel Trindade, o homem que tantas minas tinha levantado, ao ser atropelado pela viatura que lhe ia levar o almoço, quando se encontrava em serviço com alguns homens num dos postos de guarda junto ao arame farpado que existia em alguns sítios em redor da cidade.

Faltavam três dias para o nosso regresso, fomos informados que teríamos de fazer mais uma coluna a Farim p+elo que à tarde fomos levantar as viaturas que íamos levar na madrugada seguinte. Estávamos completamente arrasados, a dois dias de terminar o nosso tempo de Guiné, irmos fazer uma coluna a Farim, para essa também eu já tinha levantado viatura, mas a poucas horas do inicio da viagem alguém teve o bom senso, e decidiu que não seriamos nós a ir na coluna.

Faltavam dois dias mas não tínhamos a certeza que seria assim, só quando nos encontramos dentro do Boeing e já no ar acreditamos que era desta que a nosso regresso ia acontecer. Embarcamos perto do meio dia em Bissau no dia dois de Abril e chegamos ao fim da tarde a Lisboa.

Passados trinta e oito anos da minha chegada à Guiné dando uma volta pela memória encontrei os factos aqui relatados, certamente muitos não terei conseguido lembrar-me, mas fiquei satisfeito com aqueles que consegui lembrar em apenas três semanas.

Se alguém chegar a ler este relato de vida que foi a minha, durante o tempo de tropa que passei em África, e que foi também o de muitos jovens do meu tempo, em particular aos que passaram pela Guiné, verá que as coisas agora não são tão más como parece!

Outubro de 2010
António Eduardo Jerónimo Ferreira
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Nota de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

15 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

18 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo
e
21 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

Guiné 63/74 - P9682: Agenda Cultural (191): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - História e Memória(s) - 1961-1974 (Carlos Cordeiro) (11): Que promessa?, pela Prof.ª Doutora Gabriela Castro, dia 30 de Março de 2012 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Cordeiro* (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, com data de 29 de Março de 2012:

Meu caro Carlos,
Amanhã, 30 do corrente, teremos a nossa sétima conferência do ciclo de conferências-debate "Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s)". Junto a notícia, nota biográfica e foto da conferencista, cartaz e prospeto.
Obrigadíssimo, querido amigo.
Não me puxes as orelhas por ir muito em cima da hora, please!!!

Um abraço amigo do
Carlos Cordeiro





BREVE NOTA CURRICULAR 

MARIA GABRIELA COUTO TEVES DE AZEVEDO E CASTRO é doutorada em Filosofia Contemporânea, especialidade de Estética e Teorias da Arte, pela Universidade dos Açores, com a dissertação intitulada A imaginação em Paul Ricoeur, filósofo que estuda desde 1988 e que foi também tema das suas provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, em 1991, com um trabalho subordinado ao tema Os símbolos do trágico em Paul Ricoeur.

É directora do Centro de Estudos Filosóficos da Universidade dos Açores e docente dessa universidade, onde tem leccionado diversas disciplinas aos cursos de História, Filosofia e Cultura Portuguesa, Património Cultural e Arquitetura. Foi diretora do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais daquela Universidade e tem liderado projetos investigação na área científica da sua especialidade.

É autora do livro intitulado Imaginação em Paul Ricoeur. Tem proferido conferências e comunicações em vários congressos e colóquios em Portugal e no estrangeiro, constando da sua bibliografia diversos artigos publicados em revistas da especialidade nacionais e internacionais e a colaboração em várias obras coletivas.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9427: Agenda Cultural (185): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (10): Intervenção da Prof. Dra. Célia Carvalho, dia 3 de Fevereiro de 2012 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9658: Agenda Cultural (190): A banda portuguesa Melech Mechaya em Lisboa, Cinema São Jorge, sábado, 31 de Março, 21h30... Convidada especial: Mísia...Ganda ronco! (João Graça)

Guiné 63/74 - P9681: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (13): Mansoa, 30 de Março de 1973: Faço hoje vinte e seis anos...




Carta da província da Guiné) > Escala 1/ 500 mil > Pormenor > Posição relativa de Mansoa, com Binar e Bula a oeste, e Porto Gole e Bambadinca, a leste.



