terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10946: Do Ninho D'Águia até África (44): O Canjura andava farto de guerra (Tony Borié)

1. Quadragésimo quarto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 12 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (44)




O Canjura não era o Canjura Turé, esse era milícia e ajudava os militares, servindo de guia tradutor, era só o Canjura e andava farto de guerra, mesmo farto.

O Canjura era um africano já com uma certa idade, que andava por ali, ajudava nas obras do aquartelamento, por lá comia e andava vestido com a roupa que lhe dava o Cifra e outros militares. Fazia recados, quando era preciso limpar alguma zona, ou qualquer trabalho que não envolvesse muita força física, o Canjura era chamado. O Cifra acredita que todos os aquartelamentos no interior tinham o seu “Canjura”. Quando não ia dormir à sua morança, que estava em muito mau estado, pois não era sua mas de alguém que “foi no mato” e a abandonou, tendo o Canjura tomado posse dela, dormia debaixo de alguma viatura militar que estivesse a jeito no aquartelamento em obras.

Sabia o nome de quase todos os militares do Agrupamento a que o Cifra pertencia, pois foram dos primeiros a ocuparem o novo aquartelamento, fazia a saudação, colocando-se em sentido antes de falar, não importava que fosse soldado ou coronel, aquilo já era um vício, podia ver o Cifra dez vezes por dia, que fazia sempre a saudação, embora o Cifra lhe dissesse por um milhão de vezes para parar com aquilo, pois todos gostavam dele sem saudação, mas ele não ouvia. Perguntavam-lhe a idade e não sabia, onde nasceu e não sabia, se tinha família e não sabia, mas via-se a aflição no seu rosto, demonstrando sempre algum desespero com receio que o mandassem embora do aquartelamento, talvez já o tivessem mandado embora de outros locais. Andava farto de guerra e de fugir, isso era o que dizia ao Cifra, dizendo também que queria morrer em “chão balanta”, nem que fosse com um tiro ou numa explosão de uma granada de morteiro, mas queria ficar em “chão balanta”. Muitas vezes, quando lhe davam um cigarro, ria-se e aceitava, também aceitava cerveja e café. Na altura da refeição, lá estava à espera, às vezes com outros africanos, ele próprio controlando e não deixando ninguém avançar sem o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho, dar ordem.


O Canjura era popular no aquartelamento, todos sabiam o seu nome e lhe davam roupa, botas, cigarros. Quando alguém não queria qualquer coisa, dizia-se: -
Dá ao Canjura!.

Às vezes andava melhor vestido que muitos militares. Um dia, nunca se soube quem mas desconfiava-se que tivesse sido alguém do comando do Batalhão de Artilharia “Águias Negras”, que estava estacionado no aquartelamento, nas instalações recuperadas do que tinha sido um antigo convento de padres de uma ordem religiosa francesa, o vestiu a rigor, com umas divisas de major, brilhantes, novas a luzir nos seus ombros. Era uma cópia, imitando o tal major “Petinga”, que era o oficial de operações especiais do Agrupamento, a que o Cifra pertencia, o tal que tinha dado uma enorme bofetada num prisioneiro, com as mãos amarradas, que caiu no chão desamparado, só porque este lhe disse que queria ser tratado como prisioneiro de guerra, e fizeram, talvez a troco de qualquer promessa de cigarros ou outra coisa qualquer, o bom do Canjura ir ao gabinete do tal major “Petinga”, bater à porta e apresentar-se, em sentido, com uma perfeita saudação.

Calculem a fúria do major ao abrir a porta do seu gabinete e deparar com o bom do Canjura, vestido tal e qual, parecendo mesmo uma cópia do major “Petinga”!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10927: Do Ninho D'Águia até África (43): Lodo e tarrafo (Tony Borié)

4 comentários:

armando pires disse...

Que história enorme, Tony
armando pires

Cherno Baldé disse...

Caro Tony,

Se o nome do teu amigo Canjura é verdadeiro, então tratar-se-ia de um individuo da etnia Mandinga ou do grupo etno-linguístico Mandinga (Saracolé, Soninqué, Jacanké, Mansoanké, entre outros).

No entanto, não se pode excluir a possibilidade que fosse um Balanta mas, nesse caso, o nome seria emprestado, como acontece com alguma frequencia nesse grupo étnico.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

tony Borie disse...

Olá Cherno.
O nome é o que ele dizia que era, e eu mesmo fui com ele ao registo da espécie de câmara municipal que existia na vila de Mansoa, onde o funcionário que era meu amigo, do convívio na sede do clube Os Balantas, que eu chamava Sedney Poitier, pois era parecido com o actor Norte Americano, que nessa altura fazia alguns filmes que viamos na sede do clube e arranjei um cartão de identificação, pois só assim podia transitar, com o nome de Canjura Mansoa, isto em fins de 1964.
O Canjura, já tinha alguns cabelos brancos, o que diziam que era raro, e dizia muitas vezes, num português acrioulado, que eu compreendia: "se queres ir depressa, vai sózinho, se queres longe vai comigo", isto era um provérvio africano, creio.
Um abraço, Tony Borie.

JD disse...

Viva Tony,
Mais uma estória simples, bem narrada, sobre os epísódios do quotidiano guineense.
Mas triste, no que se refere à agressão a um homem de mãos atadas. A guerra não precisava de vexames. Acho eu, apesar de ter sentido raiva em combate, que os vencidos reconheciam os vencedores, e estes deviam ponderar a situação inversa, porque, afinal, quem é que combatia por gosto?
Um abraço
JD