1.  Com comissões de serviço militar de 2 anos, inicialmente, e depois de 21 meses, muitos de nós celebraram (!) dois ou até três aniversários natalícios no TO da Guiné... O mesmo aconteceu ao nosso camarada António Graça de Abreu (abreviadamente, AGA, nascido em  23 de março de 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74, aqui na foto à esquerda, ): fez os 26 anos em Mansoa (região do Oio) e os 27 em Bissau ou em Cufar (região de Tombali), tendo regressado a Portugal, nas vésperas do 25 de abril de 1974... Em Mansoa já não era "pira", com 9 meses. 

Essa efeméride (a do aniversário natalício de 1973) é a única que consta do seu diário. (Os seus 27 anos deve tê-los passado em Bissau, regressando a 31/3/1974 a Cufar, de avioneta). Com a devida vénia, vamos reproduzir - para conhecimento da generalidade dos nossos leitores - esse excerto do Diário da Guiné, 1972/74, da autoria do AGA, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). 

 Mas primeiro chamamos a atenção para algumas excertos  do prefácio, em que explica o como surgiu e decidiu publicar este documento diarístico... E hoje, como é dia do seu 65º aniversário, fica bem a um amigo e camarada da Guiné, e seu leitor, como eu, congratular-me por esta efeméride, e desejar ao AGA cem anos de ventura(s)!... Que a ta vida tenha sempre a beleza de flor de lótus, a consistência do jade,  o conforto e a fantasia da sede!... E, claro, sempre, sempre, sob a proteção do irã acocorado no sagrado poilão da nossa Tabanca Grande (LG)



Apesar de tudo, a vida é bela quando se tem 26 anos (celebrados em Mansoa, em 1973)... E continua a sê-lo, aos 65, em Portugal, nesta parte do planeta, que é a nossa casa!... Parabéns, meu amigo AGA, camarada, escritor, poeta, tradutor, sinólogo! "Sínico, mas não cínico", como ele gosta de se definir...


2. Excertos do diário  > Prefácio

(...) "Não sendo propriamente um operacional, o facto de estar integrado num comando de operações [, CAOP 1,] e de contactar todos os dias homens e lugares onde ocorriam acções militares, possibilitou diluir-me no quotidiano da guerra, vivê-lo por dentro, ser testemunha e actor de um drama real que se desenrolava diante de nós, camaradas de armas e desdita.


"Tinha então vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete anos e, tal como muitos outros milhares de soldados enviados para as guerras de África, escrevi um 'diário secreto', redigi centenas de aerogramas e cartas endereçadas a familiares, a amigos em Portugal.

"Três anos depois de regressar da Guiné, os acasos da fortuna levaram-me outra vez para distantes paragens, agora o Extremo Oriente, a China onde – depois de todas as guerras - me embebi num quotidiano de paz, sortilégios, alvoroços e fascínios a povoar o respirar célere da passagem dos anos. Quase esquecia o tempo da Guiné.

"Os anos passaram. De novo em Portugal, sabia que continuavam comigo o 'diário secreto' e muitas das cartas que escrevera em África. Mas considerava esses textos uma herança demasiado pessoal. Publicar, dar a conhecer o 'diário' corresponderia talvez a um confessado exercício de auto-complacente contemplação do umbigo, de narcisismo. Eu, eu e mais eu.


"Os anos passaram. Até que, em finais de 2005, a publicação dos aerogramas e cartas escritas em Angola por António Lobo Antunes, entre 1971 e 1973 - e que li de um fôlego, - me recordou o 'diário', os meus textos da Guiné. Ainda somos algumas centenas de milhares de portugueses que, como militares, vivemos as guerras de África, no entanto a memória desses anos vai-se inevitavelmente esbatendo, esquecendo. 

"Que conhecem os nossos filhos, os nossos netos do dia a dia dos seus pais e avós combatentes na Guiné, em Angola e Moçambique? Que sabem do que comíamos, onde dormíamos, como nos deslocávamos, o que sentíamos, como eram as emboscadas, as flagelações, a morte, o medo, as bebedeiras, a alegria? Como era a guerra por dentro? Os meus escritos dos dias da Guiné respondiam a algumas destas questões e, longe de qualquer comparação com a prosa exuberante do autor de Os Cus de Judas, acabei por considerar que valia a pena recuperá-los e publicar". (...).



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14.... Antes, e desde finais de junho de 1972,  estivera em Teixeira Pinto (Canchungo). Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, regressando a Portugal nas vésperas do 25 de Abril de 1974.


Foto:  © António Graça de Abreu (2010). Direitos reservados


(...) Mansoa, 30 de Março de 1973

Faço hoje vinte e seis anos, de certeza também complementarei os vinte e sete nesta santa Guiné. Tantos dias ainda a percorrer, tanto vazio a preencher! Se tudo correr bem, daqui a um ano estarei em Bissau à espera do avião para regressar a casa e deixar de vez a guerra.

Ninguém sabe que eu faço anos e não foi para recordar a data que às seis da manhã os obuses começaram a bater a zona, a mandar granadas de canhão para os possíveis locais onde os guerrilheiros se estariam a levantar da cama.

Às oito, foram os combatentes do PAIGC a flagelar à distância a frente de trabalhos da estrada Jugudul-Porto Gole-Bambadinca, sem resultados. É a quarta vez nestes últimos três dias, o que só serve para criar insegurança e fazer barulho. Os nossos obuses começam a ripostar e lá se vai o sossego, o nosso e o do IN.

O meu coronel, o meu major P. e um tenente-coronel que está aqui emprestado ao CAOP, foram esta manhã de jipe, com uma pequena escolta, a Bula e Binar, tratar de assuntos relacionados com ofensivas sobre o IN. Os guerrilheiros sabiam que gente importante ia chegar a Binar e estavam à espera, emboscados junto à pista de aviação. Falharam a recepção porque os 'homens grandes' brancos não chegaram de avião, viajaram por estrada. Foram e regressaram em paz. (...)

(...) Cufar, 31 de Março de 1974

Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, - disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor

(*) Último poste da série > 23 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9642: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (12): Os infelizes que estão em Cobumba...


Guiné 63/74 - P9680: Armando Pires, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães agradecem à tertúlia as manifestações de carinho a propósito dos seus aniversários

1. Mensagem de Armando Pires*, ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 27 de Março de 2012:

Camaradas Editores.
Um sensibilizado abraço pelas vossas mensagens de Parabéns.
Aproveito para lhes solicitar publicação do texto anexo, o qual serve para agradecer, honrado, as muitas felicitações que Camaradas e Amigos me endereçaram através do Mural da nossa Tabanca Grande.

Cedo compreendi que a Amizade é um bem imperdível. Fardado, conheci outro bem de valor acrescentado. A Camaradagem.

Nela andam, ombro a ombro, a Amizade e a Solidariedade. Resistem a tudo. Até às divergências.

A nossa Tabanca, mais do que o ponto onde as nossas vidas se cruzam com a história, é o laço que tudo entrelaça. Que tudo torna perene.

Aos Camaradas que neste dia, através das mensagens que me dirigiram, me fizeram sentir quanto todos estes sentimentos permanecem vivos o meu

Muito Obrigado
Um Forte Abraço
Armando Pires


2. Mensagem de agradecimento dos co-editores Eduardo Magalhães e Carlos Vinhal à Tertúlia**:

Caros camaradas e amigos tertulianos
Por que levaríamos imenso tempo a agradecer individualmente a todos quantos se nos dirigiram por comentário, mensagem electrónica, telefone (voz e SMS) e facebook, e foram tantos, felicitando-nos pelo nosso aniversário, utilizamos este meio expedito para o fazer.

Não é demais referir o quanto o nosso ego se elevou perante as vossas simpáticas palavras, muitas de elogios que nem merecemos. Tudo faremos para não defraudar as vossas expectativas e continuarmos a usufruir da vossa consideração e, principalmente, da vossa amizade.

Camaradas houve, que embora solidários com o nosso aniversário, não tiveram oportunidade de nos contactar em tempo útil. Podem estes amigos ficar cientes que o seu silêncio para nós foi considerado como mensagem de apoio à nossa longevidade e saúde.

Vamos continuar por aqui ajudando, como podemos e sabemos, o Luís a levar a bom porto esta tarefa diária que só terá fim quando deixar de haver colaboração da tertúlia. Nós não esmoreceremos, nunca. Esperamos o mesmo da vossa parte.

Aqui fica o nosso abraço
Eduardo Magalhães e
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9669: Parabéns a você (396): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70)

(**) Vd. poste de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9670: Parabéns a você (397): Carlos Vinhal (64) e Eduardo Magalhães (60), dois dos nossos queridos co-editores

Guiné 63/74 - P9679: Notas de leitura (346): A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné, Gandembel/Ponte Balana, de Idálio Reis (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 27 de Março de 2012:

Queridos amigos,
É difícil imaginar o sofrimento que acompanhou a redação deste texto. Um grande escritor poderá fazer deste historial de sofrimento uma narrativa sublime, um libelo acusatório à irresponsabilidade de certos decisores militares que lançam seres humanos para posições indefensáveis, num esquema de ficção de que ocupam o território só porque estão homens dentro do arame farpado.
O nosso confrade Idálio Reis desvenda Gandembel em toda a sua grandeza e miséria: os limites da resistência física, moral e psicológica esticada até à linha da destruição, por isso quem resistiu devia merecer a nossa gratidão e sair do anonimato, é este o resultado sublime deste livro; miséria e vergonha para quem inventou aquele ponto ermo que serviu a propaganda do PAIGC.
O Idálio merece ser felicitado pela sua narrativa bem elaborada e original.

Um abraço do
Mário


A epopeia dos 296 dias no octógono de Gandembel

Beja Santos

“A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné” é um livro original, a diferentes títulos. O narrador, um dos seus alferes milicianos, surge como responsável pelo historial da companhia e depois apaga-se, volatiza-se na surpresa de um punhado de homens a quem atribuíram ma missão inacreditável, uma dobadoira de sofrimento constante, desde que abriram as primeiras fundações até ao dia da retirada. O narrador socorre-se de um português vernacular, usa sem artifícios um léxico luxuriante, cinzela a primor tudo o que nos vai aproximar de uma tragédia anunciada, descreve os acontecimentos da fundação e depois do desaparecimento de Gandembel e Ponta Balana, foi aqui que esteve o clímax da comissão da CCAÇ 2317, o que se irá passar em Buba e Nova Lamego é encarado como meramente acidental, é um correr da pena, quer-se o leitor preso e de tal modo que aqui se entretece mais uma dimensão dessa originalidade: Idálio Reis insere todos os acontecimentos da CCAÇ 2317 no amplexo de toda a guerra da Guiné, não nos explica exatamente porquê, mas o produto final acaba por contribuir para esta narrativa pungente deixar o leitor mais desassossegado. Afinal, dentro de um ecrã gigante de todos os factos e feitos da Guiné o que se passou em Gandembel/Ponta Balana é quase ou mais irracional de todo aquele cortejo de sofrimentos que levaram ao sofrimento atual daquele povo e à indignação (ainda presente) de quem combateu na CCAÇ 2317.

Idálio Reis não esconde a sua indignação: os documentos oficiais são parcimoniosos, parece que Gandembel foi uma redundância, mesmo com bastantes mortos e feridos. E temos uma singeleza para o corpo militar que se formou nos finais do Verão de 1967, no R.I. 15, a CCAÇ 2317 fazia parte do BCAÇ 2835. Em outubro tinha o destino traçado, rumo à Guiné. Finda a instrução especial, uma passagem por Santa Margarida. Em meados de Janeiro partem do cais de Alcântara no velho Quanza. Passam três semanas em Brá, na altura o presidente Américo Tomás chega a Bissau. Segue-se o treino operacional em Mansabá e Olossato. Os mandantes consideraram que a companhia amadurecera e podia partir para o Sul. Para uma terra de ninguém da região do Forreá. Esporadicamente, o narrador desaperta a neutralidade e clama em voz alta o seu protesto. Um exemplo: os acontecimentos de sofrimento, passados em Gandembel/Ponta Balana foram em tal quantidade, que desapareceram de modo significativo nos documentos oficiais conhecidos. E é por isso que nos sentimos profundamente chocados com esta provocante atitude, que em nada enobrece a instituição militar (…) Em seu nome, dos que tiveram a desdita de nos acompanharem neste longo pesadelo, em memória dos que vimos afastarem-se precoce e compulsivamente do nosso seio, procuraremos dar sinal dos amargos momentos vividos”.

A CCAÇ 2317 desembarca em Cacine e segue para Guileje. O narrador descreve os itinerários ali à volta do Cantanhez. Logo em 28 de Março, na proteção a uma coluna a unidade sofre duas baixas. Chegou a hora de partir para a criação de um quartel, em terra de ninguém. Antes, numa tentativa de desalojar o PAIGC das suas bases poderosas, vagas sucessivas de helicópteros lançam os para-quedistas em Cafal e Cafine e aniquilam um bigrupo. Em 8 de abril dá-se a partida, o narrador esmiuça os pormenores, teria havido nas imediações deste quartel que se iria fundar uma tabanca, de há muito abandonada, que se chamava Gandembel, bem pertinho do corredor de Guileje. Encetara a via-sacra, os soldados disfarçam-se de operários da construção civil, não basta os abrigos, são necessárias latrinas, desmatação, a criação de um posto de primeiros socorros, uma cozinha de campanha, ir buscar água ao rio Balana. Um pormenor: a água era infecta mesmo após alguma filtragem. Os guerrilheiros do PAIGC não tardam a apresentar-se com saudações de morteiros 82. Abriu-se o diário das flagelações, na noite de 30 de Abril houve 6 flagelações. A época das chuvas aproximava-se, foi uma autêntica corrida contra o tempo pôr de pé o destacamento de Ponta Balana. Ir buscar água ao Balana podia acarretar destruição, logo em 15 de maio um furriel aciona uma mina antipessoal e perde as duas pernas. Nessa data, a unidade militar está entregue a si própria quem ali tinha estado a dar proteção durante as primeiras semanas regressou a quartéis.

Há momentos em que sentimos que Idálio Reis quase nos obriga a descer àquela mata que se adubou de sangue, a descrição com que se constroem os abrigos, o nascimento da ansiedade em torno das colunas de reabastecimento e depois a forma exaustiva como ele menciona os ataques, dia após dia. As colunas são um suplício, víveres e munições custam um martírio a muita gente até chegarem a Gandembel. Spínola inteira-se da situação, tudo levava a crer que se Beli fora prontamente um quartel a abandonar por maioria de razão Gandenbel devia ser erradicado do mapa. Mas não, o número de mortos e feridos não para de crescer. Há datas horríveis, como 4 de Agosto, dia em que a companhia perde 4 elementos, descrevem-se ataques brutais, há cenas de solidão e de desespero, chega ali um alferes que prontamente entra em estado de choque, dali parte numa evacuação. O jornalista César da Silva, do Diário Popular, ali passa a noite de Natal, publicará uma reportagem audaciosa, inexplicavelmente a censura deixa passar as sequências de calvário que ali se vivem. E o narrador continua: “É na zona de Gandembel que o inimigo possui o maior potencial de fogo e foi contra esta posição que utilizou, pela primeira vez, o morteiro de 120 mm. Foi, também, na mesma zona que plantou o maior número de fornilhos (mina reforçada com torpedos de TNT que se destina a cortar itinerários, pois tem grande poder destruidor). No decurso de duras flagelações noturnas, o inimigo tentou penetrar no aquartelamento. Foi sempre repelido. Os para-quedistas deixaram 4 mortos em Gandembel e levaram alguns feridos, mas foram capazes de façanhas como a seguinte: numa nomadização orientada até algumas centenas de metros da fronteira, surpreenderam, certa madrugada, um bigrupo inimigo. Dizimaram-no completamente em menos de uma hora”.

Lê-se com consternação tudo quanto Idálio Reis escreve sobre as colunas de reabastecimento, aqueles três trajetos Guileje/Gandembel, Aldeia Formosa/Gandembel e Buba/Aldeia Formosa foram palcos de diferentes tragédias, tornaram-se caminhos de pesadelo e carnificina.

A ordem de retirada chegou finalmente, em Fevereiro rumam para Buba, a unidade vai ser ocupada nos trabalhos de vigilância da estrada. E mais tarde são destacados para um quase oásis, Nova Lamego. Balanço: “A bordo do Uíge, navegando de 5 a 10 de dezembro de 1969, sob o comando de um único oficial (este escriba), chegámos à unidade mobilizadora, 121 militares, com 11 sargentos, 29 cabos e 80 soldados. Perdas: 9 mortos (1 alferes, 1 furriel e 7 soldados), 18 evacuados para Lisboa”. Passadas estas décadas, o historial da unidade é apresentado ao público e deste modo: “Com imenso gosto e muito prazer, procurámos corresponder ao que um dia tínhamos prometido. É uma narração sucinta, indubitavelmente singela, mas que procurámos, à medida da nossa humilde pena de escrita, pormenorizar as múltiplas e diversificadas facetas em que a Companhia esteve inserida”.

É um relato que não deixará nenhum veterano de guerra insensível. Se Shakespeare voltasse à terra teria aqui pasto para uma das suas tragédias: a demência do poder, a impotência dos figurantes, a insensibilidade dos decisores, almas em desatino, uma permanente cena única em que os atores estão cercados por todos os lados.

Num relato inesquecível, mais uma riqueza testemunhal para o nosso blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9664: Notas de leitura (345): O Boletim Geral do Ultramar (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9678: Nós da memória (Torcato Mendonça) (17): Partida - Fotos falantes IV





1. Texto e Fotos Falantes (IV Série) do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória".





NÓS DA MEMÓRIA - 17
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

13 – Partida

Partimos um dia pela manhã.
Armas aperradas, cuidados redobrados, lá fomos.

Paragem em Bambadinca para despedidas e os entendidos irem tratar de burocracias. Continuação da viagem, o Pontão do Unduma a ficar para trás, paragem em Amedalai para um adeus, uma promessa, a entrega dos galões ao Comandante do Pelotão de Milicias e, depois, foi um saltinho até ao Xime.
Aí esperamos e desesperamos pela nossa boleia. Finalmente chegou a LDG e nós, juntos a muitos outros, embarcamos.
Fomos convidados a acautelar as armas ou mesmo a guardá-las. Pedido não satisfeito.

LDG > Transporte de carga diversa até ao Xime

Partiu a LDG e, pouco depois, um novo pedido convite, se bem me lembro em nome do Comandante da embarcação: os oficiais eram convidados a irem até à ponte ou bar. Já não recordo bem. Éramos só dois e nem foi necessário dizer nada. Pedido não satisfeito. Certamente outros, que por ali andavam e nada diziam, tivessem ido. Não sei.

O que sei é que, ao final da tarde estávamos no cais de Bissau.

Encontrei, no cais, um capitão dos meus tempos de Évora. Comandava uma Companhia recém-chegada e ia a caminho do Sul.
Para ele era a segunda comissão. Despedimo-nos, sem grande palavreado, mas com um forte abraço a tudo dizer.

Parte da instalação da 2339 em Bissau ou efeitos do clima em fim de festa

Aquele cais e zona ribeirinha deixou-me muitas recordações. Boas e menos boas.

Dias depois, quando o Uíge chegou com mais militares e a preparar-se para nos levar, quase todas as noites passava pelo cais para o ver.
Curiosamente encontrava, quase sempre militares conhecidos a fazerem o mesmo percurso e, certamente a pensarem no mesmo.

O Uíge retempera forças para regressar à Pátria com os últimos militares do império

Eu continuava com as dúvidas: vou ou não? Volto ou não?
Ficou o capitão na Comissão Liquidatária e não mais voltei.

Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Vd. último poste da série de 26 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9663: Nós da memória (Torcato Mendonça) (16): Cultura e desporto em Mansambo Resort - Fotos falantes IVTorcato

Guiné 63/74 - P9677: Parabéns a você (398): António Graça de Abreu, ex-Alf Mil do CAOP 1; Benjamim Durães, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger da CCS/BART 2917 e Rosa Serra, ex-Alf Mil Enf.ª Pára-quedista do BCP 12


2. Mensagem do camarada Mário Fitas a António Graça de Abreu:

Caro António, 
Com a foto de bons momentos na Tabanca Grande e o soneto do poeta Joaquim Pessoa, envio um grande abraço de parabéns. 
Desejo-te um dia bem passado junto de todos os que te são queridos. 
Com a saudade do nosso Cumbijã, o fraternal abraço. 
Mário Fitas


Também eu tenho um hobby: é viver 
minuto após minuto a minha vida, 
se possível do lado em que souber 
que vale mais a pena ser vivida. 

Já deixei de sonhar com andorinhas 
e com o deus à venda nos prospectos. 
Recuso-me a entrar em capelinhas 
pois faço à transparência os meus projectos. 

Sei bem que os incapazes me detestam 
e nem os preguiçosos aguentam 
comigo a funcionar a todo o gás. 

Contudo, cada um vale o que vale. 
Porquê ambicionar ser imortal 
se nunca saberei se fui capaz? 

 Joaquim Pessoa 
Com a devida vénia


3. Mensagem de Mário Fitas para a nossa Enfermeira Paraquedista Rosa Serra:

Estimada Rosa, 
Com estas fotos do há 45 anos em Cufar e de 2010 em Montereal, encontro desta Grande Tabanca, envio os meus parabéns por este dia, que ele se repita por bons anos com muita saúde, junto de todos os que lhe são queridos. 

Fraterno abraço, 
Mário Fitas



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9670: Parabéns a você (397): Carlos Vinhal (64) e Eduardo Magalhães (60), dois dos nossos queridos co-editores

quinta-feira, 29 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9676: O Cancioneiro de Gandembel (2): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte II) (Idálio Reis)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Aspeto geral do aquartelamento (foto de cima) e vista de um doa abrigos (foto de baixo).


Foto: © Idálio Reis  (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




1. Continuação do texto da autoria de Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69):


Os Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte II) (*)


por Idálio Reis
 

(...) [O Hino de Gandembel] caiu em graça, ao ajudar a libertar sentimentos de desesperança e inquietação, e o pessoal, indistintamente, parecia denotar um incontido júbilo no trauteio deste canto, onde os sons e o silêncio se sincronizavam em gesto de deslumbrante generosidade, do louvor à vida.


Quando surge o hino de Gandembel, continuavam a manifestar-se,  nesse acantonamento, situações particularmente amargas, e quando o descomedimento amainava, parecia ter o condão de apaziguamento, quando alguém exclamava de forma sentida “Oh Gandembel das morteiradas!”. O seu contributo para o estímulo da Companhia foi valiosíssimo, na aquietação das animosidades, na pacificidade das tensões 

Fundamentalmente, o hino teve a graça de contextualizar a gesta dos que tiveram a desdita de viverem coactivamente naquele soturno lugar, com inúmeros e alongados estremecimentos de inquietação.

Permita-se-nos uma leitura deste anódino poema, para referir alguns aspectos.

Hino de Gandembel [Ouvir aqui a interpretação do António Almeida]

Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.


- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é prá Ponte! (i),
Logo se ouve dizer.


Refrão


Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se liga o rádio
Ao som de estrondos e tiros.


A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (iii)
É preciso protecção.


Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.


Refrão (...)


Temos por v’zinhos o Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.


Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!


Refrão (...)


 [Notas: (i) Ponte Balana; (ii) Verylights; (iii) WC;  (iv) G-3; revisão e fixação de texto: L.G.]


Eis o que uma letra de um poema de um profundo sentimento popular, que atendendo aos incríveis circunstancialismos em que foi escrito e musicado, num arrepiador ambiente de uma guerra, que cruentamente avassalava, ferindo e matando, se viria a transformar tão-só num hino à vida, porquanto:

(i) Uma das facetas mais horrendas ao longo da sobrevivência daquele poiso, foram as míseras condições com que nos defrontávamos no dia-a-dia. Pernoitámos em abrigos, onde os corpos se deitavam sobre uma simples tela de borracha, que se estendia sobre o chão de terra nos abrigos-toupeira («imitamos a toupeira») e posteriormente no piso de cimento das casernas-abrigo. Em ambos, os troncos das centenas de árvores abatidas, vieram a desempenhar um contributo muito especial na nossa segurança («dos abrigos de madeira»). Mas estes abrigos, único meio para possibilitar tomar algum descanso, quantas vezes viria a ser suspenso pelas («morteiradas, canhoadas, tiros»), impedindo alívio, apaziguamento e serenidade.

(ii) Das peripécias de guerra mais agressivas, foi a audição dos milhares dos ecos das saídas dos morteiros, em que os de calibre 82 se mostravam demolidores: («Gandembel das morteiradas»), que quase quotidianamente flagelavam aquele poiso; os momentos de ansiedade e expectativa, enquanto a granada silvava os ares na sua trajectória indefinida, eram aterradores: («Meu alferes, uma saída/Tudo começa a correr»). Havia um estrépito quando deflagrava, e tudo se poderia esvair naquele contacto com o solo: onde? longe? ao lado? («Não é p´ra aqui, é p´ra Ponte/Logo se ouve dizer»).

(iii) Um outro negro aspecto, que envolve um doloroso e prolongado tempo, foi a do espectro da fome, pois a variedade das refeições quase não se alterava, em que os frescos praticamente não existiram: («A comida principal/É arroz, massa e feijão»). E quantos períodos sem uma qualquer bebida, que não fosse a água do Balana: («Bebida, diz que nem pó, /Acontece o mesmo ao vinho»).

(iv) A relevância dada à intimidade das valorosas e fidelíssimas companheiras que não largávamos, as nossas G3, que descansavam a nosso lado enquanto dormitávamos, e que em geral tinham um nome de estimação. Sempre limpas e asseadas, mostraram-se sempre ágeis em momentos cruciais: («E ao som das canhoadas/Só a G-3 te protege»).

Sim, Gandembel foi um local onde o perigo pairava a cada momento, e o seu tempo mais agradável conhecia-se por bonança. E, por vezes, ao entardecer, saía de uma caserna-abrigo, um coro à capela, à busca de um contentamento de tranquilidade, e também de rogo para que a noite decorresse sem queixumes

Mas quantas vezes, no pedido não satisfeito, as noites estremunhavam e o cansaço ou desalento agudizavam-se. E mal despontava o alvor da madrugada, ouvia-se um forte brado, de revolta, não mais que um grito de coração, de chamamento para todos
- “TIREEEEEM-NOS DAQUI!”.

A este eco lancinante, de tantas vezes repercutido, incutimos-lhe uma secreta aspiração, ainda que reconhecêssemos ser muito difícil de sobrepujar. De todo não chegou ao seu destino, tudo indiciando que os seus ais se vieram a sumir no marulhar de um macaréu de lua, acabando por se esvanecer na salsugem do Geba. E aí, enquistada talvez nalguma concha perlífera, se quedou de mansinho durante mais alguns meses, de modo a que alguém a remoçasse em melopeia cândida e dolente. Afortunadamente, encontrá-la-íamos quando regressávamos a Bissau, a caminho de um outro futuro mais promissor.

Procurámos perceber as causas desse estancamento repentino, e agora nos lembramos que, naqueles tempos de antanho, havia imensas dificuldades para transpor as fronteiras do império. A autocracia totalitária tudo abafava, inclusive o exaspero ou o desalento.

Nos tempos de agora, o hino de Gandembel, cativantemente, nos vem seduzindo e incontidamente nos emudece, já que ele teve o condão de aglutinar miríades de recordações marcadas por aquele frenesim delirante que aquela tremenda Guiné tantas vezes nos avassalou.

Deleitantemente, houve enlevos que parecem ter-se mantido para sempre, até à chegada 
do dia-noite final, em que definitivo, nos havemos de separar. (...)


[Continua]


(**) Fonte:  REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 198-201.
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Nota do editor:


(*) Vd poste anterior da série > 28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis)